Descobri que sou um rato de sacristia. Apesar de não me recordar da última vez que entrei numa sacristia, os novos polícias do pensamento já proferiram a sua sentença: há em Portugal uma luta de morte entre a sacristia e a democracia, e eu estarei do lado da sacristia. O que me condena, suponho, ao caixote do lixo da história, como se dizia noutros tempos.

A juíza, nesta circunstância, foi Isabel Moreira, a deputada de causas que que assinala com tatuagens os seus triunfos legislativos. Para ela chega sempre “o dia em que o verdadeiro lóbi da sacristia é derrubado pela democracia”. Uma democracia que ela entende de sentido único, porque há sempre um “progresso contra o obscurantismo”.

No caso em apreço, como já estarão a imaginar, o que está em causa é a eutanásia. Aquilo de que Isabel Moreira tem a certeza é que “passará”. Ela faz parte dos que nunca perdem.

Como defendi, por entre dúvidas e certezas, que o Parlamento não devia aprovar os projectos de lei que estiveram a ser discutidos, para mais sem que três deles tivessem sequer recebido os comentários da Comissão de Ética para as Ciências da Vida, fico irremediavelmente do lado da sacristia. Isso não me incomodaria nada se este tipo de sentenças políticas não resultasse de uma arrogância insuportável quando se debate um tema complexo e, sobretudo, se não resultassem de um autoritarismo moral e cultural que é meio caminho andado para a criação de um clima irrespirável, claustrofóbico, senão autoritário.

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Este texto de Isabel Moreira é apenas um exemplo especialmente gritante da atitude de boa parte da nossa esquerda e da generalidade dos “activistas” que tanto podem sentar-se no Parlamento, infestarem as redes sociais ou fazerem uma daquelas acções de rua em que há mais jornalistas do que manifestantes. O que os distingue não é apenas o maniqueísmo da argumentação, uma divisão do mundo entre bons e maus que inevitavelmente diaboliza os adversários para nem sequer ouvir os seus argumentos.

Mas há mais, porventura mais importante: a ideia de que os votos só contam quando nos dão a vitória, a ideia de que haverá que votar as vezes que forem necessárias até chegar a uma “conquista” que imediatamente se classificará de “irreversível”. No fundo a ideia de que a história tem apenas um sentido e que pessoas como Isabel Moreira são os seus intérpretes. Hoje e em Portugal quem pensa assim ainda acata as decisões do Parlamento, mas o perigo de pensar desta forma é quando essas vanguardas libertadoras se arrogam legitimidade para impor aos demais esse sentido da história – exactamente o que fizeram os regimes comunistas, que justificaram (e justificam) sempre as ditaduras em nome da libertação.

Não vou naturalmente “regressar à sacristia” e aos argumentos que utilizei a seu tempo, pois o que hoje me interessa não é a eutanásia mas sublinhar que nada autoriza esta arrogância e ainda menos estas certezas. É que, ao contrário do que parecem pensar as isabéis moreirasdeste mundo, nem sempre o que nos surge como sendo um sinal de progresso é realmente um salto em frente da Humanidade. E poucas histórias o ilustrarão melhor do que o entusiasmo dos progressistas de há um século com a eugenia.

Não saltem já das cadeiras, não estou a comparar a eutanásia com eugenia. Não caio nessas ratoeiras nem pratico esse tipo de desonestidade argumentativa. O que quero sublinhar é que a eugenia, de que hoje pensamos horrores e vemos como um crime contra a Humanidade, já foi praticada em países avançados e defendida como um instrumento de libertação. Um dos países que mais entusiasticamente a adoptou, em especial através de práticas de esterilização de débeis mentais, foi a progressiva e social-democrata Suécia. Entre as grandes figuras que a defenderam contam-se nomes como John Maynard Keynes, o economista que hoje todos reverenciam à esquerda, mas que chegou a ser director da British Eugenics Society. William Beveridge, o homem cujos trabalhos fundamentaram a criação do SNS britânico, o Nacional Health Service, também era um defensor da eugenia, o mesmo sucedendo com criadores como George Bernard Shaw e, nos Estados Unidos, com cientistas e industrialistas como Alexander Graham Bell, o inventor do telefone.

