O livro “As Causas do Atraso Português”, editado pela D. Quixote, da autoria do economista Nuno Palma analisa a evolução económica de Portugal, na para perceber “as origens históricas do atraso do país”. É isso que se propõe fazer neste livro. Conforme explica no preâmbulo, deste livro de 405 páginas, pretende desconstruir mitos do passado.
O Observador pré-publica parte do capítulo dedicado à gestão de Marquês de Pombal que Nuno Palma não se coíbe de apelidar de “desastre em termos de economia”.
Nuno Palma é professor catedrático e diretor do Arthur Lewis Lab for Comparative Development, na Universidade de Manchester, e investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e do Centre for Economic Policy Research em Londres.
Há muito que alguns historiadores, outros estudiosos, e até políticos, tentam explicar as causas do atraso português. «País periférico, com demasiada gente no campo, e governado por uma elite tacanha» é uma possível paráfrase da tese desta geração de intelectuais sobre as causas do atraso. Um deles foi Vitorino Magalhães Godinho no livro Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa. Um momento de reflexão é o suficiente para compreendermos que estas não podem ser as explicações profundas das causas do atraso. A qualidade das instituições políticas e as elites de diferentes regiões e épocas históricas influenciam o atraso, mas também são algo que tem de ser explicado em si: não é satisfatório tomarmos a qualidade das instituições como um dado adquirido. E o mesmo é verdade relativamente à estrutura organizacional da economia.
Todos os países foram sociedades agrárias, ou seja, baseadas na produção e manutenção de culturas e terras de cultivo, antes de se desenvolverem. A Inglaterra também o era até à Revolução Industrial. Portugal também, até tudo mudar no século XX. Com o tempo tudo pode mudar, e a mudança estrutural, ou seja, a passagem das populações da agricultura e pescas para outros setores que historicamente tinham mais valor acrescentado (a indústria e os serviços) tem de ser explicada. Como tal, a estrutura organizacional da economia – «demasiada gente no campo» – que levaria à baixa produtividade do país não pode ser por si uma explicação. É antes e apenas um mecanismo através do qual causas mais profundas operam. Na linguagem dos economistas, é um fator endógeno.
Finalmente, consideremos a localização geográfica do país: Portugal é periférico. Parece ser verdade, mas relativamente a quê? Na verdade, toda a Europa Ocidental foi periférica relativamente aos grandes centros culturais e económicos do mundo, pelo menos até finais da Idade Média. Esses correspondiam a regiões como o império bizantino na antiguidade tardia, o mundo islâmico na sua época de ouro entre os séculos VIII e XIII, bem como a China por volta da mesma altura. Ou seja, toda a Europa Ocidental foi, até finais da Idade Média, uma parte marginal do mundo, de importância relativamente secundária. Mas essa condição «periférica» não foi destino: tudo viria a mudar, através de um processo radical no qual Portugal até teve um papel importante, como expliquei no capítulo 4. Do mesmo modo, a periferia geográfica de Portugal não foi, em certas épocas históricas, impedimento ao desenvolvimento do país.
Temos, portanto, de encontrar melhores explicações para o atraso histórico português. Nos capítulos anteriores, mostrei que, pelo menos até ao século XVIII, o império não foi nem um motor nem um impedimento ao crescimento do país. Também argumentei que a cultura e religião portuguesas não foram as culpadas deste atraso – ou, pelo menos, não foram a sua causa profunda. Como apresentei na primeira parte do livro (capítulos 2 e 3), o atraso apareceu durante o século XVIII, tento tido manifestações simultaneamente económicas e políticas, e aprofundou-se depois no XIX.
Neste capítulo, explico uma causa fundamental do atraso. Começo por aprofundar a discussão sobre a transformação do sistema político português entre a segunda metade do século xvii e o início do seguinte. Mostro que, a partir da Restauração de 1640, Portugal entrou num encorajador processo de melhorias políticas e institucionais que poderia ter tido melhor continuação. Depois irei argumentar que, durante a segunda metade do século XVII, se assistiu a mudanças económicas positivas e promissoras.
