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Peste branca, epidemia negra

Os antirracistas militantes e quem os apoia existem para, na prática, fragmentarem continuadamente as sociedades e semearem ódios e bombas-relógio. Um ensaio de Gabriel Mithá Ribeiro.

Mamãs e papás de negros não faltam na Europa. Em Portugal, a corte atravessa os grupos parlamentares com especial incidência da ala radical do Partido Socialista ao Bloco de Esquerda, domina as ciências sociais e estende-se por organismos do Estado ou por ele suportados. Frente tão sólida reservou a legitimidade da palavra a uns quantos profetas, anulando a complexidade de matérias que envolvem riscos consideráveis para as democracias, e tomou de assalto a comunicação social. No Diário de Notícias, Fernanda Câncio esgota-se numa euforia inquisitorial notícia-a-notícia. No Público, Joana Gorjão Henriques faz de detetive que desenterra práticas insuspeitas sem nunca ceder o seu lugar a uma jornalistazita negra ou islâmica para corrigir, pelo exemplo, a gravíssima falta de diversidade racial e étnica entre os profissionais do seu jornal. Na SIC, Conceição Lino teve direito a horário nobre para exibir uma selva racial portuguesa na qual a identidade dos negros fazia de montra de um zoológico demasiado patético na sua artificialidade. Na TSF, limpidíssimas vozes portuguesas brancas noticiam quase hora a hora os avanços do racismo e da xenofobia por toda a Europa.

Se os bem-nascidos ou os instalados na vida podem esconder a fortuna e as ambições pessoais para parecerem pobrezinhos defensores dos pobrezinhos, na dissimulação de brancos em fiéis depositários da intimidade dos negros (e de outras minorias) a fraude nunca é descartável pela impossibilidade de tornarem invisível a sua cor de pele. Mesmo numa sociedade-espetáculo, é notável como uma certa casta branca antirracista ainda assim consegue ser tomada a sério, até porque pouco ou nada na sua vida privada diverge das pessoas comuns para que possam sustentar o moralismo em que vivem e, no campo profissional, as práticas renegam a retórica. A começar pela composição racial dos grupos parlamentares, a sua resistência em abrir mão a favor das minorias raciais do acesso a cargos políticos, públicos ou profissionais deixa pouquíssimas dúvidas.

A casta é exímia em remeter as responsabilidades morais práticas das suas utopias, as que de facto contam, para o futuro, para os outros, para as pessoas comuns, em especial para as mais vulneráveis. Estas contam-se entre as mais expostas à mira inquisitorial antirracista nos bairros suburbanos onde habitam, nas escolas públicas onde podem colocar os filhos, nos transportes públicos que têm de utilizar sem grandes alternativas, no acesso a empregos, serviços ou apoios do Estado sempre escassos.

Não existe mistério no afã da imposição de quotas raciais pelo poder coercivo da lei. Os portugueses, sonâmbulos, mal se apercebem que já resvalam na rampa racial inclusiva cujo ponto de partida reside na recusa de um valor fundamental de uma sociedade livre e justa, a universalidade de princípios na aplicabilidade da lei. Iniciada a descida, o percurso arrastará necessariamente a racialização e politização de fenómenos sociais sensíveis, mais não seja porque tudo isto nasce da instrumentalização da pobreza. Depois, serão gerações e gerações a colher as consequências das elevadíssimas probabilidades de os mais pobres da maioria branca acabarem preteridos por alguns bem mais afortunados de certas minorias raciais, com o acrescento de o sucesso dos últimos tender a ser alcançado à custa do abandono e reforço da guetização delinquente dos seus pares mais desprotegidos.

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Portanto, os antirracistas militantes e quem os apoia existem para, na prática, fragmentarem continuadamente as sociedades e semearem ódios e bombas-relógio, enquanto a sua retórica garante o inverso.

Mesmo numa sociedade-espetáculo, é notável como uma certa casta branca antirracista ainda assim consegue ser tomada a sério, até porque pouco ou nada na sua vida privada diverge das pessoas comuns para que possam sustentar o moralismo em que vivem e, no campo profissional, as práticas renegam a retórica. 

Não admira que as universidades que os iluminam sejam, elas mesmas, case studies. Vivo em Portugal desde 1980, suponho não me faltarem formação, publicações e experiência suficientes. Uma década após o doutoramento arrisco continuar a aguardar oportunidades profissionais em meios académicos indubitavelmente brancos. Não fossem eles antirracistas catedráticos, tratar-se-ia de um não-assunto. Ainda assim, insisto no reparo porque a diversidade intelectual constitui a essência da ideia de universidade e se a esse nível ela não funciona, não funcionará em nenhum outro, como no das políticas raciais sempre implementadas a pretexto de estudos universitários.

Destaco muito em particular os cursos académicos sobre questões africanas onde possuo formação específica. Estão pejados de brancos onde o preto, mesmo sobre o seu próprio continente e cor de pele, se alguma vez ultrapassa o crivo da admissão será para ensinar e defender o que a casta branca autoproclamada antirracista quer e como quer. Sobre assuntos académicos tidos por sensíveis (colonização, racismo, violência, entre outros), tenho a grata experiência de me ter sido bem mais fácil comunicar com plateias esmagadoramente negras, em Moçambique, do que com plateias esmagadoramente brancas, em Portugal, estas com doses bem mais salientes de hipocrisia.

