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Durante a II Guerra Mundial, um jornalista português montou para a Associated Press um esquema que permitiu à agência de notícias norte-americana continuar a fornecer e a receber fotos de e para o regime nazi, fintando assim a neutralidade portuguesa e a proibição de trocas comerciais entre os Estados Unidos e a Alemanha. Esse jornalista, Luís Lupi, além de representante da Associated Press em Portugal ao longo de mais de três décadas, foi também correspondente da Reuters, e fundou a Agência de notícias Lusitânia, com a ajuda de Marcello Caetano, em 1944. Distinguiu-se ainda, em várias fases da sua vida, como homem de negócios, “homem de Africa”, salazarista, informador ou espião a favor dos ingleses.
“Sempre quis estar próximo do poder e ser um porta-voz do regime junto das comunidades de língua portuguesa. Falhou tanto numa coisa como na outra. Foi vigiado pela PIDE durante toda a vida. Depois do 25 de Abril, foi obrigado a exilar-se”, assinalam na introdução os autores da biografia de Luís Lupi, que agora pré-publicamos, Wilton Fonseca, jornalista brasileiro e ex-diretor de comunicação da Fundação Gulbenkian e da FLAD, e Gonçalo Pereira Rosa, jornalista, diretor da National Geographic, investigador da Universidade Católica e autor de vários livros sobre a história do jornalismo.
sofisticado intelectualmente nem era brilhante no seu comportamento em sociedade. Com o tempo, transformou-se num salazarista convicto. Tentou aproximar-se do ditador. Fascinado pelo poder, foi sempre por ele rejeitado.
Wilton Fonseca teve pela primeira vez contacto com a história de Luís Lupi por acaso: quando chefiava a redação da agência NP, a viúva bateu à porta, na companhia do advogado. Estava a travar uma batalha nos tribunais para reaver as contas bancárias do marido, congeladas durante o PREC. Luís Lupi tinha morrido exilado em Madrid em 1977. A viúva, Nita Lupi, queria também reabilitar a memória do marido, e acaba por ser uma das protagonistas do livro, que retrata também a relação intensa entre o casal.
Em pré-publicação, pode ler a seguir alguns excertos dos capítulos iniciais do livro “Jornalista, espião e empresário — A vida aventureira de Luís Lupi nos corredores do Estado Novo”, que foi apresentado na passada terça, 6, na Casa da Imprensa, em Lisboa.
A mensagem de Salazar para os portugueses do Ultramar que afinal foi escrita por Lupi
Entre os anos 40 e os anos 60, o jornalista Luís Caldeira Lupi, fundador da Agência Lusitânia, foi uma figura marcante na sociedade lisboeta. Vestia a farda da mocidade portuguesa quando lhe convinha; fornecia informação aos ingleses e não se importava que se soubesse; proclamava publicamente o seu desprezo por comunistas e fascistas, nacionais ou estrangeiros, mas não olhava a cores políticas quando a questão eram os negócios, quer fossem a venda de aviões aos nacionalistas espanhóis, o fornecimento de fotografias ao regime de Hitler ou burlas de pequena dimensão.
Recebia no seu escritório, em pleno Chiado, figuras como Marcelo Caetano, o Núncio Apostólico, diversas personalidades “duras” do Estado Novo, africanistas, diplomatas e jornalistas; era salazarista apesar de saber que Salazar não o tinha em grande consideração. Era católico praticante, mas viveu “em pecado” durante dezenas de anos com a mulher que amou, a quem só muito tardiamente conseguiu dar o seu nome; era capaz de atos de grande generosidade, como perfilhar os filhos que Nita teve do seu primeiro casamento, chegando a contrair dívidas para tentar curar um deles, e de atos mesquinhos, como inventar mentiras sobre as pessoas de quem não gostava ou quase escravizar alguns dos jornalistas que trabalharam para ele.
Luís Caldeira Lupi nem sempre gostou de Salazar. Apesar de ter ficado impressionado, desde o primeiro momento, com a postura do político, achava que o provinciano professor de Coimbra não era muito
sofisticado intelectualmente nem era brilhante no seu comportamento em sociedade. Com o tempo, transformou-se num salazarista convicto. Tentou aproximar-se do ditador. Fascinado pelo poder, foi sempre por ele rejeitado.
Para atingir o que queria, procurou rodear-se de pessoas que lhe pudessem ser úteis – políticos, empresários ou diplomatas. A fim de lançar a Lusitânia – a primeira agência noticiosa portuguesa digna desse nome – contou com o apoio de Marcelo Caetano, mas mais tarde voltou-se para os setores mais conservadores do regime. Julgava- se um aliado natural de Salazar, um admirador nunca compreendido.