Em finais desse século, existiam em Portugal várias regiões rurais industrializadas, com redes bem integradas de produção e distribuição, e Lisboa era uma capital mercantil, que estimulava a procura por bens, e onde era feito o retalho. Além disso, existia o Brasil, que era uma fonte adicional de procura, assim como de oferta de matérias-primas. Por volta de 1680, Portugal até exportava têxteis para Castela. Caso a dinâmica dos finais do século XVII tivesse continuado, o país poderia ter-se tornado, no século seguinte, numa importante potência mercantilista e exportadora. Além disso, as melhorias institucionais poder-se-iam ter também consolidado. Mas o que veio a acontecer não podia ter sido mais diferente. Tanto a nível político como mais diretamente económico, as dinâmicas auspiciosas dos finais do século XVII foram interrompidas por um processo que designo como Maldição dos Recursos: a descoberta de enormes quantidades de ouro (e, com menos importância, de diamantes) no Brasil. Este acontecimento viria a ter implicações profundas para o país.
Não há dúvida de que a entrada de ouro aumentava os rendimentos das pessoas, em particular no curto prazo. O ouro do Brasil enriqueceu, em primeiro lugar, os portugueses que o obtinham e que remetiam os fundos para Portugal, ou que, estando no Brasil, os usavam localmente, em particular comprando os bens que chegavam nas três frotas anuais vindas da metrópole. A maior parte do ouro já chegava a Portugal cunhado e as moedas eram entregues a mais de duas mil pessoas a quem pertenciam, além do rei. Os rendimentos pessoais, agora aumentados, eram depois gastos tanto em bens domésticos, não transacionáveis, como em bens importados. O aumento de procura dos bens importados não tinha um efeito notório no seu preço, dado o tamanho pequeno do nosso país já à época, enquanto que a procura adicional dos bens domésticos teve, de facto, um efeito significativo no aumento do preço dos mesmos. Por sua vez, esta mudança de preços relativos levou a uma retirada de recursos do setor transacionável da economia portuguesa. Foi o que aconteceu com a produção industrial que se retraiu. Isto foi uma resposta natural da economia às chegadas do ouro, e que foi agravada pelo aumento do poder de compra das pessoas. Tornou-se mais barato importar, e mais caro exportar, mas a diferença podia ser paga em ouro.
Como tal, a indústria portuguesa entrou em declínio. Além disso, o ouro teve um efeito político desastroso: os recursos adicionais disponíveis para a Coroa implicaram o desaparecimento de uma limitação importante ao poder executivo que até aí existia. Nomeadamente, como deixou de ser necessário o rei negociar para obter recursos, as Cortes não foram convocadas durante todo o século XVIII. Nas primeiras décadas do século ainda se falou dessa assembleia a propósito de matérias como os novos impostos que a Coroa ia impondo, pois existia a memória de que eram um órgão que controlava a ação do monarca. À medida que o século avançou, no entanto, o ambiente político que se instalou começou a encarar a reunião das Cortes como uma cedência por parte dos monarcas que não era aceitável, recusando a esse órgão qualquer papel de controlo constitucional ou de limitação da vontade da Coroa. Seria neste contexto que, na sequência do Terramoto de 1755, Pombal se iria tornar no político mais importante do país, com graves consequências a prazo.