É por demais básico que os atributos primários dos indivíduos (cor da pele, sexo, idade) são pessoais e intransmissíveis. Daí que os negros (como todas as pertenças raciais) sejam os únicos com legitimidade para reivindicar aquilo que aos negros diz respeito. Mas não se tenham ilusões. No dia em que, na Europa, se avançar por essa via a fraude antirracista branca revelar-se-á bem mais óbvia. Daí em diante, não duvido que passará a ser bem mais difícil manipular evidências que escudam as minorias em imagens idílicas, ficará bem mais evidente que estas podem e devem fazer muitíssimo mais por si mesmas e ainda a contestação à contestação antirracista negra tenderá a partir, também ela, de outros negros. Se necessário fosse, na opinião pública circula historial que baste desse sintoma.

Na luta pela sua própria sobrevivência política, os antirracistas brancos mais não representam do que uma barreira de tiro poderosíssima que tudo faz para manter a identidade negra coesa e, sublinhe-se, com elevado sucesso. A prova é a última aparentemente submeter-se, qual refém, a ter de viver em espaços isolados a pretexto da sua proteção identitária contra a alegada selvajaria racista dos brancos comuns. Esse ciclo vicioso tornou-se terreno fértil da ilusão multicultural, mão cheia de nada que promete às minorias raciais um sem-número de vantagens de se ser português ou europeu alternativo, acrescido do milagre da integração social bem-sucedida ao virar da esquina. Definição mais-que-perfeita da banha da cobra.

Portanto, os antirracistas militantes e quem os apoia existem para, na prática, fragmentarem continuadamente as sociedades e semearem ódios e bombas-relógio, enquanto a sua retórica garante o inverso.

Assim se impõe com enorme eficácia a infantilização identitária da minoria negra. Para esta torna-se extraordinariamente difícil enfrentar e decidir de forma adulta sobre o que é íntimo, pessoal e intransmissível e que qualquer negro sabe que é bem mais complexo do que as caricaturas produzidas a partir de fora, por brancos. E não há como não desembocar em Freud. Ele clarificou, e bem, que a ordem moral viável que funda e sustenta identidades prósperas tem a ver com a capacidade de direcionar o sentido da responsabilidade pelo destino coletivo para o interior do próprio grupo de pertença. Em sentido contrário, a externalização da culpa corresponde a um estéril estádio primitivo (termo de Freud).

É justamente o antirracismo branco que mais agressivamente se posiciona para acorrentar a identidade negra na autorrepresentação da vitimização, o extremo estéril da externalização da culpa. Daí vermos torturado o sentido da história, uma vez que é ele que assegura que o negro não escapa da autovitimização, mesmo sendo óbvio que fenómenos como a escravatura ou o ‘colonialismo’ estejam a ser manipulados, truncados, anacronizados. Romper com os novos escravocratas-antirracistas-brancos, agora na versão identitária, implica quebrar o cerco de forma pouco ortodoxa, isto é, que a identidade negra os abandone para se voltar para o interior de si mesma. Não para desvendar tentações primárias, antes para valorizar muitíssimo mais a autorresponsabilização identitária. Os brancos, incluindo os brancos antirracistas, se não sabem deveriam saber que a atitude funciona com grande vantagem para a sua pertença racial. A permanente disputa identitária interna entre brancos é a razão mais sólida que distingue o primeiro mundo do terceiro mundo, a integração social ou a guetização.

O sintoma mais seguro da maturidade identitária revela-se quando os indivíduos evidenciam força psicológica e conseguem legitimar-se para dirigirem abertamente as suas críticas sobretudo (embora não em exclusivo) para o interior do seu próprio grupo de pertença, a começar pela intimidade da vida familiar e pelas situações quotidianas mais comuns. Sem essa atitude não é possível admitir a mais elementar ideia de liberdade, uma vez que a liberdade ou é individual ou nunca chegou. E não há outra forma de tornar fértil, para os próprios, as respostas a realidades sempre desafiantes ou mesmo frustrantes. A vida e o mundo são mesmo assim. E por que razões a identidade negra seria exceção? Não existe no antirracismo progressista branco uma inqualificável imoralidade?

No momento em que a tradição da responsabilização pelo próprio destino passar a ser saliente na África-Mãe, continente até agora todo ele amarrado a utopias progressistas, aquelas sociedades poderão começar a dobrar o Cabo das Tormentas. Será o caminho de reinvenção africana após longas décadas de independências que conduziram muitas das sociedades africanas a estádios próximos da anomia, sociedades onde se manifestam os mais variados sintomas de neuroses coletivas: elevados índices de criminalidade, corrupção, desestruturação familiar, má governação, miséria. Nada disso cai do céu. Nada disso é culpa do vizinho. Tudo isso é gerado bem no âmago de cada identidade nacional. É sempre fruto da ordem moral das sociedades do presente. E se o passado não se muda, decisiva é a carga e significados que se lhe atribuem no presente. Nisso, a África pós-colonial foi empurrada para uma patologia psicológica grave com a ajuda preciosa dos antirracistas brancos ocidentais.

