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TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Porque se morre tanto de doenças do cérebro e aparelho circulatório? Faltam camas para AVC, faltam médicos, falta reabilitação cardíaca

O cardiologista Filipe Macedo, coordenador do Programa Nacional das Doenças Cérebro-Cardiovasculares, defende mais reabilitação, educação para a saúde e tratamento atempado da insuficiência cardíaca.

As doenças cérebro-cardiovasculares (DCCV) continuam a ser a principal causa de morte em Portugal. Segundo dados recentes do Instituto Nacional de Estatística, os casos de AVC estiveram na origem do maior número de mortes no país em 2022 (9 616, representando 7,7% do total nacional). E os enfartes foram responsáveis por 3908 mortes, o que representou 3,1% da mortalidade total e uma diminuição de 0,7% em relação ao ano anterior. No entanto, de acordo com o cardiologista Filipe Macedo, coordenador do Programa Nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares (PNDCCV), da Direção Geral da Saúde, tem-se assistido, nos últimos anos, a uma redução da mortalidade nestas doenças, em particular no enfarte agudo do miocárdio. Apesar dos avanços registados — nomeadamente com a criação da Via Verde AVC, em 2006, e da Via Verde Coronária, em 2007, e com a abertura de salas de hemodinâmica [onde se faz o diagnóstico e tratamento de doenças cérebro-cardiovasculares, através de procedimentos como o cateterismo, em caso de enfarte] nos hospitais da Covilhã, Aveiro e Guimarães, há ainda muito por onde melhorar.
Em entrevista ao Observador, Filipe Macedo sublinha a importância de combater a falta de sensibilização, da educação da população para estes temas, de ampliar a divulgação sobre a prevenção cardiovascular e a morte súbita e de tratar atempadamente a insuficiência cardíaca, além de apontar algumas questões que não dependem das autoridades de saúde, mas dos sucessivos governos. E lamenta o facto de o Plano de Emergência para a Saúde não dar prioridade às DCCV…

As doenças cérebro-cardiovasculares (DCCV) são a principal causa de morte e incapacidade prematura antes dos 65 anos em Portugal. Quais os números mais atualizados?
Sim, as DCCV continuam a ser primeira causa de morte em Portugal. No entanto, nos últimos anos tem havido uma descida consistente da mortalidade por estas doenças. Neste momento, morre-se um pouco menos de enfarte agudo do miocárdio, o que é uma boa notícia. A mortalidade também tem vindo a diminuir no AVC, mas este ainda tem um peso importante por causa da hipertensão arterial. Em Portugal há muitos doentes hipertensos, grande parte devido a excessos alimentares, nomeadamente a uma alimentação rica em sal, ao sedentarismo e à obesidade. É preciso fazer uma prevenção mais agressiva no que respeita aos fatores de risco para que haja menos doença cérebro-cardiovascular.

O AVC mata mais do que o enfarte?
Mata. Falando de percentagens, as doenças neoplásicas [cancro] e as DCCV são responsáveis por quase 50% da mortalidade em Portugal, sendo as DCCV as “campeãs” nesta matéria, no que respeita a dados de 2022. Destas, 7,7% das mortes são por doenças cerebrovasculares (AVC) e 5,5% dizem respeito a doenças isquémicas do coração, destacando-se o enfarte agudo do miocárdio com uma percentagem de 3,1%. Dados do INE, relativos ao ano de 2022, indicam que as pessoas mais idosas, acima dos 65-70 anos, são as mais afetadas pelo AVC, enquanto a doença coronária atinge idades mais jovens. Ainda assim, os números estão a baixar. Antes da implementação da Via Verde AVC e da Via Verde Coronária, a mortalidade era muito elevada, mas de então para cá [2006-2007] a situação tem vindo a melhorar progressivamente. No entanto, as pessoas têm de ter noção que, perante sintomas de AVC ou de enfarte, não devem ir para a urgência pelos próprios meios. A nossa mensagem como médicos consiste em dizer à população que, perante um mal-estar, como dor no peito, transpiração súbita, sensação de peso no peito ou nos braços e náuseas deve chamar o 112. Nunca deve ir para o hospital pelos seus próprios meios.

