Computação quântica ainda soa a ficção científica, mas estamos cada vez mais perto do momento em que se torna realidade. Na quarta-feira, a Google anunciou que tinha atingido a supremacia quântica. Pelo menos, é certo que é uma necessidade à qual não conseguimos escapar: os processadores atuais são cada vez mais potentes e mais pequenos, mas estamos a chegar a um limite, lembra Carlos Fiolhais. O físico da Universidade de Coimbra vê na computação quântica o futuro dos cálculos mais complexos.
A Google apresentou uma prova de conceito com um protótipo de um computador quântico, mas Yasser Omar, investigador no Instituto de Telecomunicações, quer fazer o derradeiro teste à computação quântica e ver se esta sobrevive aos problemas computacionais mais complexos do mundo, aqueles criados pela investigação experimental em Física de Partículas.
O Observador falou com os dois cientistas sobre este computadores, que podem estar simultaneamente em dois estados e que, exatamente por isso, têm processadores tão potentes.
Google diz que atingiu a “supremacia quântica” com um novo processador, mas a IBM discorda
O que é a supremacia quântica?
A Google afirma ter atingido a “supremacia quântica”. Num artigo publicado na Nature, afirmou ter conseguido que o seu protótipo de computador quântico resolvesse em três minutos e 20 segundos o que um supercomputador — qualquer coisa como 100 mil computadores como o que tem na secretária — demoraria 10 mil anos a resolver.
A IBM, que tem um protótipo semelhante, diz que a comparação com o computador clássico não foi bem feita e não teve em consideração as capacidades dos supercomputadores. Os cientistas da IBM afirmaram num blogue da empresa que “uma simulação ideal da mesma tarefa pode ser feita por um sistema clássico em 2,5 dias e com maior fiabilidade”.
Quando as guerras comerciais se misturam com a ciência torna-se difícil para os cientistas dizer quem pode ter razão, diz Yasser Omar, especialista em computação quântica no Instituto Superior Técnico, mas não tem dúvidas de que o que a Google conseguiu é um marco histórico. “O impacto pode não ser tão grande, mas é a primeira vez que se conseguiu ter um processador quântico mais rápido do que um processador clássico.”
Esta é a definição de “supremacia quântica”: um computador quântico capaz de fazer algo que o computador clássico não consegue. Pelo menos, esse era o objetivo que tinha John Preskill, o físico teórico do Instituto de Tecnologia da Califórnia que cunhou o termo em 2012. Agora, num artigo da Quanta Magazine, reconhece que o termo supremacia pode ter uma conotação negativa (como em “supremacia branca”) e que só faz com que se empole ainda mais o já empolado campo da tecnologia quântica.
Os computadores quânticos vão substituir os computadores clássicos?
A crítica da IBM ao anúncio da “supremacia quântica” não se refere apenas ao exagero que os 10 mil anos apontados pela Google (para o cálculo com um processador clássico) representam, mas pela própria conotação de supremacia. Para a IBM, “os computadores quânticos nunca reinarão ‘supremos’ sobre os computadores clássicos, mas trabalharão em conjunto com eles, pois cada um tem suas forças únicas”.
Carlos Fiolhais, físico da Universidade de Coimbra, concorda que os computadores quânticos não vão substituir os computadores clássicos. “Nunca serão uma coisa que se pode trazer como um telemóvel na mão.” Até porque este tipo de computadores, para funcionarem como quânticos, têm de ser mantidos a temperaturas incrivelmente baixas. Para o divulgador de ciência, poderemos a vir a usar os computadores quânticos, mas através da internet.
O físico lembra que os computadores clássicos são, virtualmente, capazes de fazer todos os tipos de cálculos, mas os problemas mais complexos podem demorar tanto tempo que se torna incomportável fazê-lo num computador convencional. “Para o tipo de problemas para os quais os computadores clássicos já são eficientes não vale a pena substituí-los”, acrescenta Yasser Omar. “O computador quântico vai ser um complemento para aqueles problemas que são muito lentos nos computadores atuais.”