O legado político e económico de Pombal para o atraso do país
O governo do país por parte de Pombal foi desastroso. Mas também é preciso compreender o contexto que o tornou possível: uma Monarquia Absoluta, como não tinha existido nos séculos anteriores. Consideremos a seguinte analogia: se um condutor embriagado atropelar um peão, ninguém vai dizer que o problema é o condutor não ter travado. A causa mais profunda foi outra. Voltando ao século XVIII, o problema foi terem faltado limites ao poder executivo. E isso foi, por sua vez, um resultado das chegadas do ouro brasileiro, que, como expliquei, levaram a essa alteração na natureza das instituições políticas portuguesas. Pombal desprezava o parlamento inglês, que considerava um mero instrumento dos grandes interesses comerciais da Inglaterra. No entanto, sabemos hoje que esse sistema parlamentar é precisamente uma das chaves para compreendermos porque foi aí possível a Revolução Industrial. No que toca às relações comerciais de Inglaterra com Portugal, Carvalho e Melo culpava os Tratados comerciais por só serem vantajosos para a Inglaterra. Nas suas palavras:
Examinando o presente estado do comércio entre as duas nações [Portugal e Inglaterra] por uma rigorosa análise dos tratados recíprocos e da observância com que eles hoje se praticam em ambos os domínios, achei que Portugal sustenta todo o peso das convenções enquanto estas são onerosas e que a Inglaterra, com pouco ou nenhum encargo, recolhe delas todo o proveito, praticando-as somente na parte em que lhe são úteis.
Na realidade, como veremos, a política alternativa que Pombal promoveu não beneficiou o país. Uma dessas políticas, a nível económico, foi a criação de várias companhias comerciais. A sua fundação ajuda a compreender as motivações de Carvalho e Melo para expulsar a Companhia de Jesus. Em Portugal, os jesuítas opunham-se ao seu despotismo e ao Absolutismo régio em geral, e no Brasil resistiam ao monopólio do comércio externo imposto pela Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, uma companhia criada por Pombal que operava numa região do Brasil onde o Governador era o seu irmão Francisco Xavier de Mendonça Furtado. Este último, Governador Geral do Estado do Grão-Pará e Maranhão de 1751 a 1759 e secretário de Estado da Marinha e do Ultramar entre 1760 e 1769, também esteve envolvido na conspiração que levou ao assassínio dos Távora e do jesuíta Gabriel Malagrida, que foi queimado na fogueira num auto de fé no Rossio em setembro de 1761. Como tantas vezes tem sucedido na nossa História, existia aqui um conflito de interesses: Pombal não só nomeava os irmãos e outros familiares para altos cargos, como depois ainda beneficiava financeiramente das suas ações políticas.
No caso da Companhia do Comércio do Grão-Pará e Maranhão, beneficiava dos lucros da companhia através de ações que estavam em nome da sua segunda mulher. Através do seu irmão, Carvalho e Melo ordenou que as leis régias fossem executadas rigorosamente, sendo que a sua violação devia ser considerada crime de lesa-majestade. Ordenou mesmo que qualquer missionário jesuíta que no púlpito insinuasse qualquer crítica à política real fosse imediatamente destituído das suas funções e expulso.
Pombal promoveu uma vasta campanha propagandística, acusando os jesuítas de quererem criar um «império secreto» no Brasil, na obra conhecida como Relação Abreviada em 1757. Publicada inicialmente de forma anónima – o spin não é uma invenção dos dias de hoje –, este opúsculo foi promovido por Pombal.
Na sequência do Tratado de Madrid (1750), que definia as fronteiras entre o Brasil e o Império Espanhol (substituindo o Tratado de Tordesilhas, que não era respeitado), a Companhia de Jesus, por ordem do seu Geral e Provincial, obedeceu às ordens do Rei de Portugal e mandou sair os seus missionários dos Aldeamentos ou Reduções. A maioria, de facto, obedeceu e saiu. Houve, no entanto, um pequeno grupo de jesuítas, muito minoritário, que ficaram ao lado dos ameríndios e resistiram. É essa colaboração de alguns jesuítas na resistência indígena, e em particular nas Guerra Guaranítica (1753-1756), que será usada como pretexto e mitificada pela documentação pombalina para incriminar toda a Companhia de Jesus, atribuindo-lhe um plano secreto mirabolante segundo o qual estaria a construir um Estado autónomo, como princípio de um projeto maior de dominação universal. Carvalho e Melo enviou também queixas à Santa Sé, acusando os jesuítas de serem rebeldes contra a autoridade real e papal. O esforço de propaganda contra os jesuítas continuou com outras obras, como a Dedução Cronológica e Analítica, de 1761, também encomendada por Pombal.