Ainda há muitas pessoas a deslocarem-se por meios próprios quando têm sintomas de AVC ou de enfarte, que nem sempre os identificam como tal e, por isso, não contactam o 112…
Exatamente. E ao fazerem isso estão a perder uma ajuda valiosa. Quando se fala das Vias Verdes [AVC e Coronária] e de situações agudas, quer de AVC, quer de enfarte, a pessoa transportada pelo INEM não precisa de fazer triagem quando chega ao hospital e começa logo a ser tratada.

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"Portugal nunca investiu muito em reabilitação cardíaca. Existem 25 centros no país, mas nunca nos empenhámos o suficiente nesta área. E isto é tão importante como tomar alguns medicamentos. É fundamental, senão obrigatório, que as administrações hospitalares e as direções dos serviços de cardiologia estejam empenhadas nesta questão. Enquanto a tutela ou a Ordem dos Médicos não derem instruções para que os serviços de cardiologia tenham obrigatoriamente reabilitação cardíaca, não vamos melhorar nesta área."

E esse passo é essencial porque há um tempo recomendado para se iniciar o tratamento?
Os primeiros 90 minutos – desde o início dos sintomas até o doente ser avaliado, diagnosticado e tratado no laboratório de hemodinâmica – são fundamentais. Quanto mais rápido se der início ao tratamento, menos sequelas para o músculo cardíaco. Ou seja, maior será a probabilidade de evitar o aparecimento de insuficiência cardíaca mais tarde.

Ainda em relação aos números das DCCV, os dados do INE já refletem o impacto da pandemia?
Sim. Em 2020, os óbitos por doença cerebrovascular aumentaram para 11 422. Em 2021 baixaram para 9 594 e, em 2022, aumentaram 0,2%, registando-se 9 616 mortes. Devido ao medo da Covid-19, os doentes com situações agudas chegavam ao hospital muito mais tarde e com problemas que não se viam há muitos anos. Tivemos muitas pessoas com enfartes agudos do miocárdio que deviam ser tratadas nos primeiros 90 minutos após o início dos sintomas, mas que só iam ao hospital dois ou três dias depois, chegando já com complicações graves ou mesmo ruturas cardíacas.

Fala-se muito de AVC e enfartes. Mas existem outras DCCV, como a angina de peito, a fibrilhação auricular ou a insuficiência cardíaca. Para o AVC e enfarte há formas de responder rapidamente porque são episódios agudos. Mas outras doenças são silenciosas. Entre a população portuguesa com mais de 50 anos, uma em cada seis pessoas tem insuficiência cardíaca, mas 90% nem sequer sabe que tem essa doença. O que é urgente fazer para travar estes números?
Ficámos alarmados com o elevado número de doentes que encontrámos com insuficiência cardíaca. Segundo o estudo PORTHOS  [uma iniciativa da Sociedade Portuguesa de Cardiologia e da Astrazeneca], mais de 700 mil portugueses vivem com esta doença, o que é, de facto, um número demasiado alto. Outro aspeto a assinalar é que há uma percentagem elevada de doentes que não têm noção que têm insuficiência cardíaca. Estes resultados devem-se, em parte, ao tratamento inadequado das doenças cardiovasculares. Se os doentes não tratarem adequadamente as doenças das artérias coronárias, como a angina de peito e o enfarte agudo do miocárdio, o músculo cardíaco vai adoecer, levando ao aparecimento da insuficiência cardíaca.

