Portugal deve atingir o pico da quinta vaga na próxima semana, a segunda de janeiro, apontou o epidemiologista Baltazar Nunes na reunião entre especialistas e decisores políticos esta quarta-feira no Infarmed.
É o efeito de um aumento estimado de 25% nos contactos sociais durante o Natal e da menor eficácia da vacina ao longo do tempo, colmatado com as medidas de contenção nas duas semanas seguintes e com a dose de reforço que está a ser aplicada.
O número de casos diários pode oscilar entre os 40 mil e os 130 mil: “Vamos ver uma inversão da tendência e a incidência a descer” se as duas semanas de contenção tiverem resultado em menos contactos sociais, mas o número de casos deve aumentar novamente após o levantamento das restrições.
Segundo os cálculos do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge (INSA), espera-se que as hospitalizações em enfermaria possam ficar entre as 1.300 camas e as 3.700 camas na última semana de janeiro ou primeira de fevereiro e as em UCI entre 180 e 450 camas, na primeira ou segunda semana de fevereiro.
Isto vai traduzir-se num “impacto muito elevado nos serviços de primeira linha” nas próximas semanas, ou seja, pressão sobre o SNS24, farmácias e urgências hospitalares. De resto, apenas no cenário com os números mais baixos é que Portugal fica abaixo das linhas vermelhas da ocupação em cuidados intensivos, que é de 255 camas, alerta o especialista: a Ómicron deve continuar a ter grande impacto no absentismo escolar e laboral, mas terá um impacto “moderado” nas hospitalizações, até possivelmente “baixo” na UCI.
Como se pode combater isto? “Atingir níveis elevados da vacinação de reforço”, sugere Baltazar Nunes, deixando ainda assim uma ressalva: “Como podemos ver, [os números] ficarão muito àquem do máximo observado no final de janeiro e início de fevereiro de 2021”.
Casos importam menos: há uma dissociação “inequívoca” entre ele e a gravidade da doença
Ainda assim, a médica especialista em saúde pública Raquel Duarte defendeu na mesma reunião a redução das medidas restritivas e uma transferência da avaliação do risco para a população — mas com sinais de alerta (incluindo os internamentos e outras linhas vermelhas) que permitam ativar restrições caso necessário.
A especialista propõe a manutenção de uma série de medidas gerais, entre as quais o uso dos certificados digitais, os testes frequentes, a proibição de consumo de bebidas alcoólicas na via pública e a continuação da utilização de máscara.
No caso de ser ativada a situação de alerta, há medidas que devem entrar em vigor, incluindo o teletrabalho sempre que possível, a intensificação de testes, a limitação da lotação na restauração e nos eventos públicos.
Atualmente, e segundo o último relatório de situação das autoridades de saúde, contabilizam-se 147 camas ocupadas por doentes com Covid-19 nos cuidados intensivos. Corresponde a 60% das camas que podem estar ocupadas antes de se atingir a linha vermelha. Na proposta da pneumologista Raquel Duarte, que também participou na reunião no Infarmed, se se atingirem os 70% (179 camas ocupadas) e o R(t) for superior a 1, são ativadas as medidas delineadas para a situação de alerta.
É que, tal como o epidemiologista Henrique Barros transmitiu na reunião, “não há razão nenhuma para continuarmos a raciocinar em termos do número de casos e muito menos a medir a evolução da infeção e os riscos que ela nos coloca contando diariamente os casos como fazíamos até agora”.
Henrique Barros: “Não há razão nenhuma para continuarmos a raciocinar em termos do número de casos”
“Há uma dissociação inequívoca entre o número de casos e a gravidade consequente, ou seja, a transformação da infeção em doença”, explicou o especialista, sublinhando que a vacinação mudou decisivamente a resposta à infeção pelo coronavírus.