Sigmund Freud caracterizou o desequilíbrio emocional neurótico

World History Archive/UIG via Getty images

Sintomas equiparáveis encontram-se nas minorias negras das diásporas ocidentais. E não vale a pena continuar a negar que essa pertença racial tem características peculiares onde quer que exista. Indivíduos e comunidades não deixam de ser diferentes apenas porque os fatores genéticos ou biológicos não são relevantes, uma vez que no âmago estão questões identitárias. As diferenças têm a ver com o modo como as identidades coletivas se pensam a si mesmas (grupos, comunidades, povos, nacionalidades), mas não menos com a forma como certas identidades são fortemente pressionadas a autoidentificar-se num dado sentido de fora para dentro, a partir das outras identidades. Nesses processos psicológicos, os grandes amigos nos vícios são os piores inimigos. Nada de inusual nas patologias.

O balanço a fazer destas décadas áureas pós-guerra fria de progressistas e antirracistas é uma caminhada paradoxal em que as diferenças entre brancos e negros continuam na ordem do dia. Só por cobardia evitamos a frontalidade desse debate e, com isso, arrastamos situações humanamente penosas. É por demais evidente que a relação entre brancos e negros continua problemática como nenhuma outra relação inter-racial na face da terra, se é que não se está a agravar em novos moldes como nunca. Inclusive, apesar da muita retórica estendeu-se além da África do Sul ou dos EUA, ou seja, não se resolveram os problemas onde eles existiam e eram salientes no último quartel do século passado, antes os ativismos antirracistas descobriram nesses casos uma ótima indústria exportadora mundial. Se é irrecusável que a identidade negra está a ser vítima de si mesma, não menos está a ser vítima de uma verdadeira peste branca. Em Portugal e onde quer que seja, essa peste tem nomes e rostos antirracistas como os citados neste texto. Por associação, a partir deles não é difícil identificar muitos outros. A indignidade de tudo isto foi longe demais.

Como é que uma minoria dominada há décadas por sentimentos de rejeição racial poderá responder com eficácia aos desafios da sua integração nas sociedades europeias (há muito caracterizadas pela heterogeneidade) sem que uma parte dessa minoria rompa ostensivamente com o cordão umbilical ancestral, a Mãe-África, para se aproximar na plenitude dos valores ocidentais? Não terão os negros das diásporas ocidentais muitíssimo maior legitimidade do que os brancos europeus (ou mesmo brancos africanos), e por isso muitíssimas maiores responsabilidades, para criticar África e os africanos em benefício da melhoria das condições de vida no continente que mais se afundou nas últimas décadas? Será possível mudar o destino de toda uma comunidade direta ou indiretamente filiada a África (a cor da pele não engana), onde quer que ela exista, sem que África mude e sem pressionar para que tal aconteça? Por outro lado, não é o reforço da heterogeneidade interna num dado grupo racial a via mais rápida para esvaziar a saliência e significados da cor da pele? A quem cabem vergonhosas responsabilidades quando um negro arrisca sair do colete de forças progressista ou antirracista branco para acabar ostracizado nas sociedades onde é minoritário? Não têm os brancos direitos exatamente inversos nas sociedades negras, o de se desfiliarem sem censuras das suas origens (próximas ou mais remotas), e não será por isso que se integram nas sociedades negras sem remorsos em defendê-las? Será a liberdade individual um privilégio exclusivo dos brancos?

E não falta hoje às maiorias ou minorias negras por esse mundo fora, seguramente às suas elites, o acesso às mais variadas formas para reinventar o seu destino coletivo: pensamento, literatura, música, arte, participação política, intervenção cívica, entre outras. O maior travão é a miserável casta antirracista branca do Ocidente.

Não têm os brancos direitos exatamente inversos nas sociedades negras, o de se desfiliarem sem censuras das suas origens (próximas ou mais remotas), e não será por isso que se integram nas sociedades negras sem remorsos em defendê-las? Será a liberdade individual um privilégio exclusivo dos brancos?

Se alguma pedagogia realista as sociedades psicologicamente saudáveis podem e devem fazer em prol da dignidade das minorias raciais e da coesão social no seu conjunto é promover, incentivar, facilitar, instigar, legitimar manifestações de diversidade individual no interior das minorias. Bem sei as razões que me levam cada vez mais a reivindicar-me como negro. Destratarem-me por não ser ‘como os outros’ é para mim uma bênção, incluindo os insultos. É fundamental contrariar a força da caminhada em sentido inverso, o da homogeneização em torno da vitimização. Daí que não espante a continuada e crescente desinserção de negros, ciganos ou islâmicos (a minha origem também é essa) nas sociedades europeias e, no interior daquelas, o agravamento da pressão (e repressão) dos mais fortes sobre os mais vulneráveis, os primeiros apoiados por ativistas e os últimos mais facilmente abandonados à sua sorte.

Na matéria, não é de somenos considerar as especificidades geográficas dos continentes para se compreender o logro em que vivemos. As identidades dos povos europeus (como o português) em nada se confundem com as identidades dos povos africanos (como o angolano ou o moçambicano). Em questões identitárias, a história é suficiente ambivalente para aproximar e separar os povos, à vez ou ao mesmo tempo. Visões românticas que supõem que as identidades nacionais, pela sua abrangência e com a desculpa do passado comum, são sacos sem fundo onde todos cabem e podem ser tudo e o seu contrário, e do pé para a mão, são apenas isso, visões românticas com a particularidade de produzirem consequências perniciosas.