Daí a importância da prevenção.
Exatamente. Daí a importância da prevenção, não só dos fatores de risco que podem conduzir a esta doença – obesidade, tabaco, diabetes, entre outros –, mas também de um diagnóstico precoce de quem já tem a doença e não sabe. Por essa razão, é fundamental que os doentes consultem regularmente o seu médico de família, que está apto a tratar desta doença.

"Não, não fomos ouvidos" [relativamente ao Plano de Emergência para a Saúde]. Nem a coordenação do PNDCCV nem os cardiologistas.

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Apesar de não ser o objetivo principal, o estudo acabou por revelar desigualdades regionais no que diz respeito ao número de casos.
Exato. O trabalho da Sociedade Portuguesa de Cardiologia mostrou uma grande disparidade regional, com o Alentejo a apresentar o dobro dos doentes com insuficiência cardíaca. Este resultado relaciona-se com o facto de a cobertura de médicos de medicina geral e familiar ser um pouco pior no Alentejo do que, por exemplo, na região Norte. Desta forma, como as pessoas vão menos ao médico, os casos que poderiam ter sido detetados passam despercebidos e os doentes, por falta de conhecimento, acabam por desenvolver insuficiência cardíaca não tratada. É preciso tratar mais precocemente estes doentes para não evoluírem para uma situação catastrófica, porque já se morre mais de insuficiência cardíaca do que devido a algumas neoplasias (cancros). Para isso, as pessoas devem estar atentas aos sintomas, vigiar regularmente os fatores de risco cardiovascular e fazerem uma consulta regular com o médico assistente. Se isto acontecer, podemos tratar estes doentes mais cedo e evitar a sua morte.

Falando de insuficiência cardíaca: para quando a comparticipação pelo Serviço Nacional de Saúde (SNS) das análises específicas para a deteção precoce da doença, com as BNP e NTproBNP [análises que mostram a quantidade de hormonas libertadas na corrente sanguínea em resposta ao aumento do esforço ou dilatação do coração]?
O PNDCCV, em conjunto com a Direção Executiva do SNS, publicou em dezembro de 2023 um trabalho sobre as redes de referenciação hospitalar de cardiologia, cardiologia pediátrica e cirurgia cardíaca, no qual recomenda a prescrição desta análise pela medicina geral e familiar, uma vez que são os médicos de família que estão em contacto com estes doentes. Esta é uma simples análise ao sangue que permite ver se a pessoa tem os níveis de BNP ou NT-proBNP normais. Isso faz toda a diferença porque o utente pode ser precocemente tratado perante uma suspeita de insuficiência cardíaca, quando ainda se encontra numa fase sem sintomas.

E já há uma data prevista para a aprovação dessa recomendação?
A informação mais recente que recebi da Direção Executiva a esse respeito é que o assunto já estava no Ministério da Saúde para ser promulgado, ou seja, para que esta medida possa ser posta em prática e os médicos de família possam prescrever a análise. Mas como, entretanto, houve a mudança do governo, estamos a aguardar o desenrolar da situação.

Porque é que a medicina geral e familiar não tem acesso a exames médicos que facilitariam a prevenção, o diagnóstico precoce e o tratamento atempado de algumas doenças? Como o Mapa para a hipertensão, o doppler para a doença valvular ou a TAC e ressonância magnética para o diagnóstico da angina de peito.
Estamos numa fase de transição em relação a este assunto. Tal como as análises específicas para a deteção precoce da insuficiência cardíaca, também esses meios complementares de diagnóstico foram recomendados no documento da Rede de Referenciação Hospitalar de Cardiologia que elaborámos. Cabe agora ao Ministério da Saúde aprovar esta proposta de atualização para que os médicos de família possam pedir esses exames nos cuidados de saúde primários.

"Há uma tendência crescente para que os médicos de família tenham acesso aos registos clínicos. Mas nessa questão o problema prende-se com a medicina privada. Há uma grande percentagem de doentes que recorrem ao privado, mas não existe ligação entre o que acontece nestes dois setores. A tutela deveria arranjar forma de aproximar o sistema social, o sistema privado e o sistema público, para evitar a realização de exames repetidos e, assim, poupar dinheiro."