Carvalho e Melo era um político que não olhava a meios para atingir os seus fins. A Mesa do Bem Comum dos Homens de Negócio foi extinta em resposta a uma representação que apresentou à Coroa contra a instituição do monopólio dessa companhia de que Pombal beneficiava. Para isso foram utilizadas cartas apreendidas aos acusados, apesar de existir à época uma grande auto-censura relativamente ao que era deixado por escrito. Depois de exilar os líderes da Mesa do Bem Comum, Pombal criou uma nova agência, a Junta do Comércio, que não era mais do que um braço político do governo, existente para defender os seus interesses, ao contrário do que tinha acontecido com a Mesa do Bem Comum. Existem hoje vários casos bem documentados referentes ao enriquecimento dos irmãos Carvalho e Melo graças ao seu controlo do aparelho do Estado. Mesmo um autor estrangeiro, que até mostrava alguma admiração por Pombal, o descrevia como: «Altivo, vingativo, cruel, ávido de honras e de dinheiro».
Neste contexto, não será talvez surpreendente que os supostos esforços de fomento industrial promovidos por Pombal tenham, na realidade, falhado. Pombal, de resto – nesta fase ainda apenas como Conde de Oeiras – mandou construir um magnífico palácio com um luxuoso jardim nessa região próxima de Lisboa, que ainda hoje pode ser visitado. Era um homem que não hesitava em subornar aqueles de quem precisava. Por exemplo, enviou uma embaixada ao Papa, em setembro de 1757, chefiada pelo seu primo direito Francisco de Almada Mendonça, que pagou a cardeais com anéis de diamantes, o seu apoio nas políticas preparatórias para a expulsão da Companhia de Jesus. As prisões continham milhares de presos políticos, sendo alvo de críticas ferozes por parte de visitantes estrangeiros, a forma de funcionamento do sistema de justiça, assim como os conflitos de interesse relacionados com a proximidade das autoridades policiais a Pombal.
A Companhia Geral da Agricultura e das Vinhas do Douro, criada por Pombal em 1756, supostamente com o objetivo de melhorar a qualidade do vinho exportado para Inglaterra, fornece um outro exemplo de compadrio e de defesa do interesse próprio promovidos por Pombal. Em fevereiro de 1757, os taberneiros do Porto revoltaram-se contra a Companhia que, ao criar um monopólio, tanto os prejudicava. A revolta foi violentamente suprimida por Pombal, com a execução de 26 pessoas e com mais de 300 condenados a confisco, deportação, ou chicotadas. Foram dadas ordens aos habitantes da cidade do Porto para alimentarem as tropas enviadas para acabar com a revolta, e para pagarem um imposto que iria cobrir os salários e munições dos soldados. Pombal ainda aproveitou este contexto para acusar os jesuítas de serem responsáveis por instigar esta revolta (o que era falso), expulsando-os de imediato da Corte de D. José, onde eram até então confessores. Este episódio, assim como a Relação Abreviada, mostra que a aversão de Pombal aos jesuítas, que se opunham a ele, era anterior à tentativa de assassinato do Rei D. José que ocorreu no ano seguinte, em 1758. Na sequência desse atentado, os jesuítas foram incriminados com base em confissões conseguidas sob tortura, tendo Pombal encabeçado um enorme esforço de propaganda – que viria a ter reflexos noutras partes da Europa – em que a Companhia de Jesus era apresentada como o maior obstáculo ao progresso do país.