Servem estes exemplos, e muitos outros que poderia acrescentar, para sublinhar que aquilo que há 100 anos aparecia como uma política progressista capaz de tornar as nossas sociedades melhores, limitando as vidas menos dignas dos menos capazes, é hoje unanimemente condenada – e não apenas por a eugenia ter sido levada a extremos genocidários pela Alemanha nazi. É condenada porque era realmente uma má ideia que teve trágicas e inumanas consequências.

Este é apenas um bom exemplo de que nem sempre a História segue o caminho que lhe parece ter sido destinado pelo “progresso” e pelos seus intérpretes. Mais: mostra que ninguém deve reivindicar a autoridade para determinar o que é esse mesmo “progresso”.

Neste nosso debate falou-se muito de liberdade, mas é bom não esquecer que a atitude de um verdadeiro liberal não é de considerar que só um determinado caminho, ou uma determinada evolução legislativa, é libertadora. Aquilo em que os genuínos liberais acreditam é que só temos a ganhar com o debate entre ideias rivais, que aquilo que hoje nos parece certo amanhã pode revelar-se errado, que as maiorias de hoje podem ser as minorias de amanhã e vice-versa. Como referiu recentemente Mario Vargas Llosaaquando da publicação do seu mais recente livro, “o liberalismo não só admite, como estimula a divergência, pois reconhece que a sociedade é composta por indivíduos muito diferentes e é importante preservá-la assim”.

É evidente que o discurso da “sacristia versus democracia” não choca apenas por ressuscitar um jacobinismo serôdio – choca pela arrogância da certeza da vitória final e pela soberba da divisão entre a proscrita “sacristia” e os demais. Choca mas não surpreende: o que está no coração desta atitude é a convicção profundamente iliberal de que lhes assiste uma “superioridade moral” que lhes é dada por estarem do lado certo da história. Mais: de que ele próprios são os juízes da História.

Um outro bom exemplo deste tipo de comportamento é a forma como um assessor parlamentar do Bloco de Esquerda, Mamadou Ba, o animador da manifestação contra a estátua do Padre António Vieira, embrulha o seu activismo. É militante anti-racista e ainda bem, mas isso não o autoriza a querer obrigar-nos a reescrever a nossa história, não procurando entendê-la no contexto de cada época, mas julgando-a de acordo com os critérios que ele próprio define. Pior: fazendo-o de acordo com uma nova correcção linguística que é apenas uma manifestação de uma nova “correcção política”

Todos sabemos que dominar as palavras e o seu sentido e policiar a forma como são utilizadas é uma das mais poderosas formas de impor um pensamento normalizado avesso a qualquer pluralidade (ainda agora vimos como isso sucedeu no caso dos ataques de certas ditas feministas ao anúncio contra o tabagismo). Foi por isso com um misto de estranheza e espanto que descobri esta semana, num texto que escreveu a propósito de um incidente na Feira do Livro, que existe um tipo de pessoas que merecem especial respeito e consideração: aquelas que designa por “sujeitos racializados negros”.

Confesso que tive alguma dificuldade em entender aonde queria chegar com esta definição, mas encontrei-a como uma muleta de linguagem já relativamente comum no Brasil. Seja qual for o seu sentido exacto (encontrei leituras relativamente contraditórias), é uma designação que resulta no reforço de uma identidade definida a partir da raça a que se pertence. O que não posso deixar de considerar paradoxal: quem passou a vida a defender que não faz sentido criar divisões com base na raça, como é o meu caso, só pode surpreender-se quando se diz combater o racismo reforçando as identidades raciais. Mas é isso que já aí está ou vem a caminho, pois é essa a lógica destas esquerdas pós-modernas que há muito deixaram de se inquietar realmente com os pobres para se ocuparem antes de identidades, destes activistas que encontram a sua razão de ser no fatiar da sociedade, dividindo-a em minorias segmentadas, cada uma com a sua respectiva causa.

Eu, que por ter a pele um pouco mais escura do que o habitual, já passei por árabe e por indiano, fico sem saber como me hei-de racializar, mas estou certo que Mamadou Ba não tem dúvidas: eu serei um “sujeito racializado branco”, logo um opressor (e Gabriel Mithá Ribeiro, que é negro mas não pensa como Mamadou, não passa de “um colonizado mental”).

E é nisto que estamos, nestes tempos de novos inquisidores.