No terceiro volume das suas “Memórias – diário de um inconformista”, Luis Lupi relata um episódio que ilustra perfeitamente não só o que foi a Lusitânia, mas também a complexidade da sua relação com o poder, e particularmente com Salazar. “É surpreendente este senhor Doutor Salazar (…) Hoje, embaraçou-me duas vezes e por formas totalmente opostas: uma semidesagradável e outra extraordinariamente agradável”, escreve ele.
O episódio diz respeito a uma visita que o então presidente do Conselho de Ministros efetuou à Feira das indústrias, em 26 de junho de 1951. No stand da Marconi, fora instalado um teleimpressor com o serviço noticioso da Lusitânia. Lupi pediu a Salazar que dali mesmo transmitisse uma mensagem “para os portugueses do Ultramar”. A resposta foi uma silenciosa recusa.
Horas mais tarde, porém, o presidente do Conselho telefonou-lhe para casa, a pedir que ele mesmo escrevesse a mensagem. Eis o diálogo, reconstituído por Lupi:
— “Mas senhor presidente, eu peço a V. ex.a o favor de ditar. eu tomo nota imediatamente.”
— “Mas não é preciso. Escreva-a o senhor”, respondeu-lhe Salazar.
Dez minutos mais tarde, Lupi já tinha escrito a mensagem. Telefonou para a residência de Salazar:
— “Fez isso muito depressa”.
— “Nós, os jornalistas, temos de escrever depressa, sr. presidente”, respondeu Lupi.
Após a leitura da mensagem, Salazar afirma: “Está muito bem. Mande assim mesmo, que eu não faria melhor.” E assim chega ao Ultramar uma mensagem de Salazar que o próprio ou o seu gabinete nunca escreveram.
Luís Caldeira Lupi nasceu em Lisboa em 27 de dezembro de 1901, na Calçada da Estrela, numa casa que, segundo ele, “há muito deu lugar a um desses caixotes compartimentados para que neles durmam, se alimentem e se recreiem montes de pessoas que, entre si, terão somente em comum o serem humanos”.
O “Luís” constituiu uma homenagem a São Luís Gonzaga. Era o quarto filho, único rapaz, de Luís Filipe Blanc Fernandes Lupi, funcionário superior dos Caminhos de Ferro, e de Hortênsia Palmira Caldeira Rodrigues, ela 15 anos mais velha do que ele.
Desde muito cedo foi “mordido pelo vírus da política nacional”. Nas páginas iniciais das memórias descreve os serões familiares na Estrela: fazia-se música e discutia-se política. Um dos tios era “teimosamente miguelista”, um outro “desesperadamente cartista”. O primeiro ensinou-lhe a letra do Hino do senhor Dom Miguel; o outro dava-lhe cinco réis para que ele cantasse o Hino da Carta…
O pai foi nomeado diretor de tráfego dos Caminhos de Ferro de Moçambique quando Luís tinha 2 anos. A família transfere-se para Moçambique, onde tinha algumas regalias próprias dos quadros administrativos das colónias: a mais empolgante delas era a possibilidade de utilizar uma carruagem privativa, que se encontrava sempre à sua disposição. Lupi praticamente nada diz sobre as irmãs, nas suas “memórias”; na altura da partida para Moçambique, as raparigas eram bastante mais velhas do que ele: Augusta teria 13 anos, Amália 10 e Júlia 6 anos.
Em Lourenço Marques, na altura pouco mais do que uma vila erguida em torno de uma fortaleza, rodeada de pântanos e ameaçada por ferozes incursões de rebeldes pagos e armados “por interesses estrangeiros”, o jovem Luís tem os primeiros contactos com a língua inglesa, aprende a amar o continente africano e a admirar os seguidores das mensagens de Mouzinho: “Para salvarmos moçambique, bastará respeitar três princípios: amar a pátria sobre todas as coisas; odiar os boers e os ingleses; desconfiar de todos os missionários que não sejam católicos e portugueses”.