Pombal fez mesmo a acusação, absurda, de que eram os jesuítas os responsáveis pela forma de funcionamento da Inquisição, bem como pelo bloqueio cultural e intelectual do país. Acabou assim por expulsá-los, um ano depois do atentado. Entre os cerca de 1500 jesuítas que existiam em Portugal à época, mais de 1100 foram exilados para o Vaticano, 222 foram presos, acabando 80 por morrer no cárcere, e tendo alguns sendo ainda deportados para África.
A destruição do ensino
A mais desastrosa política de Pombal, no longo prazo, foi a destruição do sistema educativo do país. Ainda na primeira metade do século XVIII, o nível de capital humano em Portugal apenas estava atrás do das partes mais avançadas da Europa, sendo até pequena a diferença. Nesta altura, Portugal tinha duas universidades, assim como uma rede de escolas de ensino pré-universitário em todo o país. Nas décadas seguintes, essa situação viria a mudar radicalmente.
Tudo indica que, ainda hoje, pagamos o preço da decisão de Pombal de expulsar os jesuítas do país, sem que tivesse sido implementada qualquer alternativa viável para a educação da população. Foi declarado pela Junta da Inconfidência que os bens confiscados aos jesuítas deveriam financiar a substituição da sua atividade de ensino. Os bens dos jesuítas foram efetivamente confiscados, mas essa substituição não chegou a acontecer, sendo na realidade a intenção do governo o encaixe, no erário régio, de capital para equilibrar as contas do Estado.
No alvará mandado publicar por Pombal, em 28 de junho de 1759, afirmava-se mesmo, em nome do rei, que devia ser abolida a memória das escolas jesuítas, «como se nunca houvessem existido nos meus Reinos, e Domínios, onde têm causado tão graves lesões e tão graves escândalos», mas os planos para o que deveria substituir essas escolas eram vagos e nunca foram implementados. Só por esta razão não parece descabido escrever que Pombal foi o pior político de sempre a governar Portugal. Carvalho e Melo deixou-nos o legado mais desastroso de qualquer político que alguma vez governou o país. Em meados do século XVIII, antes da sua expulsão, a Companhia de Jesus contava, em Portugal, mais de 1000 membros, a maior parte dos quais estavam envolvidos no ensino, que era gratuito. Os jesuítas geriam 20 colégios à data da sua expulsão, assim como a Universidade em Évora, que também seria fechada com a sua expulsão, como já vimos – e que só viria a reabrir mais de dois séculos depois. No total (incluindo Brasil, Angola, Índia e Macau), a Companhia de Jesus tinha 37 colégios, além de um grande número de residências. Tudo viria a ser substituído por quase nada.
A situação do ensino, no período anterior à expulsão da Companhia de Jesus por Pombal, foi estudada por Francisco Malta Romeiras e Henrique Leitão, em cujas estimativas e trabalho me apoio aqui. Em 1759, quando Pombal expulsou do país os jesuítas – sendo o primeiro país da Europa a fazê-lo – eles eram responsáveis pela formação de capital humano de cerca de 20.000 estudantes. No total, existiriam em Portugal, em meados do século xviii, cerca de 20.000 alunos naquilo que poderíamos considerar o ensino pré-universitário, distribuídos por todo o país. Muitas destas escolas tinham mais de 1.000 alunos, tendo tido o Colégio de Santo Antão em Lisboa entre 2.500 e 3.000. Mesmo as mais pequenas teriam algumas centenas.
O ensino jesuítico não seria perfeito, mas existia no terreno – e podia ter servido de base para uma expansão educativa a acontecer mais tarde. Pouco importa que o número de jesuítas não fosse o suficiente, só por si, para a massificação do ensino. O que importa é que a sua presença teria criado condições para que a massificação viesse a ocorrer – mesmo que pelas mãos do Estado. É preciso capital humano para formar mais capital humano. Num país de analfabetos faltavam os professores. Pombal declarou que estava a reformar o sistema educativo, que prometia substituir por um mais moderno. Mas – como tantas vezes aconteceu na História – tudo não passou de retórica vazia, de belas palavras de um político, sem qualquer efeito prático. Pombal evitou utilizar a infraestrutura existente, mas na maior parte dos casos as escolas dos jesuítas foram substituídas por pouco ou nada, levando à quase total destruição do sistema educativo pré-universitário do país. Portugal tornou-se um país sem escolas.