Isso porque as diferenças entre as identidades nacionais europeias e as africanas são por demais substantivas. De forma equiparável, um e outro tipo sustentam-se em tradições culturais, linguísticas, religiosas e históricas autónomas e em matrizes raciais bem distintas. Não menos relevante, esses fatores estruturantes das nacionalidades estão filiados a territórios cujas autonomias geográficas também são inequívocas, Europa para uns e África para outros. Existem, portanto, percursos da ancestralidade mais remota ao presente que são inconfundíveis e, desse modo, (quase) não deixam margem para disputas de base racial no interior de cada um desse tipo de identidade nacional.

O fim dos impérios coloniais, para os europeus, e as consequentes independências nacionais, para os povos da África Negra, serviram para desfazer ambiguidades entre uns e outros; serviram para realçar as profundas diferenças identitárias em que uns deixaram de ter o escudo desculpabilizador dos outros para se confrontarem consigo mesmos. Não se podem valorizar o fim dos impérios coloniais europeus e as consequentes independências africanas e, ao mesmo tempo, renegar as suas consequências identitárias, incluindo os significados decorrentes de pertenças raciais distintas. Convencer-se e convencer os outros de que tal engenharia social é possível é de um infantilismo intelectual a toda a prova.

"Mamadou Ba dificilmente ultrapassará o dilema entre a insignificância das suas ações e a instigação dos piores estigmas na opinião pública"

Substantivamente distintas são as Américas. Sobre questões raciais ou migratórias, é como se europeus e africanos recebessem visitas em suas casas e, do outro lado do Atlântico, grupos de famílias distintas pudessem disputar espaços para acampar num quintal ao ar livre, com o reparo de o quintal ter tido sempre donos, os índios. Tomando como referência os EUA e o Brasil, as características dos povos atuais do Novo Mundo arrastam persistentes ambiguidades intransponíveis para outros continentes.

As identidades nacionais americanas assumem a particularidade de não estabelecer associações lineares entre um dado povo com características de coesão ancestral e a sua filiação a um território próprio também ancestral. Não só brancos e negros, e tudo o que tal possa significar, determinaram em simultâneo a essência das identidades nacionais arrastando ancestralidades distintas de fora para dentro do continente (a partir da Europa e de África), paradoxalmente com as quais romperam por vontade própria (emigração e luta pela independência) ou por imposição violenta (escravatura); assim como ambos tiveram de se reinventar em simultâneo nas Américas forçados a usurpar a ancestralidade territorial exclusiva dos índios. E foram precisamente os peles vermelhas os remetidos para papéis periféricos nas identidades nacionais americanas saídas das independências, entre os séculos XVIII e XIX.

Porque a volatilidade do atributo racial esteve na génese, tal característica foi sendo remetida para o âmago das dinâmicas identitárias de uma parte dos territórios nacionais, o que tornou a questão racial relevante e socialmente disputável como em nenhum outro continente. Além disso, a origem escrava do segmento negro e o posicionamento da maioria branca em relação a essa condicionante acabou por desempenhar um papel moral de tal modo essencial, e com um profundo sentido (re)fundador após a guerra civil americana (1861-1865), que fez e faz com que a questão racial mova montanhas nas Américas.

Pelo contrário e também por razões históricas peculiares, a coesão racial interna a cada continente e a fragmentação racial externa muito clara entre a Europa branca e a África negra tornou o fenómeno racial rápida e crescentemente artificial após o fim dos impérios territoriais europeus em África no século XX. Daí ser errado abordar o fenómeno racial nestes dois continentes a partir de analogias com os EUA ou com o Brasil, tal como seria errado o inverso. Mas é justamente o uso e abuso desse mimetismo que faz do antirracismo europeu uma sofisticada forma de alienação e ignorância que, inclusive, leva a que os europeus sejam pouco sensíveis a prevenir desafios que lhes são específicos.

Porque a volatilidade do atributo racial esteve na génese, tal característica foi sendo remetida para o âmago das dinâmicas identitárias de uma parte dos territórios nacionais, o que tornou a questão racial relevante e socialmente disputável como em nenhum outro continente. 

É sintomático como os europeus deixam escapar durante tanto tempo os significados específicos para as suas realidades da crescente presença islâmica (que não abordarei). Isso porque, na Europa, são muitíssimo mais relevantes os atributos étnicos (centrados nas questões religiosas, culturais, identitárias ou ideológicas, como evidenciaram o nazismo, os nacionalismos ou o império soviético) do que os atributos raciais à maneira americana (brancos versus negros). Significa que as sociedades americanas não se furtam a ter de percorrer os seus próprios caminhos (mesmo que a atual fórmula esteja esgotada), enquanto a intelectualidade europeia vive arrastada pelo cinema de Hollywood, pelas novelas da TV Globo, pela literatura ou por tendências da música de intervenção americana que, para os europeus, se limitam a ser ficção desfiliada do real tais as diferenças identitárias entre os dois lados do Atlântico.