O SNS parece estar muito focado na resposta imediata a eventos agudos como o AVC e o enfarte. Mas após esta fase, e apesar de aumentar o risco de voltar a ter um evento, a prevenção secundária e a reabilitação têm lacunas. Existem relatos que alertam para as grandes dificuldades destes doentes após a alta hospitalar. Já é possível haver um contacto direto entre o hospital e os médicos de família e a partilha de casos clínicos diretamente?
A situação está cada vez mais agilizada, havendo uma tendência crescente para que no SNS os médicos de família tenham acesso à informação que consta no SClínico | Cuidados de Saúde Primários [sistema que permite aos profissionais de saúde a consulta dos registos clínicos]. Há casos que podem ainda não funcionar tão bem quanto é desejável, mas ao nível do SNS essa situação está a melhorar. Para mim, o grande problema prende-se com a medicina privada. Há uma grande percentagem de doentes que recorrem ao privado, mas não existe qualquer ligação entre o que acontece nestes dois setores. A tutela deveria arranjar uma forma de aproximar quer o sistema social, quer o sistema privado, quer o sistema público para evitar a realização de exames repetidos e, assim, poupar dinheiro.

O que poderá o SNS fazer em relação à prevenção secundária para prevenir a repetição de eventos agudos?
De uma forma geral, os serviços de cardiologia a nível nacional estão bem organizados e os doentes saem dos hospitais com uma estratégia bem delineada. Mas é importante melhorar a acessibilidade às unidades de reabilitação cardíaca [que incluem um médico fisiatra e/ou cardiologista para fazer o seguimento dos doentes após um evento cardíaco contribuindo para o seu regresso à vida normal através da adoção de estilos de vida saudáveis]. Portugal ainda tem poucos e esta é uma área importante na qual tem de se investir porque ajuda os doentes a integrarem-se mais facilmente na rotina habitual. Com o acesso a estas unidades as pessoas passam a ter menos medo de fazer exercício, a ter apoio nas consultas de desabituação tabágica e nas consultas de nutrição e, se for necessário, também têm acesso a consultas de psicologia. Isto tem de ser incentivado em Portugal até porque surge na sequência do que é recomendado nos casos de quem tem uma doença coronária aguda e sai do hospital com uma estratégia bem delimitada. Por norma, os doentes são seguidos no primeiro ano pós síndrome coronária aguda, sendo depois referenciados para os colegas de medicina geral e familiar.

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É conhecida a diferença de acesso a cuidados para as DCCV entre o litoral e o interior. Alguns hospitais de distrito, como os da Guarda, Portalegre, Castelo Branco e Beja não têm Serviço de Cardiologia, tal como alerta a Sociedade Portuguesa de Cardiologia. Esta falha não estará também na base do que corre menos bem no tratamento destas doenças?
De facto, existem desigualdades a este nível, mas tenho uma notícia para partilhar. No espaço de um ano e meio conseguimos abrir uma sala de hemodinâmica no Serviço de Cardiologia do Hospital da Covilhã, situação que já se arrastava há 12 anos, onde já se fizeram cerca de 500 cateterismos desde fevereiro deste ano. Foi ainda possível abrir mais duas salas de hemodinâmica, uma em Aveiro e outra em Guimarães. As pessoas que sofrem enfartes do miocárdio, por exemplo, já conseguem ser tratadas atempadamente, evitando piores prognósticos.

Já não precisam de se deslocar até ao Porto ou Coimbra?
Não. Com esta mudança, os doentes da Guarda e de Castelo Branco são encaminhados para o hospital da Covilhã, onde têm uma sala de hemodinâmica. A população da Covilhã, Aveiro e Guimarães estava muito desprotegidas em relação a estes cuidados, mas passou a estar em pé de igualdade com a de outras zonas do país. Posso mesmo afirmar que, neste momento, todos os portugueses estão a menos de 90 minutos de uma sala de hemodinâmica se chamarem o INEM. Isto é uma mudança de paradigma, pois significa que as pessoas são bem tratadas na situação aguda do enfarte agudo do miocárdio.

