Os dados são de 17 de abril, data em que terminou a segunda fase do estado de emergência. Nessa altura, as autoridades deviam ter sob vigilância um total de 4.708 portugueses que, por estarem infetados ou haver suspeitas disso, estavam obrigados ao confinamento. Porém, a falta de informação exata sobre quem eram e onde moravam essas pessoas fez com que a PSP e a GNR apenas conseguissem vigiar 2.614 pessoas, pouco mais de metade do total.
A informação consta de um relatório de avaliação das medidas do estado de emergência, divulgado esta terça-feira pelo Governo, que mostra os problemas em vários distritos: em Castelo Branco, por exemplo, apenas uma pessoa devia estar a ser vigiada, mas não havia dados suficientes para saber, por exemplo, quem era ou onde estava; em Lisboa, das mais de mil pessoas que deviam estar sob vigilância, havia informação apenas sobre 175.
O confinamento obrigatório de quem está doente com Covid-19 foi anunciado pelo primeiro-ministro no dia 19 de março, um dia depois da publicação do decreto do Presidente da República sobre o estado de emergência. Na altura, António Costa explicou que haveria três níveis de confinamento: obrigatório para doentes e pessoas sob vigilância ativa; dever especial de recolhimento para idosos e grupos de risco (com poucas exceções permitidas); e dever geral de recolhimento para toda a população, com um maior número de exceções autorizadas.
O estado de emergência viria a ser renovado por mais duas vezes, estando o terceiro período deste estado de exceção ainda em vigor até ao dia 2 de maio — a partir do qual já não será renovado. No relatório divulgado esta terça-feira, que diz respeito ao segundo período durante o qual o estado de emergência esteve em vigor (de 3 a 17 de abril), surgem preocupações manifestadas pelas autoridades responsáveis pela vigilância daqueles que estão sujeitos ao confinamento obrigatório.
Para que a GNR e a PSP possam vigiar quem está obrigado ao confinamento, as autoridades de saúde partilham com as autoridades um conjunto de listas que incluem o nome, contactos e morada, entre outros dados, das pessoas em questão. Mas essas listas têm sido insuficientes para que as polícias façam o seu trabalho. “Constata-se que 44,5% das identificações constantes nas listagens estão incompletas, inibindo-se assim a prossecução das medidas de vigilância ativas“, lê-se no relatório.
Problemas em quase todos os distritos
Segundo informações recolhidas pelo Observador, há vários tipos de erros nas listas que chegam às forças de segurança e que neste momento estão a ser enviadas pelos agrupamentos de centros de saúde à força de segurança que tiver jurisdição em cada parcela do território. Há pessoas que surgem na lista com moradas incompletas (sem número da porta ou sem andar, por exemplo), inexistentes ou desatualizadas — e também há pessoas, ainda que poucas, que continuam a figurar na lista e, quando abordadas pelas autoridades, comprovam já ter feito dois testes negativos, estando já curadas da Covid-19.
O documento inclui uma tabela com o número de vigilâncias ativas por distrito, por parte de cada força de segurança, e com o número de casos em que os dados, por serem incompletos, são inutilizáveis. Alguns casos destacam-se particularmente:
- No distrito de Viseu, até, pelo menos, 17 de abril, as autoridades não estavam a vigiar nenhuma pessoa — mas deviam estar a vigiar pelo menos 16. Não o conseguiam fazer devido ao facto de os dados sobre estes cidadãos estarem incompletos.
- No distrito de Lisboa, deviam estar a ser vigiadas pelo menos 1.028 pessoas. Porém, as autoridades não conseguiam ter informações completas sobre 83% dos cidadãos que deviam estar a vigiar e só tinham sob vigilância 175 pessoas.
- No distrito de Castelo Branco, só uma pessoa devia estar a ser vigiada. Mas os dados sobre este cidadão estavam, pelo menos a 17 de abril, incompletos e impediam as autoridades de o fazer.
- Nos distritos de Aveiro, Bragança, Évora, Lisboa, Portalegre e Vila Real havia mais pessoas por vigiar do que a ser vigiadas.
- Apenas em dois distritos — Beja e Guarda — as autoridades estavam a vigiar 100% das pessoas abrangidas pela medida. Em ambos os casos os números são relativamente baixos: 11 pessoas em Beja e 12 na Guarda.
Ao longo do relatório, que inclui as posições de vários organismos sobre a forma como decorreu a aplicação das medidas do estado de emergência e as atas das reuniões da estrutura responsável pela monitorização, repetem-se as referências às dificuldades de comunicação entre autoridades de saúde e forças de segurança.
Um relatório da GNR menciona que, “como oportunidade de melhoria no âmbito do relacionamento operacional, importa continuar a reforçar a eficácia do mecanismo de ligação e de comunicação com a Autoridade de Saúde Nacional e com os Agrupamentos dos Centros de Saúde” — e dá o exemplo das “listas de confinamento obrigatório”.
Outra referência surge na ata de uma reunião da estrutura da monitorização do estado de emergência, presidida pelo ministro da Administração Interna. Numa das reuniões, Eduardo Cabrita admite “algumas dificuldades na comunicação das listas nominativas de pessoas sujeitas a confinamento domiciliário obrigatório (assegurada a privacidade)”, segundo se lê na ata da reunião de 7 de abril.
Nessa mesma reunião, também o comandante-geral da GNR, Luís Botelho Miguel, sublinhou que “ainda não foram recebidas todas as listas“. Ao que o Observador apurou, o problema mantém-se — sobretudo no que diz respeito à atualização das listas —, mesmo que alguns casos possam já ter sido corrigidos.
Abastecer o carro ou expulso pelo irmão. As justificações de quem não cumpriu confinamento
As listas são essenciais para que PSP e GNR possam garantir que quem está obrigado a ficar em casa, por estar infetado ou ser um caso suspeito, fica mesmo. Se não o fizerem, estão a cometer um crime. Esta terça-feira, o Ministério da Administração Interna revelava que já tinham sido detidas pelo menos 34 pessoas por violarem o dever de confinamento obrigatório, a que se somavam 48 detidos por desobediência ao dever geral de recolhimento domiciliário e um por desobediência ao dever especial de confinamento.
É o caso, por exemplo, de uma mulher de 78 anos que foi detida quando se encontrava a fazer compras num Pingo Doce de Ovar — quando a cidade ainda se encontrava abrangida pela cerca sanitária —, depois de ter ido ao centro de saúde de Esmoriz para pedir medicamentos. O caso, que ocorreu a 6 de abril, é apenas uma das ocorrências relatadas pela PSP num documento que acompanha o relatório do Governo divulgado esta terça-feira.
Em Gondomar, um homem de 72 anos foi detido no dia 10 de abril por se encontrar infetado na rua, violando o confinamento a que estava obrigado. Uma situação semelhante foi registada no mesmo dia em Portalegre, mas com um cidadão de 19 anos.
A PSP também encontrou quem se tentasse justificar por estar a violar o confinamento obrigatório. Na Marinha Grande, a 13 de abril, uma patrulha foi a casa de um cidadão que estava obrigado a permanecer em casa. Não o encontrando, os polícias esperaram que regressasse. Quando chegou a casa, a pessoa “alegou que tinha ido abastecer a sua viatura particular“. A justificação não era válida, por isso os agentes da PSP detiveram o homem.
Na Póvoa de Varzim, os agentes da PSP encontraram na rua um cidadão que devia estar em confinamento. Quando lhe perguntaram o que fazia na rua, respondeu que tinha sido expulso de casa pelo irmão.