Não é mistério, por isso, que o antirracismo mimético da Europa a partir do modelo americano possua muito de artificial, livresco, falso, folclórico, teatral, dissimulado. Ao menos nisto os povos africanos, tal como os árabes e asiáticos, dão lições de pragmatismo psicológico aos europeus que julgam razoável, no mundo real, amarem o próximo sem exigir serem amados por esse próximo, e no seu próprio território, desequilíbrio emocional neurótico magistralmente caracterizado por Freud.

Num certo grau, pode até estar a acontecer algo de equivalente num Brasil também mimético em relação aos EUA, contudo não possuo evidências suficientes para tirar conclusões nesse caso.

É, portanto, o princípio da realidade que força a ter de se assumir o pressuposto de a Europa ser dos brancos e a África ser dos negros. Essa é justamente a matéria em que será arriscado ignorar o que permanece sempre latente desde a génese nas respetivas identidades coletivas e que as sustentou no longuíssimo tempo dos séculos, mesmo que remetido para silêncios recalcados. Razões para a dor psicológica hoje tanto poder estar latente naquele que sabe não ter escolha que não seja usurpar a ancestralidade identitária dos outros e ter de aprender a viver com ela (um branco não ter escolha que não seja ser angolano ou um negro português); como a dor psicológica poder estar hoje latente naquele que cede voluntariamente na sua longuíssima ancestralidade e, por vezes, não consegue deixar de intuir incómodos, ainda que pré-conscientes ou indefinidos, face a transformações iniciadas num passado demasiado recente, no século XX (um zimbabwiano negro, como todos os seus mais remotos antepassados, passar a ter um branco como compatriota; após quase dois milénios de fixação dos povos germânicos no que passou a ser o seu território nacional e sem diversidade racial significativa, um alemão branco louro passar a ter como compatriota um negro).

Para um zimbabwiano negro, passar a ter um branco como compatriota pode ser motivo de dor psicológica por cedência da ancestralidade, defende Gabriel Mithá Ribeiro

AARON UFUMELI/EPA

É porque o esforço psicológico de reinvenção identitária que os governantes passaram a exigir aos povos se tornou de tal modo colossal à medida que se caminhou para o final do século XX, o pequeno incidente inter-racial ou a verbalização de um insulto racial de circunstância, sem mais, deve ser interpretado acima de tudo como uma válvula de escape terapêutica de povos que voluntariamente se submeteram a processos de transformação identitária demasiado exigentes. Ver nisso uma profunda perversão racista dos povos é de uma ignorância atroz. Daí que atribuir demasiada relevância, e relevância política, a tais episódios é transformar o humanamente inevitável e corrigível por mera boa educação em neuroses coletivas.

Porém, é justamente no irrelevante, no acidental, no circunscrito, no episódico, no excecional que a douta ignorância – no sentido puro da expressão – nunca parou, nas décadas recentes, de identificar nódoas de uma violência racial profunda, gravíssima que se manifesta (apenas) na população branca da Europa Ocidental, a única raça perversa do planeta. Razão para exigir cada vez mais que essa perversão seja extirpada pela raiz. Não importa se através de leis punitivas, se pela criação de ministérios governamentais específicos, se promovendo missões disciplinadoras de organismos internacionais da União Europeia à ONU. Se tudo isso em conjunto. A cada episódio circunstancial relatado na imprensa volta a exigir-se uma cura radical urgentíssima dos brancos ocidentais pelos próprios brancos antirracistas, sem mais escusas, sem mais adiamentos. Nisso, a imprensa europeia é patológica, indistinta de qualquer manicómio.

É até louvável que a população branca tenha admitido, e durante tanto tempo sem reações bem vincadas (quem não se sente não é filho de boa gente), as recorrentes barbaridades intelectuais em forma de reprimenda de mamãs e papás brancos das minorias raciais, papel desempenhado na imprensa entre nós e de forma exímia, entre outros, por Alexandra Lucas Coelho.

Se sentimentos ancestrais não devem ser trazidos levianamente para o presente considerando o dever moral de promover ideais civilizacionais de aproximação entre povos, é não menos de uma profunda ignorância supor que o passado identitário multissecular dos povos pode ser extirpado, para mais por via de moralismos censórios agressivos, a forma mais rápida de ativá-los. Por isso, não deixo de sublinhar que existem condicionantes psicológicas inevitáveis da vida individual e coletiva sobre os quais as sociedades civilizadas devem guardar recato, como a prazo tem de acontecer com a cor da pele. Porém e para já, não resta outra terapia coletiva que não seja destapar recalcamentos no sentido proposto neste texto tendo em conta que o antirracismo militante tornou a gestão emocional dos fenómenos raciais patológica, neurótica, histriónica, desumana, imoral.

Será o caminho de reinvenção africana após longas décadas de independências que conduziram muitas das sociedades africanas a estádios próximos da anomia, sociedades onde se manifestam os mais variados sintomas de neuroses coletivas: elevados índices de criminalidade, corrupção, desestruturação familiar, má governação, miséria. Nada disso cai do céu. Nada disso é culpa do vizinho. Tudo isso é gerado bem no âmago de cada identidade nacional.