E no sul do país, o tratamento das DCCV é mais adequado no Algarve em comparação com o interior?
Embora não exista um centro de cirurgia cardíaca na região, o Hospital de Faro funciona bem no que diz respeito à área da cardiologia, tendo também uma sala de hemodinâmica. O mesmo acontece em Évora.

Quanto às listas de espera para cirurgia cardíaca e para a intervenção TAVI (Implante Percutâneo de Válvula Aórtica), a solução pode passar pela criação de mais dois centros de cirurgia cardíaca fora de Lisboa e Porto, como proposto por um grupo de trabalho do SNS?
Enquanto coordenador do PNDCCV, fui um dos peritos que integrou esse grupo de trabalho. Chegámos à conclusão de que é importante abrir mais dois centros de cirurgia cardíaca em Portugal para responder ao aumento da procura e diminuir o tempo de espera das cirurgias. Um seria no Norte, eventualmente em Braga, e o outro no sul do país, eventualmente em Faro. A localização terá de ter em conta critérios de densidade populacional e de distanciamento geográfico, dependendo também da existência de médicos, pois formar um cirurgião cardíaco sénior demora muitos anos.
Outra questão importante, que está relacionada com os centros de cirurgia cardíaca, tem que ver com o envelhecimento da população e com a estenose aórtica no idoso. É uma doença muito comum acima dos 70 anos, não havendo praticamente limite para tratá-la, a não ser o estado biológico da pessoa. Por exemplo, se uma pessoa tiver 90 anos e um excelente estado biológico, nada impede que seja candidata para a colocação de uma válvula aórtica percutânea (TAVI) – intervenção que consiste na substituição da válvula aórtica por via da artéria femoral, na virilha, sem recurso à abertura do esterno. Os seis centros de cardiopatia estrutural existentes em Portugal são centros de excelência e fazem esse procedimento muito bem. Mas estas válvulas percutâneas são muito caras. A boa notícia é que, juntamente com a Direção Executiva do SNS e a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), conseguiu-se um financiamento próprio de mais de 22 milhões de euros para a colocação das TAVI nos seis centros de referência. Esta medida está aprovada desde o início do ano.

"As doenças cérebro-cardiovasculares continuam a ser a primeira causa de morte em Portugal, matando mais do que alguns tipos de cancro. Não percebo porque não foi dada prioridade a estas patologias no Plano de Emergência para a Saúde. Acho que esta questão merece alguma reflexão, mas se o governo decidiu desta forma, temos de assumir que, numa segunda fase, vai priorizar a doença cérebro-cardiovascular."

Relativamente à reabilitação cardíaca, Portugal é um dos países europeus com menor oferta. Porquê?
Acho que Portugal nunca investiu muito nesta área. Existem 25 centros de reabilitação cardíaca no nosso país, 16 públicos e nove privados. Mas apesar de este não ser um número muito baixo e de ter vindo a crescer paulatinamente, nunca nos empenhámos o suficiente para investir nesta área.

Porquê?
Embora Portugal esteja a melhorar em muitos aspetos, acho que as pessoas nunca se apaixonaram o suficiente pela reabilitação cardíaca. E cada vez mais se chega à conclusão de que a reabilitação cardíaca é tão importante como tomar alguns medicamentos. É fundamental, senão mesmo obrigatório, que as administrações hospitalares e as direções dos serviços de cardiologia estejam empenhadas nesta questão. É preciso que os hospitais tenham um local como um ginásio onde as pessoas possam fazer a reabilitação, invistam em equipamento e em recursos humanos. Enquanto a tutela ou a Ordem dos Médicos não derem instruções para que os serviços de cardiologia tenham obrigatoriamente reabilitação cardíaca, acho que não vamos melhorar nesta área com a rapidez que desejaríamos.