Para os cálculos mais complexos, que um dia poderão vir a ser resolvidos por um único processador quântico, há uma solução que tem sido posta em prática: dividir o problema-chave em situações mais pequenas e colocar uma série de computadores em rede para chegar a uma solução final.
É o que se faz, por exemplo, com a grande quantidade de dados criada pelas experiências do CERN, a Organização Europeia de Física Nuclear (Suíça), que, por cada colisão de partículas, forma milhares de outras partículas para serem analisadas — e há 600 milhões de colisões por segundo. “O CERN tem os problemas computacionais mais difíceis do mundo”, diz Yasser Omar, coordenador do grupo de Tecnologia Quântica do Instituto de Telecomunicações. A equipa do instituto vai liderar o projeto QuantHEP, que pretende avaliar se os computadores quânticos serão uma mais valia na análise dos dados resultantes destas experiências ou não.
Pé no acelerador de partículas! O que fazer com 600 milhões de colisões por segundo?
Qual é a diferença entre um computador quântico e um convencional?
Os computadores convencionais têm um sistema binário, funcionam com 0 e 1, e toda a informação vem codificada em combinações destes dois algarismos. Num computador clássico só podemos ter uma coisa de cada vez: ou 0 ou 1, como uma luz que ou está acesa ou está apagada.
A Física Quântica permite, porém, que as haja sobreposição dos dois estados, como se a luz pudesse estar simultaneamente acesa e apagada. Carlos Fiolhais admite que a ideia é difícil de perceber, porque só acontece a uma escala infinitamente pequena, muito diferente daquela em que vivemos, mas é taxativo ao dizer que “a teoria quântica funciona muito bem nessa escala”.
A vantagem do sistema quântico, que pode ter os dois estados sobrepostos, é “ter muito mais espaço para trabalhar”, afirma o físico, porque se podem ter múltiplas combinações em simultâneo e o processo de cálculo é muito mais rápido. É como ter vários computadores a trabalhar em paralelo, mas usando um só processador.
Por que é que o anúncio da Google foi tão relevante?
A experiência da Google é uma “prova de existência”, diz Carlos Fiolhais. É uma demonstração da viabilidade de uma tecnologia: computadores que podem fazer cálculos complexos a uma velocidade incrível. E, pela primeira vez, um processador quântico conseguiu manter-se estável o suficiente para ser mais rápido do que um processador convencional. O cálculo usado nesta demonstração, na verdade, não tem qualquer utilidade prática, mas o físico não tem dúvidas quanto à relevância da experiência. “Estou convencido de que a computação quântica vai ser a computação de futuro.”
John Preskill deixa claro, no entanto, que o exercício de geração de números aleatórios realizada pelo protótipo da Google foi cuidadosamente desenhado para ser superior aos supercomputadores clássicos e não resolveu nenhum problema pertinente para a sociedade. Ainda assim, se um pequeno processador, com apenas 53 qubits (bits quânticos), conseguiu um resultado tão interessante, abre-se a porta para o que pode conseguir um computador quântico com milhares ou milhões de qubits.
Aqui, surge um dos maiores obstáculos, como refere Yasser Omar: se fazer um protótipo como este já é difícil, pior será transformá-lo num computador útil. “É um desafio mais tecnológico e de engenharia.” É que, para funcionar corretamente, um computador quântico tem de ser colocado a temperaturas muito baixas, tem de estar no vácuo e não pode sofrer nenhuma interferência do exterior. “É difícil manter o regime quântico suficientemente isolado”, confessa o investigador. Qualquer perturbação pode ser o suficiente para introduzir erros nos cálculos e é na prevenção e correção destes erros que a investigação vai ter de se focar.
Yasser Omar trabalha nesta área há 20 anos, mas não consegue prever quando é que teremos computadores quânticos a funcionar com problemas reais. O que pode dizer é que “do ponto de vista tecnológico tem sido um desenvolvimento rapidíssimo”, muito mais depressa do que a própria comunidade científica poderia esperar. Mas quando esse dia chegar, poderemos ter os processadores quânticos a procurar moléculas úteis para usar na medicina, melhores cálculos de trajetórias para os carros autónomos, previsões meteorológicas mais precisas ou cálculos que usam bases de dados enormes.