Iniciou os seus estudos em Lydenburg, pequena vila do transvaal Oriental, num colégio de padres irlandeses. saudoso de casa, um dia escreveu uma carta à mãe, dizendo que queria regressar porque o colé- gio “era uma espelunca”. Como resposta, recebeu uma carta em que a mãe prometia que lhe escreveria todas as sextas-feiras. A promessa foi cumprida até a senhora falecer, com 97 anos… (…)
Um casamento sem aventuras mas marcado por muitas cenas de ciúmes
Quando Lupi regressa a Moçambique, em plena primeira Guerra mundial, aceita trabalhar como agrimensor, o que lhe permitiria “viver no mato e explorar as selvas”. Começa a trabalhar como correspondente do semanário de Leo Weinthal [um judeu de origem alema, amĩgo da família, e “pioneiro de áfrica”, proprietário e diretor do jornal “the African World”]. Escreve também para algumas publicações locais como “O Africano” e “The Lourenço marques Guardian”, um trissemanário bilingue de cuja redação faz parte. Anos mais tarde, muitas das missivas que dirige ao poder, em Portugal, seriam escritas em papel timbrado de “the African World (and Cape Cairo express)”, no qual o nome de Luís Caldeira Lupi é impresso com a indicação de “sole oficial representative in Lisboa”. (…)
Lupi não consegue que nenhum jornal publique um seu indignado artigo sobre o “Magaíça”, o nativo que em regime de semiescravidão vendia a sua força de trabalho nas minas de ouro da África do Sul. só mais tarde o artigo seria publicado pelo “repórter X”, de Reinaldo Ferreira. As autoridades terão recebido inúmeras queixas contra o autor.
Lupi encontra na revista de Reinaldo o ambiente perfeito para expor em reportagem algumas das suas ideias mais originais. Fluente em inglês, encarrega-se de traduções, entrevistas e adaptações de temas anglófilos para publicação. Durante o ano de 1932, o segundo da vida de “repórter X”, assina ali reportagens invulgares: “As recentes revoltas nos presídios de Columbus e Dartmoor”, “Foram encontradas as verdadeiras minas de salomão”, “Um matusalém inglês”, “entrevista com lord Jellicoe” (com direito a fotografia e legenda que identifica “o nosso redator Luís Lupi”) ou “Aventuras extraordinárias de um globe-trotter”). As fotografias que a publicação reproduz do seu colaborador mostram-no ainda sem a barba que será a sua imagem de marca, impecavelmente trajado e já com excesso de peso. Apesar desta proximidade a Reinaldo Ferreira, lupi não será convidado, após a morte do malogrado jornalista, a colaborar no livro de homenagem ao repórter X.
Com pouco mais de 20 anos, Luís encontra-se pela primeira vez com Mariana Duarte de Almeida. Natural de Silves, Nita (como era chamada) fora casada com um senhor algarvio que a abandonara com dois filhos, mas de quem ainda guardava o apelido: Lança.
Luís e Nita construíram uma união invulgarmente feliz, a despeito de algumas monumentais cenas de ciúmes. Ele escreve, nas suas memórias: “Encontrei em minha mulher uma boa porção de qualidades que em mim não abundavam. Destacavam-se, sobretudo, o senso prático e a desperta inteligência. Aos meus sonhos de puro idealismo, que tantas vezes se sobrepunham às realidades cruéis, a Nita oferecia uma fria análise e fazia-o com inabalável convicção”. E ainda: “A esposa do meu destino… tinha para mim os encantos de uma ânfora onde os Deuses da poesia vêm derramar beleza. E, como dádiva maior, ela possuía, ao mesmo tempo, uma voz maravilhosa como cantora, completando assim a personalidade artística com que me cativara”.
Numa carta que dirigiu a Salazar em 11 de junho de 1938, Lupi afirma que regressou a Portugal em 1927, ao que tudo indica depois de passar algum tempo na África do Sul, já na companhia de Nita e dos filhos.
O jornalista Augusto Fraga (1910-2000), que trabalhou para a Associated Press durante muitos anos, visitava Lupi quase diariamente. Afirmou que durante os anos em que conviveu com Lupi nunca lhe conheceu qualquer aventura extraconjugal: “O amor, o respeito e o carinho que devotava à Nita eram exemplares”. Nita foi uma fiel companheira de Lupi em todos os momentos. Tentou uma carreira de poetisa, conseguindo uma certa aceitação na Imprensa.
Apesar de reconhecer a “dádiva maravilhosa” que constituía a voz de Nita Lupi, os ciúmes de Luís levaram a jovem algarvia a abandonar uma promissora carreira como cantora lírica. Quando Luís Lupi já era uma pessoa socialmente conhecida, Nita organizava saraus beneficentes, com o fim de angariar fundos para as obras de benemerência como a Liga de Defesa dos Animais e a Casa dos Rapazes da Cidade. A imprensa dava notícias sobre tais acontecimentos. Em 15 de março de 1941, organizou um sarau e conferência a favor da Liga de Defesa dos Animais, que mereceu uma reportagem em “O Século”. Anos antes, em 26 de maio
de 1934, também havia ajudado a organizar a festa da revista “Modas e Bordados”, subindo ao palco na companhia de Maria Archer, Albertina saguer, Cândida Florinda Ferreira e Helena Coelho Correia.
