O líder do PSD retirou a confiança política ao ex-autarca Joaquim Pinto Moreira, constituído arguido na Operação Vórtex — mas o deputado exerce as funções praticamente sem qualquer restrição. Oito dias depois dessa retirada pública de confiança, o deputado foi apontado pela direção do grupo parlamentar do PSD como membro efetivo da comissão parlamentar de Defesa e como membro suplente da comissão de Saúde, exatamente as duas comissões que integrava antes de ter suspendido funções — decisão que auto-revogou e levou a que o líder lhe retirasse confiança. A posição do grupo parlamentar, garante a direção do PSD, está alinhada com a de Luís Montenegro
Num email enviado aos deputados pelo chefe de gabinete do grupo parlamentar a 12 de junho, ao qual o Observador teve acesso, foi anexado um documento com o nome “Mapa das Comissões”, em que eram distribuídos os deputados do grupo parlamentar pelas várias comissões permanentes e pela comissão de inquérito em curso.
Confrontado pelo Observador com o facto de Pinto Moreira continuar a manter as posições nas duas comissões parlamentares, o líder parlamentar Joaquim Miranda Sarmento confirmou o facto com uma frase lacónica, ignorando que o líder retirou a confiança ao deputado em causa: “Os deputados pertencem a comissões”. Na mesma linha, o secretário-geral do PSD, Hugo Soares, disse ao Observador que “pertencer às comissões é um direito dos deputados”, que “não há descoordenação” e que este facto “não abre nenhuma exceção àquilo que o presidente disse”.
Ora, a lei não diz exatamente isso. O Regimento da Assembleia da República define como um dos poderes dos deputados “tomar lugar nas salas do Plenário e das comissões parlamentares e usar da palavra”. O próprio Estatuto dos Deputados estabelece como um dever dos deputados “participar nos trabalhos parlamentares e designadamente comparecer às reuniões do plenário e das comissões a que pertençam”.
Mas a participação numa comissão não só não é obrigatória (os líderes dos partidos que são deputados muitas vezes optam por não estar em nenhuma comissão para terem mais tempo para a liderança), como a decisão depende da bancada parlamentar (neste caso, da do PSD). O regimento é claro: “A indicação dos Deputados para as comissões parlamentares compete aos respetivos grupos parlamentares e deve ser efetuada no prazo fixado pelo Presidente da Assembleia da República.”
O que isto significa é que o grupo parlamentar do PSD tinha poder — mesmo que Joaquim Pinto Moreira não tenha passado a não-inscrito — para retirar o deputado daquelas comissões parlamentares. O líder do partido, Luís Montenegro, garantiu, na conferência de imprensa a 28 de maio, que Pinto Moreira a partir dali não ia “expressar a vontade política do grupo parlamentar”. E acrescentaria, quando foi novamente confrontado: o deputado não vai emitir a “opinião política do partido na prossecução do programa e das iniciativas de ação política do respetivo grupo parlamentar” e “doravante não vai expressar a posição política do PSD”.
Apesar desta garantia do líder do PSD — que foi elogiado interna e externamente por ter tido um posição dura com o amigo Pinto Moreira — tanto Joaquim Miranda Sarmento como Luís Montenegro consideram agora normal que o deputado seja representante do PSD (por vontade do grupo parlamentar) em comissões importantes como a da Defesa (particularmente num contexto de uma guerra na Ucrânia) e suplente na da Saúde (onde o deputado, nessa condição, tem todos os poderes dos efetivos, menos o de votar). Ou seja: o deputado que não ia mais expressar a posição política do PSD, é afinal um dos representantes do PSD nestas duas comissões.
Do Vórtex ao ataque público a Pinto Moreira
Joaquim Pinto Moreira é um amigo de longa data de Luís Montenegro. Rui Rio fez o favor de o colocar nas listas de deputados em lugar elegível (pelo Porto, não pelo círculo de Aveiro, onde está o concelho a que presidiu) e tudo se encaminhou para que o antigo autarca de Espinho ganhasse protagonismo com a chegada de Montenegro à liderança.
