A China impôs em Xangai, a sua maior cidade, uma política Covid-19 Zero no inicio de abril: a decisão implicou trancar em casa milhões de pessoas e encerrar praticamente todos os negócios. Faltou o acesso a água engarrafada, comida e medicamentos. Há relatos de pessoas que morreram devido à falta de assistência e de pessoal médico à beira da exaustão. Num país altamente controlado, o desespero levou a protestos públicos pouco comuns, mas tentativas de quebrar as regras foram punidas com violência.
Wu Qianyu, responsável pela Comissão Municipal de Saúde de Xangai, disse num briefing aos jornalistas que a política estava a resultar, as novas infeções estavam a diminuir e, nalguns casos, o nível de transmissão entre zonas da cidade atingiu o zero. As autoridades chinesas criaram 3 categorias para a grande metrópole – zona encerrada, zona restrita e zona de prevenção -, sendo realizados milhões de testes todos os dias e controlando o movimento dos cidadãos através de aplicações de telemóvel.
Assim, ao fim de 3 semanas, Xangai voltou a respirar (mas pouco). Cerca de 12 milhões de pessoas foram autorizadas a sair de casa, mas com a liberdade de movimentos muito condicionada. A 666 empresas, incluindo a fábrica de automóveis da norte-americana Tesla, que emprega 8 mil pessoas, foi permitido retomar a atividade.
Entre os habitantes de Xangai está uma jovem portuguesa que vive nesta cidade há 4 anos. Paula é um nome fictício e a conversa com o Observador foi condicionada pelo receio de um Estado que tudo vê e tudo controla. Na entrevista ao podcast “A História do Dia”, realizada antes deste levantamento de restrições, Paula descreve-nos o dia a dia na região e diz nunca ter recebido um contacto das autoridades portuguesas a perguntar se precisa de ajuda, ao contrário do que fizeram outros países com representação diplomática na China.
Uma declaração que contradiz a posição oficial do Ministério dos Negócios Estrangeiros em resposta ao Observador: “O Consulado-geral em Xangai tem acompanhado de perto a situação dos cidadãos portugueses residentes, tentando mitigar as dificuldades de acesso a bens essenciais por via de aconselhamento sobre os melhores procedimentos a seguir e através de contactos com os comités de bairro em que residem, sempre que se revele necessário.”
Ouça aqui a conversa com Paula no episódio de “A História do Dia”.
“Presos” em Xangai. Covid-19 retém milhões em casa. Falta comida e medicamentos
“As pessoas estavam a ficar revoltadas por não terem comida suficiente em casa”
Como foi o seu dia hoje?
Como estou em casa de quarentena, estou a trabalhar online com o meu computador. Trabalho a full time. Sou estudante aqui. Estou em casa, porque em março começaram a surgir novos casos de Covid-19 na cidade. Houve um aumento exponencial de contágios. No primeiro dia de abril as autoridades chinesas decidiram fazer um lockdown completo. Os casos estavam a chegar aos milhares por dia, cinco mil, seis mil… todos os dias. As autoridades decidiram fechar a cidade por completo. Toda a gente tinha que permanecer em casa obrigatoriamente. Fechou tudo completamente – restaurantes, supermercados, escolas, parques – 100% da cidade. As pessoas não podem sair de casa, não podem sair da porta para fora. Somos controlados e não é opcional: é mandatório numa cidade com 26 milhões de habitantes. Estamos em casa sem poder sair.
Devido a essa política de Covid-19 Zero a cidade ficou toda trancada em casa?
Sim. Inicialmente, as autoridades informaram-nos de que seriam apenas 5 dias, ou seja, de 1 a 5 de abril. No entanto, como o número de casos continuava a aumentar a cada dia, estão a estender este prazo indefinidamente. Ninguém sabe… não sei quando poderei voltar à minha vida normal. Não sabemos se vai ser daqui a uma semana ou daqui a um mês.
Como é que fazem para comprar comida ou medicamentos. Como é a vida nessas circunstâncias?
Esse tem sido um fator para o desagrado e para o stress que as pessoas estão a viver. Tem sido extremamente difícil comprar água, qualquer tipo de comida, principalmente na primeira e segunda semanas. No entanto, o governo percebeu que era um problema, que as pessoas estavam a ficar revoltadas por não terem comida suficiente em casa e aí libertaram alguns armazéns na zona mais afastada do centro. A única forma possível para obter comida agora é comprar em grandes quantidades. Estamos a falar de 50 quilos de arroz e depois distribui-los pelos condomínios. É a única forma. Se quiser comprar pão ou um chocolate não consigo, não é possível. Para conseguir água foi uma luta. Temos tido o apoio do Estado. Deram-nos agora, pela terceira vez, uma saca com bens essenciais. Por exemplo, esta semana foram batatas, arroz, óleo e alguns legumes. Distribuíram essa saca por todos os habitantes aqui da cidade. Uma semana, uma saca.
E como é o acesso a medicamentos?
Também tem sido bastante limitado. Há poucas farmácias abertas e o problema não é só adquirir, mas é como esse medicamento nos é entregue. Não existem táxis ou homens das entregas, nem correios. No entanto, há algumas pessoas que estão a entregar, mas o preço que pedem é incrivelmente alto, abusivo. Podemos pagar 50 ou 100 euros.