No que respeita à cobertura nacional dos cuidados intensivos coronários, acha que esta é uma falha que compromete a adequada gestão dos doentes?
A abertura das novas salas de hemodinâmica e o facto de todos os doentes estarem a 90 minutos de distância destas valências tem-nos deixado numa situação confortável no que diz respeito ao número de camas disponíveis nos cuidados intensivos para enfarte agudo do miocárdio. Mas se pensarmos também na doença cardíaca grave, como a endocardite bacteriana ou a insuficiência cardíaca, provavelmente teremos de reforçar as unidades com mais camas. Mas, mais do que poucas camas nos cuidados intensivos coronários, temos um número insuficiente de camas na fase seguinte, de cuidados intermédios. Atualmente, os doentes tendem a ficar menos tempo nos cuidados intensivos passando para uma etapa em que não necessitam de cuidados tão diferenciados. E é nessa altura que precisamos de mais camas, pois as que temos são insuficientes.

Como se pode pode melhorar essa situação?
Tem de haver diretrizes da tutela. É importante que sejam dadas instruções às direções hospitalares para arranjarem forma de melhorar o parque de camas de modo a receber e tratar esses doentes o mais rapidamente possível. Quanto menos tempo ficarem no hospital, melhor é para todos. No caso do AVC, a situação é mais crítica porque não há camas suficientes, nem nos cuidados intensivos nem nas unidades de AVC.

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Até porque as metas do Plano de Ação para o AVC na Europa são mais altas do que aquilo que acontece em Portugal.
São, mas nós estamos a cumprir em parte os objetivos desse plano, sobretudo em relação ao tratamento do AVC isquémico. Ou seja, estamos a fazer bem trombectomias e cateterismos [ambas as intervenções permitem remover um coágulo de uma artéria ou de um vaso sanguíneo], mas estamos pior no que toca ao número de camas disponíveis para estes casos. É uma situação crítica, até pelo peso que a doença tem a nível nacional. É essencial aumentar o número de camas dedicadas ao tratamento destes doentes.

Em alguns trabalhos que publicámos já fomos alertados para a diferença de comparticipação para as doenças crónicas que não são reconhecidas como tal. Não deveriam as DCCV ter medicação comparticipada a 100%? A medicação para a insuficiência cardíaca, por exemplo, não é comparticipada a 100%.
Há medicamentos para as DCCV que são muito caros, não existem na versão genérica e, como tal, merecem comparticipação. Era importante que a tutela desse instruções nesse sentido. No caso específico da insuficiência cardíaca – e tendo em conta que é uma doença grave, com uma altíssima mobilidade e mortalidade –, existem dois ou três medicamentos muito importantes que não são comparticipados, mas que deveriam ser. Já tomámos diligências junto do Infarmed a quem compete autorizar a comparticipação.

Como é que a DGS está empenhada em contribuir para a mudança de hábitos de vida da população?
As pessoas têm de ter noção que há hábitos fundamentais para a saúde desde muito cedo. Ou seja, precisam de fazer exercício físico, ter uma alimentação equilibrada, ter a tensão arterial e a diabetes controladas e não devem fumar. Parece muito, mas se começarmos a explicar isto aos jovens nas escolas e incentivarmos uma alimentação saudável nas cantinas e em casa, bem como a prática de desportos de grupo e menos “desportos de computador”, estamos a contribuir para que haja menos doença cérebro-cardiovascular e mais adultos saudáveis e felizes.
A DGS tem programas que funcionam muito bem e têm contribuído para uma melhor e mais adequada prevenção dos estilos de vida. E o PNDCCV tem procurado contribuir para a melhoria da literacia dos portugueses no que diz respeito às DCCV. As pessoas, quando têm uma doença vascular, tanto podem ter um AVC, como uma doença nas carótidas, um enfarte agudo do miocárdio ou uma dor “na barriga” da perna, a que se chama claudicação intermitente. No entanto, as causas principais são sempre as mesmas: tabagismo, colesterol elevado, sedentarismo, excessos alimentares e obesidade. Através da literacia da população, nomeadamente nas escolas, estamos a contribuir para o controlo destes fatores de risco modificáveis e, consequentemente, para a redução do risco cardiovascular.