Não vale a pena continuar a pensar em cenários de erradicação total do vírus, defendeu Henrique Barros: ele vai continuar presente na sociedade, mas com um impacto muito reduzido no quotidiano, uma vez que as novas variantes são menos patogénicas, os serviços de saúde têm melhores tratamentos disponíveis e é possível controlar a infeção.
Ainda assim, Henrique Barros deixa algumas incertezas na equação: não se conhece ainda o risco da variante Ómicron nas pessoas não vacinadas, não se conhecem detalhadamente os riscos associados à “Covid longa”, ainda não há certezas sobre as melhores estratégias de isolamento e quarentena; e ainda há dúvidas sobre a melhor resposta a dar às crianças, por exemplo, no que toca à vacinação.
Henrique Barros citou mesmo Mark Twain e afirmou que o anúncio do fim da pandemia será manifestamente exagerado. Mas deixou uma nota positiva: “Acreditamos claramente que com a vacinação e uma estratégia de testes podemos viver de uma forma muito próxima da normalidade”.
Apesar dos “valores históricos” de novos casos, mortalidade está a baixar
Pedro Pinto Leite, responsável pelo tratamento de dados da pandemia da Covid-19 na Direção-Geral da Saúde (DGS), também assumiu que nos “encontramos numa fase diferente da pandemia”, apesar de a incidência a 14 dias ser já de 2.007 casos por 100 mil habitantes e continuar em “tendência fortemente crescente”.
A incidência está a crescer em todas as regiões do país e em todos os grupos etários, sendo que o aumento “foi maior nos grupos etários mais jovens relativamente aos mais velhos”, diz Pinto Leite, que revelou ainda que a semana que passou foi aquela em que se realizaram em Portugal mais testes à Covid-19: um total de 1,7 milhões, na sua maioria testes rápidos. A percentagem de testes positivos é atualmente em torno dos 10%, taxa “superior ao valor de referência de 4%”.
A taxa de mortalidade encontra-se agora nos 19 óbitos por milhão de habitantes nas últimas duas semanas. Trata-se de uma taxa “abaixo do valor de referência”, que tem “apresentado uma tendência estável e muito abaixo dos valores que já tivemos na pandemia”. A mortalidade por Covid-19 em Portugal está “estável, diria decrescente”, situando-se ainda num cenário de mortalidade “moderada”.
“O risco de morte é substancialmente inferior nos indivíduos com esquema vacinal completo”, disse o especialista. Prova disso é o que acontece na faixa etária dos 80 anos ou mais: antes da vacina, 27% dos casos nesta faixa etária resultavam em morte. Com a vacinação original, esta percentagem reduziu-se para 8% a 9%. E com o reforço da vacinação baixou ainda mais, para cerca de 5%.
Variante Ómicron leva menos gente para o hospital
Ana Paula Rodrigues, investigadora do INSA, confirma que a variante Ómicron parece levar menos infetados para o hospital. Os primeiros dados sobre a variante Ómicron, que chegaram em dezembro da África do Sul, dizem que o risco de internamento dos casos infetados com Ómicron era cinco vezes menor que nos casos com variante Delta. Porém, a variante Ómicron tem uma capacidade de reinfeção cerca de 10 vezes superior à variante Delta.
Estudos norte-americanos confirmaram que a variante Ómicron tem um impacto menos grave na saúde dos infetados, conduzindo ao internamento e às urgências hospitalares menos de metade dos casos em comparação com a variante Delta.
Segundo Ana Paula Rodrigues, isto resulta de dois fatores: a menor gravidade da própria variante (de que João Paulo Gomes falou) e a imunização conferida às populações pela vacina: “A efetividade vacinal contra a variante Ómicron é mais baixa do que aquela que foi estimada para a Delta, mas após o reforço vacinal o que se vê é que há um aumento da efetividade“, explica.
Um reforço com a terceira dose da vacina tem potencial para elevar a eficácia da vacinação contra a variante Ómicron, no que respeita a evitar a hospitalização dos doentes, até 88% — alcançada duas semanas após a terceira dose.