“Uma piscina pública convertida em centro de quarentena. Como tem chuveiros, só improvisaram umas camas”
Esse confinamento obrigatório é generalizado a toda a cidade ou há alguns bairros onde já é permitido sair para, por exemplo, ir ao supermercado fazer compras? (A entrevista foi gravada antes de se conhecer a notícia do alívio das restrições para 12 milhões de habitantes)
É generalizado. 100% da cidade está lockdown. Somos, no total, 26 milhões de habitantes aqui na cidade e é lockdown geral. Não há discriminação de estatuto social ou profissional, está 100% da população em casa, em quarentena obrigatória.
E quanto aos contactos de risco, o que é que acontece a estas pessoas?
A grande diferença entre a onda de Covid-19 de 2022 em comparação com a de 2020 é que grande parte da população chinesa está vacinada, 86% segundo os dados oficiais. Quando há infetados, a grande maioria dos casos são assintomáticos. As pessoas fazem um teste quase todos os dias. O que está a acontecer agora é que se um prédio não tiver nenhum caso positivo num espaço de 14 dias os residentes são autorizados a sair, mas só podem andar naquela rua. Foi o que aconteceu esta semana, alguns condomínios foram como que libertados e algumas pessoas podem sair e andar num espaço de 200 ou 300 metros. Mas também é imposto um período limitado de tempo para esse efeito, ou seja, podem ir à rua durante uma ou duas horas. Não é o dia todo. É um cheirinho da liberdade que alguns sortudos têm experienciado esta semana. O que não é o meu caso.
Não é o seu caso?
Não, isto são meia dúzia de condomínios que tiveram essa sorte de não ter nenhum caso positivo. Estamos a falar em condomínios, ou seja, são vários prédios. No meu caso, o condomínio tem três prédios – existem condomínios com seis ou com sete. Por exemplo, o meu prédio tem 25 andares. Ter um prédio e um condomínio sem nenhum caso positivo é difícil. Tive um caso há cerca de dois dias aqui no condomínio e isto implica prolongar o meu período de quarentena por mais 14 dias. Só porque o meu vizinho de outro prédio testou positivo, vou ter de ficar mais 14 dias.
Como são feitos os testes para detetar casos de Covid-19?
Dia sim, dia não. Ainda hoje fiz um.
Em casa?
Sim. Vêm aqui à porta do apartamento, pessoal médico.
Temos visto imagens de centros que acolhem pessoas doentes. Que centros são esses?
Caso alguém tenha testado positivo à Covid-19, os que são considerados contactos próximos desse paciente são direcionados para um centro de quarentena, vamos chamar-lhes assim. Vão ficar nesse centro durante 14 dias. Pode ser qualquer local que as autoridades considerem apropriado para acomodar pessoas durante duas semanas. Pode ser um hotel, pode ser na Expo (Xangai acolheu a exposição mundial em 2010). Vi uma notícia que mostrava uma piscina pública convertida em centro de quarentena. Como tem chuveiros, só improvisaram umas camas. Estão lá pessoas que têm de fazer testes todos os dias para ver se ainda têm Covid. Com dois testes negativos, são libertados. Serve qualquer edifício que dê para acomodar um grande volume de pessoas. Claro, as condições vão variar e ninguém sabe para onde vai ser direcionado. É uma questão de sorte.
“Vários membros da comunidade portuguesa perguntaram ao consulado português se nos iam ajudar, mas até à data não recebemos qualquer tipo de apoio”
E a atividade económica em Xangai…
A cidade fechou e o problema das pessoas é o ter encerrado indefinidamente. Para quem tem negócios, principalmente quem tem funcionários e tem de lhes pagar, ter um negócio fechado indefinidamente é complicado. Pelo que ouvi dizer, aqui não existe qualquer tipo de apoio financeiro por parte do Estado para pequenas ou médias empresas, o que faz com que haja muita gente mais revoltada, ansiosa – o que tem causado muita angústia na população chinesa. Milhares de empresas fecharam desde 2019 e acredito que por esta nova onda, por este novo pico de casos e esta quarentena, muitas mais empresas irão fechar.
Cerca de 20 mil casos diários com 7 mortes é um número quase residual num universo superior a 25 milhões de pessoas. Isto é causa de um enorme e audível desconforto.
Em 2019, era tudo muito desconhecido, incerto. Não se conheciam os sintomas, o número de mortes e de casos eram muito muito maiores, havia quase uma justificação para estas restrições. Agora estamos em 2022 e muito mudou. 86% da população está vacinada. O número de mortos, até à data, foi de 7. Essas pessoas que faleceram, infelizmente, segundo os dados oficiais, tinham idade superior a 60 anos e nenhuma delas tinha sido vacinada. Ou seja, qual é a justificação para restrições tão agressivas como as que estamos a experienciar? Existem cerca de 20 mil casos por dia, no entanto, a maioria é assintomática. Estamos a falar de uma população de 26 milhões e 20 mil casos é uma percentagem muito baixa. Será que há necessidade de este tipo de atitudes? Tem criado uma angústia muito grande não só na comunidade estrangeira, como também na população chinesa. Eles não estão contentes com a atitude do governo – o que me tem surpreendido, porque têm sido bastante “verbais” nos meios de comunicação. As pessoas têm mostrado o seu desagrado e a sua preocupação, porque ninguém tira proveito. A população não pode trabalhar nem manter os negócios e também o próprio país tem sido afetado com o fecho de várias empresas.
Pediu ajuda às autoridades portuguesas ou foi contactada?
Existem várias embaixadas, como a norte-americana e a italiana, que têm providenciado bens aos seus cidadãos. Vários membros da comunidade portuguesa perguntaram ao consulado português, aqui em Xangai, se nos iam ajudar de alguma forma, mas até à data não recebemos qualquer tipo de apoio.