"A prevenção é essencial, não só nos fatores de risco que podem conduzir à insuficiência cardíaca – obesidade, tabaco, diabetes, entre outros –, mas também no acesso a um diagnóstico precoce de quem já tem a doença e não sabe. É fundamental os doentes consultarem regularmente o médico de família, que está apto a tratar desta doença. É preciso tratar mais precocemente estes doentes para não evoluírem para uma situação catastrófica."

Como se pode promover essa literacia em saúde?
Devemos divulgar mensagens simples que ajudem as pessoas a apreender a informação de forma rápida, apelativa e direta. Ou seja, promover a literacia em saúde através dos meios de comunicação social, programas de televisão ou outros que possam ter muita visibilidade, nomeadamente difundir mensagens em locais estratégicos como as caixas de multibanco.

Para quando uma estratégia nacional para a prevenção, gestão e tratamento das DCCV?
Essa é uma pergunta difícil de responder. Apesar de não termos nada definido nesse sentido, já temos uma série de estratégias que estão a ser colocadas em prática no âmbito de outros programas. Por exemplo, na área cérebro-cardiovascular há uma estratégia relacionada com as diretrizes do European Stroke Action Plan 2018-2030 e que, de certa forma, implica ter uma estratégia nacional para cumprimos as metas que nos são propostas. Relativamente à doença cardíaca, a estratégia já faz parte do plano do PNDCCV e passa por continuar a diminuir a mortalidade cardiovascular. Como é que isso se faz? Com prevenção, prevenção e mais prevenção. Com a promoção da literacia da população e a melhoria da interação com os médicos de medicina geral e familiar e com o INEM (Via Verde Coronária e Via Verde AVC). E também com a ajuda na implementação de novos meios complementares de diagnóstico [exames], uma vez que quanto mais rapidamente os doentes forem tratados, menos doença cérebro-cardiovascular irão ter. Outra questão que pretendemos mudar e que tem assumido especial relevância, mas que não é muito falada, é a morte súbita. Quando o PNDCCV foi criado, o core do programa era o AVC e a síndrome coronária aguda. Mas, neste momento, também temos de pensar na insuficiência cardíaca e na prevenção da morte súbita. Espero que no início do próximo ano possamos falar destas doenças nas diretrizes do programa.
Igualmente importante é a obrigatoriedade dos registos clínicos, embora essa questão não dependa de nós. Enquanto a tutela não obrigar as direções dos serviços hospitalares a facultar os registos clínicos da quantidade de cateterismos, quantas válvulas aórticas percutâneas são colocadas, quantos pacemakers são implantados, etc, nunca teremos a noção exata do que acontece em Portugal.

Foi apresentado recentemente o Plano de Emergência para a Saúde com medidas para os próximos dois anos, destacando-se as áreas oncológica, obstétrica e da saúde mental como prioritárias. Relativamente às DCCV, enquanto primeira causa de morte e de incapacidade prematura em Portugal, não deveriam ser uma prioridade neste Plano de Emergência?
Claro que sim. Nós temos um excelente SNS, que, de uma forma geral, trata bem as situações agudas quando estas colocam os doentes em risco de vida. No entanto, as DCCV continuam a ser a primeira causa de morte em Portugal, matando mais do que alguns tipos de cancro. Não percebo porque que é que também não foi dada prioridade a estas patologias. Acho que esta questão merece alguma reflexão, mas se o governo decidiu desta forma, temos de assumir que, numa segunda fase, vai priorizar a doença cérebro-cardiovascular. E quando isso acontecer, há muito por onde melhorar. É preciso aumentar o número de camas para o tratamento do AVC, ter mais recursos humanos e melhorar a área da reabilitação, quer vascular cerebral quer cardíaca. Este é um aspeto fundamental no qual é preciso investir porque contribui significativamente para melhorar a qualidade de vida e a sobrevivência dos doentes.