A especialista conclui que a variante Ómicron tem, de facto, uma gravidade inferior à Delta, apresentando um risco de hospitalização que corresponde a 40% do risco relativamente à Delta (e a 30%, no caso de cuidados intensivos). A somar a isso, e apesar de a eficácia vacinal ser inferior à registada contra a variante Delta, o reforço da vacinação com a terceira dose pode elevar a proteção vacinal a níveis semelhantes.
Espera-se, portanto, uma elevada disseminação da doença, mas com um peso relativo da doença mais grave, conclui Ana Paula Rodrigues, sublinhando que a infeção é mais “benigna”, mas continuam a justificar-se medidas de segurança e o reforço da vacinação.
Variante Ómicron tem mais capacidade para infetar, mas menos “afinidade” com os pulmões
Mas nem só de vacinação se faz o sucesso da batalha contra o coronavírus, que já foi encontrada em circulação em mais de 90 países. Segundo João Paulo Gomes, investigador do INSA, as mutíssimas mutações da variante Ómicron conferem-lhe muito mais afinidade com as células do trato respiratório superior e menos afinidade com os anticorpos — por isso é mais infecciosa. No entanto, tem menos capacidade para entrar nos pulmões porque não tem tanta afinidade com as proteínas destes órgãos.
Por isso é que a variante Ómicron se multiplica cerca de 70 vezes mais rapidamente do que a variante Delta nas células das vias respiratórias superiores — como o nariz, a garganta e a traqueia — mas 10 vezes mais lentamente nas células dos pulmões. Apesar de todas estas diferenças entre as duas variantes, os dados recolhidos pelas autoridades de saúde em Portugal revelam que não há uma diferença significativa entre a carga viral desenvolvida pelos doentes infetados com a Ómiron e os doentes infetados com a Delta.
Retrato-robô da Ómicron. As 11 principais características da nova variante
A maior transmissibilidade não parece estar relacionada com a quantidade de vírus expelidos por aerossóis, mas sim à maior rapidez com que uma pessoa infetada se torna contagiosa e à maior capacidade de nova variante para escapar ao sistema imunitário.
Em Portugal, a responsabilidade de vigiar a evolução da variante Ómicron (e o surgimento de novas variantes no país) é precisamente do INSA. Habitualmente, são enviadas 500 a 600 amostras para sequenciação no Instituto Ricardo Jorge, mas “esta não é a estratégia ideal” no caso da variante Ómicron “porque tem um atraso de cerca de uma semana”.
Por isso, tem sido usada uma estratégia semelhante à que foi usada com a Alfa: monitorizando as falhas na identificação de uma das três regiões que os testes PCR analisam. Isto “constitui um valor preditivo enorme”, que permite “uma vigilância diária”, explica João Paulo Gomes.
É assim porque os testes PCR funcionam ao confirmar a presença nas amostra de três regiões moleculares nas partículas virais: o exame é positivo se as três regiões forem encontradas, negativo se nenhuma delas for detetado e inconclusivo se apenas uma das regiões for encontrada. Com a variante Ómicron, a tecnologia por trás dos testes PCR só consegue detetar duas regiões, mesmo em casos positivos, porque as mutações impedem a identificação da terceira. Assim, as amostras em que isso acontece são consideradas como sendo casos de infeção pela nova variante.
Ómicron em Portugal: a faixa etária dos 20 anos e o caso do Algarve
Na semana antes do Natal, a região de Lisboa e Vale do Tejo já tinha a Ómicron como mais prevalente e o Algarve tinha-a em níveis residuais — apenas 1%. Para o especialista, isto demonstra uma grande “heterogeneidade entre as regiões”.
Contudo, os valores subiram entretanto no Algarve, que continuam com um registo elevado de uma sublinhagem da Delta, provavelmente importada devido à mobilidade turística.