O antigo presidente da câmara de Espinho tornou-se não só vice-presidente do primeiro grupo parlamentar da era Montenegro, como também foi escolhido pelo líder para presidente da comissão de revisão da Constituição. Dias depois de ser suspeito na Operação Vórtex, Montenegro anunciaria numa entrevista à SIC que o deputado ia renunciar àquelas duas funções.
Operação Vórtex. Montenegro pressionado a afastar o amigo Joaquim
A questão na justiça foi evoluindo e, em março, Pinto Moreira foi constituído arguido no âmbito da mesma operação. O deputado decidiu, então, coordenado com Luís Montenegro, suspender o mandato. O problema foi que, cerca de dois meses depois, Pinto Moreira pediu para retomar o mandato sem dizer nada a Luís Montenegro.
Pinto Moreira pediu para voltar ao Parlamento à revelia e sem respaldo de Montenegro
Pinto Moreira expôs assim o amigo e líder, o que levou Luís Montenegro, três dias depois, a responder com estrondo: “A direção do PSD sob proposta minha decidiu: em primeiro lugar, retirar a confiança política ao deputado Pinto Moreira eximindo-o de representar o grupo parlamentar do PSD nos trabalhos parlamentares”. E explicou que o fazia precisamente pela deselegância de o regresso não ter sido coordenado: “Esta decisão é pura e simplesmente política e justifica-se na sequência da retoma não coordenada do mandato parlamentar em momento distante do prazo de suspensão legalmente permitido”.
Montenegro lembrava que, “se é verdade que o mandato é formalmente individual, não é menos verdade que ele tem uma dimensão material que o liga ao partido e ao programa de ação do partido”. E insistiu: “Foi esse sentido de participação conjunta e responsabilidade política objetiva que fundou a suspensão e devia ter sido esse o enquadramento de retoma do lugar”.
Na mesma ocasião, o líder do PSD foi questionado sobre se Pinto Moreira passaria a não-inscrito, ao que Montenegro respondeu: “Por nossa iniciativa, não”.
Um não-inscrito que podia encolher a bancada
A manutenção de Pinto Moreira nas comissões por parte da direção nacional pode ser uma forma de conter o ímpeto de o deputado passar a não-inscrito. Se o antigo autarca o decidisse fazer — algo que, por norma, fazem os deputados a quem é retirada a confiança política — ganhava até mais tempo de intervenção do que aquele que vai ter agora na bancada do PSD.
Um não-inscrito tem direito a duas declarações políticas por sessão legislativa e pode, por exemplo, solicitar ao Presidente da Assembleia da República a sua intervenção até um máximo de cinco debates em reunião plenária por sessão legislativa.
Relativamente a comissões parlamentares, os não-inscritos indicam aquelas em que quer participar ao Presidente da Assembleia da República, que, após ouvida a Conferência de Líderes, designa aquela ou aquelas a que o deputado deve pertencer. Em audições a ministros, por exemplo, os não-inscritos podem falar durante dois minutos na segunda ronda de perguntas.
Pinto Moreira já garantiu que não pretende passar a não-inscrito, algo que faria com que o PSD passasse de 77 para 76 deputados. O ex-autarca chegou a dizer ao jornal Público, dois dias depois da Montenegro lhe retirar a confiança: “Sou e ficarei como deputado do grupo parlamentar do PSD. Tenho gabinete já atribuído e farei parte de comissões parlamentares”. O desejo, que parecia um desafio e uma afronta ao líder, cumpriu-se. E, afinal, foi concertado.
Deputados como Joacine Katar Moreira (Livre), Cristina Rodrigues (PAN) ou Luísa Mesquita (PCP) são alguns exemplos de deputados que estiveram nos últimos anos como não-inscritos, precisamente após os respetivos partidos lhes retirarem a confiança.
Joaquim Pinto Moreira foi contactado pelo Observador, mas não respondeu às perguntas antes da data de publicação deste artigo.