"A DGS tem programas que funcionam bem e têm contribuído para uma melhor prevenção dos estilos de vida. Quando têm uma doença vascular, as pessoas tanto podem ter um AVC, como uma doença nas carótidas, um enfarte ou uma dor “na barriga” da perna, a que se chama claudicação intermitente. Mas as causas principais são sempre as mesmas: tabaco, colesterol elevado, sedentarismo, excessos alimentares e obesidade. Através da literacia da população, nomeadamente nas escolas, estamos a contribuir para o controlo destes fatores de risco."

A coordenação do PNDCCV e/ou os cardiologistas foram ouvidos antes da publicação deste Plano de Emergência?
Não, não fomos (nem a coordenação do PNDCCV nem os cardiologistas). Mas em relação ao plano, a resposta é muito clara. No plano de emergência não está espelhado nada sobre as doenças cardiovasculares, embora possa admitir que é esta uma área que, apesar de tudo, não está muito mal em Portugal. Mas há coisas a corrigir.

Apesar dos elevados investimentos em saúde, os recursos atuais, em termos de estrutura, na generalidade, estão muito desatualizados, senão mesmo obsoletos. A degradação da carreira, das condições de trabalho e de oportunidades de formação dos profissionais no SNS são problemas atuais. O que falta em termos de estratégia?
Nós temos uma cardiologia e médicos em Portugal de alta qualidade, mas precisamos de arranjar forma de evitar que esses profissionais saiam do SNS, nomeadamente os mais jovens. Além disso, necessitamos de mais técnicos de cardiopneumologia e os médicos têm de deixar de fazer tantas tarefas administrativas para poderem fazer aquilo que é a sua expertise: ver os doentes. Há algumas áreas em que os médicos estão realmente cansados por serem poucos para o trabalho que têm. Para inverter esta situação temos de ter mais recursos humanos, melhorar as remunerações e valorizar a progressão das carreiras médicas.

Entrevista atualizada às 20:38 de 9 de julho de 2024 com correção sobre as salas de hemodinâmica e as unidades de reabilitação cardíaca.

Igor Martins / Global Imagens

Filipe Macedo

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Filipe Macedo, coordenador do Programa Nacional para as Doenças Cérebro-Cardiovasculares, licenciou-se em Medicina e Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade do Porto em 1978, onde foi também professor. Foi diretor do Serviço de Cardiologia no Hospital de São João até maio de 2023 e é atualmente coordenador de Cardiologia do Hospital CUF Porto e do Instituto CUF Porto. Tem integrado diferentes sociedades científicas da especialidade, como a Sociedade Portuguesa de Cardiologia e a Sociedade Europeia de Cardiologia

 

Arterial é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com doenças cérebro-cardiovasculares. Resulta de uma parceria com a Novartis e tem a colaboração da Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca, da Fundação Portuguesa de Cardiologia, da Portugal AVC, da Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral, da Sociedade Portuguesa de Aterosclerose e da Sociedade Portuguesa de Cardiologia. É um conteúdo editorial completamente independente.

Uma parceria com:

Novartis

Com a colaboração de:

Associação de Apoio aos Doentes com Insuficiência Cardíaca Fundação Portuguesa de Cardiologia PT.AVC - União de Sobreviventes, Familiares e Amigos Sociedade Portuguesa do Acidente Vascular Cerebral Sociedade Portuguesa de Aterosclerose Sociedade Portuguesa de Cardiologia

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