O Colégio de Santo Antão, em Lisboa, que tinha tido mais de 2.500 alunos em meados do século XVIII, foi substituído apenas pelo Colégio dos Nobres, com menos de 100 – e concentrando-se no estudo de matérias de natureza não científica. Ou seja, o número de alunos caiu para cerca de 4% ou menos. Como se deduz do nome, o acesso a este último Colégio era exclusivo às classes sociais mais elevadas e houve dificuldade em interessar os alunos nas disciplinas científicas aí ministradas. Fundado em 1761 – no papel –, o Colégio dos Nobres começaria a funcionar vários anos depois, inicialmente com 24 alunos, e sem professores de várias disciplinas. Foi aliás difícil recrutar professores e alguns pararam mesmo de lecionar, voltando aos seus países de origem devido à falta de preparação matemática dos alunos. Em 1772, acabou mesmo por ser abolido de vez o ensino das disciplinas científicas, já que não se praticavam. Até ser mandado encerrar, em 1837, o Colégio dos Nobres não voltaria a ter ensino científico, limitando-se ao ensino literário.
Vale a pena contrastarmos esta situação desastrosa com a da Aula da Esfera que funcionou ininterruptamente entre 1590 e 1759 no Colégio de Santo Antão – num espaço que atualmente faz parte do Hospital de São José. Ainda hoje podem ser vistos painéis de azulejos representativos dos assuntos lecionados, à semelhança do que acontece no Colégio do Espírito Santo, da Universidade de Évora. Aí se ensinaram matérias científicas e matemáticas, com particular ênfase dada às questões relacionadas com a náutica e a cosmografia. A Aula da Esfera era gratuita e estava aberta a leigos, sendo ensinada em português. Os alunos aprendiam noções tão avançadas como os logaritmos, o telescópio ou a projeção de Mercator, sendo a escolha dos professores muito cuidada, recorrendo-se várias vezes a professores estrangeiros de grande renome. Tudo isso acabara.
Para além de Lisboa, deram-se em todo o país quebras muito significativas do número de alunos, havendo relatos sobre a falta de professores e a fraca qualidade do ensino. D. Tomás de Almeida, o Diretor-Geral dos Estudos, responsável por substituir o ensino dos jesuítas, teve desde logo enormes dificuldades em recrutar pessoal docente, e avisaria mesmo num relatório de 1763 que «os habitantes não têm como pagar os salários aos Mestres e não mandam os filhos aos Estudos pelo que se perdem muitos talentos que seriam úteis à Pátria se tivessem aplicação». Dois anos depois, descobriu que em várias das poucas escolas que restavam no país, os professores continuavam a usar gramáticas jesuíticas, tendo sido esses professores suspensos e os exemplares queimados em público.
Nos anos seguintes, a situação do ensino pré-universitário manteve-se deplorável. Uma lei de 1772, que lançava os fundamentos do que deveria ser o sistema escolar futuro do Reino, dizia mesmo, no seu preâmbulo, que não era necessário alfabetizar grande parte da população, pois deveriam ser reservados «ao serviço rústico, e humilde do Estado», espelhando o que era argumentado por vários homens dessa época que defendiam que os filhos dos pastores e dos criados deviam simplesmente seguir a profissão dos seus pais. Os oratorianos também foram perseguidos por Pombal, mesmo os que tinham gabinetes de Física experimental mais modernos.