Nos saraus e em outras ocasiões, na companhia de outros artistas, Nita fazia ouvir a sua voz, sem que o marido pudesse reagir… Sobre o seu casamento, Nita disse que, apesar de toda a sua vida ter sido “um naufrágio contínuo”, conheceu em Lupi o seu grande amor: “Éramos duas almas, dois corpos e um só coração…”.
Um fracasso de bilheteira com um bailarino que não conseguia livrar-se da tinta dourada
Não é fácil tentar reconstituir o início da relação de Luís e Nita. As biografias mais pormenorizadas de Nita divergem quanto ao ano do seu nascimento e ao período conturbado da sua vida antes de conhecer luís. Celebrava o seu aniversário no dia 15 de agosto. Faleceu em Lisboa em 1999.
Os descendentes do casal e os membros da família Lupi recusam-se a desvendar os “segredos” familiares. Por excesso de incompreensível pudor, talvez tenham deixado que se extraviasse a rica documentação que Nita conservou durante anos, carinhosamente, em seu poder.
Filha de José Duarte de Almeida e de Maria José Duarte de Almeida, Nita começou a cantar na igreja de Silves. A cidade deu o seu nome a uma das ruas que circundam o museu local, no centro histórico. Ainda adolescente, ter-se-ia casado por procuração com um proprietário de Moçambique, de quem teve dois filhos: Francisco, nascido em 6 de março de 1920, que se tornaria um xadrezista de renome internacional e morreria prematuramente em Madrid, em 14 de janeiro de 1954, vítima de uma doença degenerativa, e Maria Isabel, nascida em 1921, escritora e artista plástica. Luís Lupi, que não podia ter filhos, perfilharia as duas crianças.
No primeiro volume das suas memórias, Lupi afirma que se encontrava então nos seus “primeiros vintes” quando encontrou aquela a quem penhoraria a sua liberdade e que o livraria das dúvidas e incertezas da sua juventude. (…)
Em 1928, além da correspondência com “The African World”, Lupi pouco produziu como jornalista. No mês de março, envolve-se como empresário “numas aventuras que acabariam, como seria de calcular, na mais completa falência financeira”. No centro das aventuras esteve o bailarino Luís Reis Santos.
Luís Reis dos Santos (1898-1967), que mais tarde se afirmaria como professor universitário, crítico de arte e diretor do museu Nacional Machado de Castro, de Coimbra, descobriu, com o nome artístico de Luís Turcifal, a sua vocação para o ballet, tendo como musas inspiradoras Diaghilev, Isadora Duncan e Pavlova. Sonhava com a organização de uma grande companhia internacional de dança com base na capital portuguesa.
No Teatro da Trindade, Reis Santos/Luís Turcifal dançou “el amor brujo”, de Manuel de Falla, e o “prélude à l’après-midi d’un faune”, de Debussy. Neste bailado, vestia apenas uma pequena “trousse”, tinha o corpo coberto de purpurina dourada e a cabeça coroada de louros, de onde sobressaíam dois fulgurantes cornos. Segundo Lupi, foi o “mais retumbante e escandaloso dos sucessos”. No entanto, o resultado da bilheteira não seria suficiente sequer para pagar o aluguer do teatro.
O espetáculo merecera boa publicidade na imprensa. Francine Benoit (que também participara na organização do evento), publicou uma entrevista de uma página com Luís Reis Santos no “Diário de lisboa”, um dia antes da estreia. O entrevistado cita uma série de pessoas envolvidas na organização, como Luís de Freitas Branco, Jorge Barradas e a própria entrevistadora, mas não menciona o nome de Lupi ou do seu amigo na “aventura”, Celestino Soares.
Lupi relata que no intervalo do espetáculo, os bombeiros pediram o pagamento que lhes era devido, ameaçando que não deixariam o ballet continuar enquanto não fossem pagos. Lupi e Celestino Soares andaram a pedir contribuições aos espectadores amigos. Mas o pior ainda iria acontecer: no final, “o pobre Luís Reis Santos não conseguia livrar-se da capa de tinta dourada com que se cobrira e tinha a pele terrivelmente irritada por aquele produto, que era mais ou menos tóxico e a que ele se revelou alérgico… minha sogra, que assistira, aflita àquele estranho espetáculo, perguntava-me no dia seguinte: ‘Coitado do rapaz! Ainda está pintado?’”