Em tempos em que uma mesma promoção se vê em simultâneo nas televisões de todo o mundo, nisso o futebol é exímio, as campanhas publicitárias antirracistas assumem um cunho paradoxal dada a forma seletiva como gerem valores, princípios e interditos da condição humana, hoje uma mais do que justa partilha universal. São campanhas que investem fortemente no combate à discriminação em sociedades de populações esmagadoramente brancas, porém não fazem investimentos em sociedades de populações esmagadoramente negras (ou outras, como as árabes ou asiáticas em relação às quais nem sequer se questiona a sua endogamia racial, étnica ou religiosa). Mas é justamente nas sociedades negras que a minoria branca se sente especialmente insegura e é aí que morrem muitíssimos mais brancos de forma traumática quando se compara com a segurança e suporte de que gozam as minorias raciais nas sociedades de acolhimento europeias. E não existe apartheid do passado ou pobreza no presente que legitime o genocídio silenciado de brancos em curso na África do Sul, indivíduos assassinados às mãos de uma criminalidade negra com uma mira racial necessariamente seletiva.

Campanhas antirracistas com discrepâncias tão significativas entre o que exibem e o que omitem tendem a tornar-se mais parte do problema do que parte da solução porque quanto mais abertas as sociedades, tendência em acentuação no século XXI, tanto menos o senso comum se presta a manipulações estupidificantes.

Ao contrário das Américas, se nos países europeus os negros contestassem por eles mesmos, como necessariamente tem de ser, por via formal legítima (por exemplo, através de associações representativas) ou por via informal ilegítima (por exemplo, procurando justificar o crime associando-o à discriminação social) será bastante provável que esses movimentos caíssem pela base. E é a realidade que impõe o que tem de ser e não a natureza pérfida da maioria branca, e daí a esterilidade dos muitos e muitos esforços da elite branca antirracista para instigar tal caminho. Em Portugal, o guarda-redes senegalês andor do SOS Racismo, Mamadou Ba, dificilmente ultrapassará o dilema entre a insignificância das suas ações e a instigação dos piores estigmas na opinião pública, infelizmente justificáveis, que atingem no seu conjunto a pertença racial minoritária que imagina representar. Na essência, a situação não é diferente da que acontece com a minoria branca na África do Sul, apesar do seu genocídio em curso.

Nos países europeus e nos países africanos, quase só resta às minorias raciais assumirem que em Roma têm de ser romanas. Integrarem-se nas sociedades de acolhimento com racionalidade deixa-as praticamente limitadas a terem de investir na empatia, na cordialidade, na harmonia, na boa educação, na civilidade, nas boas relações com a maioria racial e aguardarem resultados intergeracionais. Com realismo, esse é o caminho saudável. Em sentido inverso e dada a forte coesão racial das sociedades europeias e das sociedades africanas, investir em reivindicações de base racial ostensiva – tanto pior se a via for agressiva, provocatória, abusiva, politizada, violenta, desbocada – agravará necessariamente a guetização, a frustração e a hostilidade às minorias raciais por responsabilidades próprias.

Claro que é fundamental que as minorias raciais encontrem do outro lado uma maioria civilizada, isto é, genuinamente predisposta a acolher a diferença mesmo sinalizando a importância do seu amor-próprio (como se essa necessidade psicológica de indivíduos e povos justificasse o labéu de racistas). Com e sem o que se rotula de ‘extrema-direita’, na matéria as sociedades europeias alçaram uma maturidade moral e identitária dificilmente detetável noutros povos e, por isso, é mais do que compreensível que não se predisponham a levar lições de civilidade por africanos ou árabes.

Se sentimentos ancestrais não devem ser trazidos levianamente para o presente considerando o dever moral de promover ideais civilizacionais de aproximação entre povos, é não menos de uma profunda ignorância supor que o passado identitário multissecular dos povos pode ser extirpado, para mais por via de moralismos censórios agressivos, a forma mais rápida de ativá-los. 

Tenho no currículo uma pesquisa pós-doutoral sobre o tema. Incluiu um longo trabalho de campo em Moçambique (a par do contraponto de viver em Portugal), muita leitura e capitalização de leituras anteriores (Marx Weber, Serge Moscovici, Sigmund Freud, Albert Memmi, Michel Wieviorka, John Rex, Dinesh d’Souza, Jorge Vala, Eduardo Bonilla-Silva, entre outros). Suspeito que as conclusões desse estudo, expressas em parte em publicações (como esta e esta), nunca me permitirão dirigir um cursozinho sobre relações raciais em Portugal. Contra a radicalização do fechamento das inteligências, a fuga forçada das universidades para a imprensa pode até ser benéfica porque o essencial destas matérias joga-se no senso comum.

E não me é indiferente uma longuíssima experiência nas periferias urbanas na qualidade de docente do ensino secundário desde 1991 (onde felizmente a minha carta de alforria profissional funciona), experiência transformada em livros (por exemplo, este e este) que não entram no debate académico ultra sofisticado das ciências da educação talvez por evidenciarem a mente turva de um pretinho salazarista (não sei bem o que seja, mas registo o reparo que me foi dirigido por um branco progressista, antirracista e tudo!, à moda de José de Almada Negreiros), atingi há muito o ponto de saturação na relação com certos alunos negros. Só por incapacidade de resposta à intimidação e medo por parte dos docentes brancos, e cobardia institucional, se podem aturar atitudes e comportamentos de indivíduos que salientam, eles mesmos, a sua cor da pele negra sempre que daí retiram vantagens perversas em situações que, não raro, envolvem violência de género considerando que a profissão docente é esmagadoramente branca e maioritariamente feminina e esses delinquentes são, em geral, masculinos, embora não necessariamente.