Nas universidades, as consequências da política pombalina também foram desastrosas. Até então existiam apenas duas universidades em Portugal e em todo o império. Uma delas, a Universidade de Évora, foi pura e simplesmente fechada, como vimos no capítulo anterior. Restou a Universidade de Coimbra. A reforma desta, promovida por Pombal (1772), tem aspetos interessantes – deu-se uma modernização dos programas, a criação da Faculdade de Matemática, a criação do Jardim Botânico, e do Observatório Astronómico, entre outros aspetos.
A estrutura da universidade foi completamente reformada. Mas, como outras coisas com Pombal, foi tudo irrealista: muito mais de jure do que de facto. Não é possível elogiar em abstrato os planos da reforma sem falar da realidade dessa reforma. Grande parte das coisas previstas não se implantaram. O ensino chegou a parar por completo e a universidade passou a ter muito menos alunos, tornando-se mais elitista já que sofreu diretamente as consequências do colapso do ensino pré-universitário. Entre 1724 e 1771 (47 anos) passaram pela Universidade de Coimbra 132.869 alunos, o que corresponde a uma média anual de 2.827 matrículas, enquanto no período imediatamente posterior à reforma pombalina, entre 1772 e 1820 (48 anos), apenas 21.675 alunos se matricularam na universidade, correspondendo a uma média anual de 452 alunos – cerca de 16% das inscrições anuais anteriores, sem que isto tivesse correspondido a uma melhoria do conteúdo programático.
Deste modo, a mais importante e mais dramática herança de todas as políticas pombalinas foi Portugal tornar-se no país com a maior percentagem de analfabetos da Europa: durante todo o século XIX, as taxas de literacia não chegavam a 20%. Portugal apenas voltaria a ter 20.000 estudantes no ensino pré-universitário nos anos 30 do século XX, e isto com uma população do país quase três vezes maior (quase 7 milhões, em vez dos cerca de 2,5 milhões, como vimos no capítulo 1). De modo a estabelecer um corte radical com o passado, Pombal evitou utilizar esta infraestrutura, convencido de que, dessa forma, o corte seria total, mas não foi capaz de propor uma alternativa eficaz.
O ensino dos jesuítas, ao contrário de outros sistemas, era central para Portugal e a realidade é que foi destruído sem ter sido substituído por uma alternativa funcional. Foi uma catástrofe. Portugal regrediu de forma muito clara, precisamente quando outros países da Europa Ocidental estavam a investir na escolarização das suas populações e a assistir à industrialização das suas economias. Logo em 1800, a percentagem de adultos que em Portugal sabiam assinar o seu nome estava consideravelmente atrás da de outras partes da Europa Ocidental. Portugal estava já então claramente atrasado, em contraste com o que tinha acontecido apenas meio século antes, como vimos anteriormente. Foi nisto, na prática, que resultou o despotismo – dito «esclarecido», aparentemente sem ironia – de Pombal.
As origens setecentistas do atraso português
Como expliquei neste capítulo, o notável progresso da economia e do sistema político em finais do século XVII foi interrompido em inícios do século seguinte. Para Portugal, tudo viria a mudar com a descoberta de grandes quantidades de ouro no Brasil. O século do ouro foi o século de uma maldição que condenou Portugal a um processo de decadência económica e política, da qual só viria a sair muito mais tarde, já no século XX. Com a base industrial destruída, um sistema político arcaico, e sem escolas que permitissem sequer educar uma elite mínima que pudesse servir de base a uma expansão futura da escolaridade, o país entrou no século XIX condenado, precisamente quando a maior parte dos países da Europa Ocidental estava a preparar-se para ter revoluções industriais. Nem todas as decisões feitas nos séculos seguintes foram boas, como veremos. Mas o contexto foi muito dificultado pela pesada herança com que o país saiu do século XVIII.