“Projetámos que até à semana do Natal cerca de 50% dos casos já fossem Ómicron, o que veio a verificar-se”, explica, apontando para o 20 dezembro como o dia em que a nova variante se tornou dominante. Olhando para a incidência da Ómicron por escalões etários, tem-se “a sensação que a grande disseminação teve a ver com o grupo etário dos 20 aos 29 anos”, resume o investigador.
Reino Unido e Dinamarca: mais hospitalizações, mas menos ocupação de UCI
Baltazar Nunes analisou também a situação no Reino Unido e Dinamarca, dois países com presença da variante Ómicron há mais tempo. “Os níveis maiores de incidência que se observam em Portugal também se observam no resto da Europa”, realçou, mas no caso britânico é claro que “a partir do momento em que se ultrapassam os 50% de casos há um aumento da incidência”.
Mas o crescimento diário em Portugal (12% ao dia) é superior ao registado na Dinamarca e Reino Unido, acrescentou Baltazar Nunes. “Devemos discutir as razões para isso”, apelou o especialista, sugerindo duas hipóteses: a maior testagem ou um efeito do período das festas. A boa notícia é que a taxa de ocupação de camas hospitalares em Portugal é de 100 camas por um milhão — muito inferior à registada em janeiro de 2021, com 670 por um milhão.
Isso sugere que há uma maior aceleração e transmissibilidade com esta variante. Em ambos os países, a incidência “ultrapassou os máximos históricos”.
No que diz respeito às hospitalizações, houve uma taxa de crescimento de 2% ao dia na Dinamarca e de 4,8% no Reino Unido. Isso corresponde a um aumento de 200 camas por um milhão de habitantes para 600 camas por um milhão de habitantes, no caso britânico — que o especialista considera ser um caso mais semelhante ao de Portugal.
“Mas até ao momento não se observa um crescimento das camas ocupadas em cuidados intensivos”, ressalva o especialista. Ou seja, as hospitalizações gerais tiveram tendência a aumentar, mas não as camas ocupadas em UCI.
Como os portugueses passaram o Natal com a variante Ómicron
Andreia Leite, da Escola Nacional de Saúde Pública, fez uma apresentação sobre o comportamento dos portugueses face ao vírus durante o período das festas que passou. Os dados foram recolhidos com base num questionário online que tem sido feito continuamente pela ENSP para “monitorizar as perceções sociais dos portugueses durante a Covid-19”. No período das festas, a amostra foi de 850 respostas.
Primeira conclusão: “A perceção do risco foi variando ao longo da pandemia”. Na última quinzena de dezembro, 67% dos inquiridos disseram ter uma perceção de risco “moderado ou elevado”. Sobre o uso de máscara em espaços fechados, os investigadores notaram que houve uma redução desse hábito, sobretudo na última quinzena de dezembro. Por outro lado, a frequência de testagem aumentou.
“Verificamos que a frequência de indivíduos que reportaram nunca ter realizado testes diminuiu na última quinzena”, sendo menos de 30% dos inquiridos na última semana de dezembro. As motivações das pessoas para se testarem eram sobretudo “a proteção de família e amigos”.
Quase todos os inquiridos (96%) garantiram que iam adotar medidas específicas durante a época festiva. A mais comum foi a realização de testes (71%), seguindo-se o arejamento dos espaços, a redução do grupo de pessoas e a garantia de participação apenas de vacinados.
A especialista retira destes dados uma conclusão: “Tem havido uma evolução da perceção de risco e dos comportamentos de proteção”, que considera coincidir com a maior incidência da doença. Sublinha que o uso de máscara decaiu durante as festas, mas que as pessoas têm tido preocupação em adotar outras medidas, nomeadamente a testagem.
Sobre a comunicação pública, Andreia Leite deixa uma recomendação: “Isto demonstra a necessidade de mensagens sobre os comportamentos a adotar, sobretudo sobre o que fazer caso os testes sejam positivos”, alertou.