Num país de investigadores, trata-se de ocorrências há décadas remetidas para os silenciamentos das salas de aula (as depressões dos professores também não caem do céu), situação impensável (e bem!) com alunos brancos em escolas de África ou de outras paragens. Em Portugal (e infiro na Europa Ocidental), essa é uma das severas perversões do maternalismo e paternalismo antirracistas brancos. Reporto-me a alunos que são verdadeiros crápulas negros, preguiçosos, parasitas sociais, aberrações civilizacionais. Não necessito que me contem. Vivo ciclicamente a situação há muitos anos como professor e diretor de turma na Margem Sul.

Também não será necessário muito esforço para imaginar os custos que também há décadas recaem para o resto da vida de alunos indígenas e respetivas famílias que ambicionam sucesso escolar e que o destino coloca em turmas com esse tipo de multiculturalismo. Muito devem suportar em silêncio essas famílias brancas, admitindo que não naturalizaram estas aberrações nas suas mentes. A indiscutível ideia de que a indisciplina e a violência nas escolas (outro filme!) também são provocadas por alunos brancos merece, e apenas neste contexto, uma resposta óbvia: Vocês são brancos que se entendam!

Isso por não ser admissível continuar a escamotear de forma tão grosseira as perversões do atributo racial na vida quotidiana. Se conheço por demais a situação dos professores nas salas de aula, imagino a dos polícias nos bairros ou locais de circulação étnicos (nos meus tempos de juventude conheci suficientemente bem o paraíso multicultural da Quinta da Princesa, na Amora/Seixal, de onde as próprias famílias de minorias raciais, as que podiam, foram saindo quanto mais as crianças e jovens multiculturais do bairro iam sendo formatadas nas escolas progressistas da Cruz de Pau e arredores, e nem sequer me reporto a famílias brancas).

Nos países europeus e nos países africanos, quase só resta às minorias raciais assumirem que em Roma têm de ser romanas. Integrarem-se nas sociedades de acolhimento com racionalidade deixa-as praticamente limitadas a terem de investir na empatia, na cordialidade, na harmonia, na boa educação, na civilidade, nas boas relações com a maioria racial e aguardarem resultados intergeracionais. Com realismo, esse é o caminho saudável.

A verdade é que – insisto na experiência na primeira pessoa – também não faltam outros negros exemplos de dignidade, respeito, civilidade, saber-estar nas salas de aula e na relação com o conhecimento. Porém, aos últimos nunca se legitimaram condições de defesa da sua dignidade individual para que possam demarcar-se de estigmas alimentados por esses outros negros crápulas, uma das estratégias mais eficazes de melhor se protegerem os indivíduos de eventuais abusos de certos brancos a quem os antirracistas, também brancos, passam a tal mensagem da homogeneidade negra vitimizada. A imposição desse tipo de mensagem homogeneizadora, desgraça que se abateu sobre as próprias minorias, desemboca sempre em interpretações paradoxais pelas pessoas comuns, posto que os indivíduos nunca são meras caixas reprodutoras das mensagens de boas intenções como os discursos político e público imaginam. Fazer da minoria negra uma massa coesa sempre boazinha nos seus propósitos aos olhos da maioria branca na vida quotidiana resulta nisso, tanto quanto resulta no seu exato inverso. Por isso, é muito melhor considerar que cada negro é um negro, elogiável e censurável, como qualquer branco ou de outra pertença racial. Ou seja, cada pessoa é uma pessoa.

Para quem queira compreender como as questões raciais se manifestam, o quotidiano das escolas públicas suburbanas da Grande Lisboa (para incluir a Margem Sul) constitui palco privilegiado que deita por terra a crença em caminhos românticos rumo a uma sonhada harmonia racial sem exigências. Um quarto de século em salas de aula como professor chega-me e sobra como evidência. Não é possível omitir que as minorias são minorias. Se assim é, o impacto de atitudes e comportamentos salientes dos indivíduos que a elas pertencem (bons e maus) com muitíssima facilidade geram estereótipos e estigmas extensíveis ao grupo de pertença no seu conjunto. Negar que as diferenças entre maioria e minorias nas sociedades, nos mais variados tempos e lugares, assenta e assentará também nisso equivale a negar as mais elementares leis da física (pelo menos considerando os conhecimento que até agora possuímos). Assim como um branco crápula em África fez e faz com que justos e pecadores pagassem um mesmo preço, quem sabe se pagou mais o justo do que o pecador, a substância do fenómeno nunca será diferente na Europa, por muito civilizados que sejam os povos europeus, e são. É da natureza humana.

Não me vou embora desta escrita sem deixar preto no branco que jamais deixarei de ser africano e jamais serei um português como os portugueses indígenas, posto que a cor da pele conta. Não se apaga da minha existência ser neto de uma negra e de um árabe sírio; de uma mestiçada com negros e de um indiano islâmico. Mestiço, mulato ou monhé de nascimento, em Moçambique, em Portugal fui aprendendo a ser negro. Nunca encontrei razões para dramas mesmo quando me fazem sentir preto por não ver razões para me queixar racialmente do país (a exceção são os patológicos antirracistas brancos). Teria hoje muitíssimo mais receios raciais em Moçambique, o meu país natal, porque onde não existe segurança não existe liberdade.