Pombal foi, sem dúvida, um agente do seu tempo. Importa reconhecer, contudo, que as decisões que tomou foram desastrosas para o país. O terramoto de 1755 ajudou-o a centralizar o poder, tendo de resto a sua sobrevivência política sempre dependido da vontade do Rei D. José, como a morte deste último veio a demonstrar. Com o capitalismo de compadrio que Pombal promoveu para benefício próprio, quem enriqueceu foi ele, assim como os seus familiares e aliados políticos – enquanto a população portuguesa no seu todo saía prejudicada. Seria isto «nepotismo esclarecido»? Já a acusação de que expulsar os jesuítas iria permitir o avanço científico do país – amplamente difundida às ordens de Pombal – é uma das maiores mentiras da nossa História.
Ainda hoje estamos a pagar as consequências. Mas não deixa de ser importante compreender que Pombal não foi um tirano que apareceu do nada. Quando subiu ao poder, o ouro do Brasil já estava a causar problemas económicos e políticos ao país desde há várias décadas: a indústria estava em decadência acentuada e as Cortes já não se reuniam há meio século. Como tal, a concentração de tanto poder num só homem, e num homem como Pombal, é em si um sintoma da profunda doença do país, e não a sua causa.
Não deixa, no entanto, de ser verdade que Pombal foi a pessoa mais diretamente responsável por condenar Portugal a séculos de atraso educativo. Vale a pena, por isso, fazer a seguinte pergunta: porque será que Pombal é tantas vezes encarado como um reformista de vistas largas? Em parte, porque ainda governou durante um período de relativa prosperidade e porque os regimes que o sucederam não foram melhores. Não é por acaso que, durante a Viradeira – o regime associado a D. Maria I, que o sucedeu –, cunhou-se a expressão «mal por mal que venha o Pombal».
A pouco e pouco, Pombal veio a surgir como uma figura musculada que fez algo pelo país. Hoje sabemos que a economia colapsou, de forma espetacular, nas décadas finais do século XVIII, e que o atraso se acentuou na primeira metade de Oitocentos. Ainda que isso tivesse acontecido em parte devido às ações de Pombal – e, num sentido mais profundo, devido à Maldição Dourada –, o declínio fez-se sentir principalmente a partir do reinado de D. Maria I.
Um observador francês notou, em finais do século, a pobreza da população de Lisboa, troçando da convicção de muitos portugueses de que viviam no melhor país do mundo. Escrevia ele que, pelo contrário, o país era «o mais atrasado, o mais ignorante, o menos civilizado, o mais selvagem e bárbaro de todos os países da Europa». A qualidade das instituições não melhorou depois da queda de Pombal, tendo outro observador estrangeiro considerado que o governo de D. Maria I «pode ser considerado como o mais despótico de todos os que dirigem os Reinos da Europa (…) a lei aqui estabelecida é geralmente uma palavra vazia de sentido, a não ser quando as suas cláusulas são postas em execução por ordens especiais do soberano». Essa era a forma de governar de Pombal, mas assim continuou depois da sua queda.
Não sou em geral a favor do derrube de estátuas, mas não deixa de ser curioso que Pombal tenha a proeminência que tem na mais conhecida rotunda do nosso país. Essa estátua representa hoje o triunfo da propaganda sobre a verdade, mais de dois séculos depois. Não há dúvida de que as mentiras promovidas por Pombal foram eficazes, também por terem sido evidentemente úteis a regimes e narrativas que surgiram mais tarde.
Assim, não surpreende a subsequente reabilitação e veneração da sua figura, não deixando de ser irónico que ainda hoje seja frequentemente visto como um grande reformador, até entre muitos historiadores incautos. Tudo culminou no mandar erguer da sua estátua, cerca de um século e meio depois da sua morte, por um regime que também se caracterizaria por uma grande divergência entre as belas intenções declaradas e a realidade conseguida a nível educativo: a Primeira República. Mas, antes de aí chegarmos, temos de atravessar o século XIX: um período deprimente da História de Portugal. Ainda que a maldição do ouro já estivesse a afundar a economia setecentista portuguesa, e o atraso tenha aí as suas raízes, foi no século XIX que Portugal bateu no fundo.