Em Portugal, é público que passei pela vida nas barracas (quinhão que me coube da descolonização exemplar), cumpri ainda outros dos rituais de iniciação mais exigentes da minha minoria em terra de brancos ao passar pelas obras na adolescência e juventude e viver em bairros periféricos de ‘gente de cor’ onde felizmente nunca me faltaram nem faltam amigos africanos (moçambicanos, angolanos, cabo-verdianos, guineenses, senegaleses, santomenses), portugueses e excecionalmente alguns brasileiros. Sei de ciência sabida que em nenhum desses momentos de iniciação (rituais, momentos ou espaços) tive à minha volta apenas gente da minha cor de pele ou de outras pertenças minoritárias, mas também portugueses brancos.

Aliás, os brancos comparativamente mais pobres funcionam como conforto psicológico para certas minorias e é sobre eles que, em certos meios e circunstâncias, os racialmente minoritários descarregam os piores estigmas. Só mesmo quem se limita a conhecer estes fenómenos nos livros de sociologia, estúdios de televisão ou seminários universitários toma a sério a patranha de essas serem práticas apenas dos brancos desfavorecidos contra os negros. Até por essa razão racializar a pobreza é biblicamente estúpido, expressão cunhada por Vasco Pulido Valente. E se eventualmente posso ter lamentos ao nível académico por falta de pedigree ideológico ou familiar (até racial), quantos brancos não se lamentam do mesmo? E quantos desses brancos nem sequer conseguem publicar livros, fazer conferências ou escrever na imprensa?

Um quarto de século em salas de aula como professor chega-me e sobra como evidência. Não é possível omitir que as minorias são minorias. Se assim é, o impacto de atitudes e comportamentos salientes dos indivíduos que a elas pertencem (bons e maus) com muitíssima facilidade geram estereótipos e estigmas extensíveis ao grupo de pertença no seu conjunto.

E não necessitamos de estudos e estatísticas para concluir que a guetização e fragmentação racial se agravaram em Portugal desde os meus dias de iniciação nos anos oitenta e noventa, e à medida que os filhos diretos racializados vindos do antigo império em África foram dando lugar à segunda e terceira gerações. Mas isso tem ocorrido justamente no período áureo das ciências sociais e das políticas, programas, medidas e demais parafernália antirracista. Não existe melhor atestado não apenas da sua inutilidade, mas sobretudo das suas consequências perniciosas.

Quando as coisas não correm bem aprendi, desde os meus anos de iniciação em Portugal, a deixar escapar “Estão na terra deles…” que conservo. Porém, a vida fez com que, em mim, fosse pesando muitíssimo mais saber que as dificuldades que ainda tenho, seguramente por muita incompetência minha, no entanto foram sempre progressivamente inferiores às dos meus pais no tempo colonial, em Moçambique, bem como as dos meus pais foram sempre progressiva e comparativamente muito inferiores às dos meus avós. Por isso, seria desonesto colocar a hipótese de o meu filho e de os meus sobrinhos verem obstáculos num alegado racismo dos portugueses brancos quando tiverem de se afirmar ao longo das suas vidas. A tradição familiar nesta minoria racial tem sido, e faço com que continue a ser, a de estudarem, trabalharem, comportarem-se e deixarem-se de fitas. E a minha família próxima resiste felizmente num arco-íris racial e religioso, sempre filiada a ramos com características idênticas em Moçambique.

O ponto de partida, há pouco mais de um século em África, representava um desafio colossal de aproximação entre povos negros e brancos (também povos do Índico, na África Oriental) que tem sido sempre uma aposta ganha. Havia diferenças iniciais tão profundas entre as tradições europeias e as tradições africanas (e as outras) que só no reino da fantasia tudo poderia ter sido harmonioso, pacífico, sem choques. Estava em causa o encontro entre indivíduos e comunidades à partida inseridos em tradições civilizacionais profundamente distintas, e que arrastavam diferenças acumuladas ao longo de milénios. Apenas por isso, tais diferenças necessitam de séculos para gerar, consolidar e aprofundar aproximações em direção a estádios de desenvolvimento equiparáveis entre os povos. O que é humanamente razoável é ir tentando o possível para que essas diferenças possam continuar a diminuir sempre numa tendência consistente, na essência o que se anda a fazer desde a colonização efetiva iniciada em África em finais do século XIX, e com muito maior eficácia até às independências africanas do que delas em diante.

Humanismo nunca será um dado adquirido que um dia produzirá a igualdade entre indivíduos e povos, o que jamais acontecerá. É apenas um caminho que se vai caminhando em que cada geração melhora com realismo aquilo que herdou ou, no mínimo, deve evitar que o atropelo pelo princípio da realidade, instigado por alguns indivíduos patológicos agregados no que hoje se designam movimentos sociais e antirracistas, estrague aquilo que se herdou. E o que a peste branca retratada neste texto tem destruído não tem sido tão pouco quanto isso.

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