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Nos 40 anos da morte de Sá Carneiro, a JSD, liderada por Alexandre Poço, quis fazer uma homenagem ao fundador do partido com o livro “40 anos, 40 testemunhos sobre Sá Carneiro“, que será lançado esta sexta-feira, 4 de dezembro, dia em que se evocam os 40 anos da trágica morte do fundador do partido. Do livro fazem parte testemunhos todos os ex-líderes do PSD vivos, de antigos primeiros-ministros, o Presidente da República, do ex-ministro João Soares, de três ex-líderes do CDS e de outras personalidades políticas e cívicas da sociedade portuguesas, próximas de Sá Carneiro ou que conviveram com ele.
O Observador pré-publica em exclusivo os textos do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, do atual líder do PSD, Rui Rio, do fundador do PSD, Francisco Pinto Balsemão, do antigo Presidente e primeiro-ministro Aníbal Cavaco Silva, do antigo primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, e da antiga secretária de Sá Carneiro e militante número dois do PSD, Conceição Monteiro.
Marcelo Rebelo de Sousa. “Francisco Sá Carneiro – Ver E Querer Antes De Todos”
1. Para o Partido Popular Democrático, hoje Partido Social Democrata, Francisco Sá Carneiro foi, é e será a grande referência pessoal e política.
Para Portugal, Francisco Sá Carneiro foi, é e será quem viu e quis, antes de todos, o que haveria de ser o futuro.
2. Para o Partido Social Democrata, Francisco Sá Carneiro foi, é e será a grande referência pessoal e política.
Porque foi fundador e o primeiro líder, na altura designado Secretário‐Geral.
Porque, nessa medida, foi um dos Pais Civis da nossa Democracia.
Porque foi quem definiu, logo na primeira audiência que lhe foi concedida pelo Presidente António Spínola, que o partido a nascer seria o “grande partido do centro”, quando a maioria o via mais como um partido liberal de espaço muito questionável.
Porque cedo definiu a sua opção social‐democrática e entendeu a diversidade frentista do partido, em termos doutrinários e ideológicos.
Porque chegou mesmo ao ponto de aceitar e patrocinar a única como que tendência minoritária organizada nela jamais admitida.
Porque, em simultâneo, sempre defendeu a unidade no essencial e rompeu, por duas vezes, com a orientação dominante, por entender que esse essencial podia estar a ser questionado. Em 1975 e, novamente, em 1977‐1978.
Porque resistiu à queda do Primeiro Governo Constitucional e à campanha contra si e os partido feitos, à renúncia do Presidente António Spínola e a nova campanha contra si e o partido, à divisão interna em plena Revolução, à profundíssima cisão no partido e na bancada constituinte no final de 1975, à muito frustrante derrota nas legislativas de 1976, ao desafio da primazia na candidatura do Presidente António Ramalho Eanes, à longa querela interna entre 1977 e 1978, e à segunda profunda cisão em 1979, aos três Governos de iniciativa presidencial e às vicissitudes de pôr de pé a Aliança Democrática, levando‐a mesmo, por duas vezes, ao Governo de Portugal.
Ninguém mais desempenhou um tal papel, afirmando e consolidando, no período mais difícil, um dos dois maiores partidos da Democracia Portuguesa.
Porque foi decisivo na adesão e congregação, no partido, nesses curtos mas intensos seis anos, de todos os futuros líderes do partido até aos primórdios do século XXI, marcando‐os de forma próxima, pessoal e politicamente. A começar no sucessor, seu companheiro desde a “ala liberal”, Francisco Pinto Balsemão.
E o mais duradouro e influente de todos eles, como líder, Primeiro‐Ministro e Presidente da República – Aníbal Cavaco Silva –, foi uma escolha pessoal sua, como Conselheiro – antes do Governo – e como Ministro das Finanças, nos dois Executivos a que presidiu.
Por tudo isto, lhe deve o Partido Social Democrata uma homenagem única nos quarenta anos da sua morte.
Como testemunha empenhada nesse percurso histórico, e até no que o antecedeu, entre o final dos anos 60 e 1974, àquela homenagem me associo, como cidadão e social‐democrata.
3. Para Portugal, Francisco Sá Carneiro foi, é e será quem viu e quis, antes de todos, o que haveria de ser o futuro.
Porque viu e quis uma Democracia sem tutela militar, quando a revolução ainda conhecia o fluxo da legitimidade revolucionária e do crescendo do peso do Movimento das Forças Armadas.
Porque viu e quis uma Democracia referendária e não apenas representativa, quando o referendo ainda era um instituto visto como similar ao plebiscito da ditadura.
Porque viu e quis uma revisão constitucional que acelerasse o período transitório de vigência do sistema de Governo herdeiro direto da revolução, quando a perspetiva dominante era menos acelerada.
Porque viu e quis uma ampla e progressiva autonomia regional dos Açores e da Madeira quando dominava uma visão autonómica mas mais contida.
Porque viu e quis que a revisão constitucional acelerada substituísse o regime económico notado em 1975 e 1976 por um regime económico com peso determinante do sector privado, quando a tendência prevalecente era a oposta.
Porque viu e quis a integração europeia, tal como muitos outros, mas ao fazê‐lo em 1974, de modo assertivo, criou um compromisso irreversível para o seu partido.
Porque viu e quis assumir um passo inspirador nas relações com os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa, com a sua simbólica carta ao Presidente Samora Machel, sobrepondo‐se a um clima oposto muito forte na área que liderava, fruto das feridas da descolonização e da própria colonização e seu processo terminal.
Porque viu e quis contribuir para a definição do sistema partidário português, no partido que criou e na primeira coligação pré‐eleitoral da jovem Democracia, que liderou.
Porque tudo isto viu e quis, muito antes de se ter efetivado, não tendo tido a oportunidade histórica de assistir à sua concretização.
Por tudo isto lhe deve Portugal uma homenagem – também ela única – nos quarenta anos da sua morte.
Como Presidente da República, dou voz a essa homenagem em nome de portugueses dos mais variados credos, pensamentos e visões de Portugal.
Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República
Rui Rio. “Evocar Sá Carneiro 40 anos depois”
Em primeiro lugar, saúdo a Juventude Social democrata e, através dela, todos os jovens portugueses, por esta iniciativa, que visa dar a conhecer a história e o papel decisivo que Francisco Sá Carneiro desempenhou na implementação da democracia, alicerçada em valores como a liberdade, a igualdade de oportunidades, a solidariedade e uma visão reformista da sociedade que não podemos nem queremos esquecer.
Aqui poderia citar muitas das suas frases mais emblemáticas, às quais quase todos recorremos nos discursos que regularmente fazemos dentro e fora do Partido Social Democrata Também eu não sou exceção. Mas, se é verdade que foi por sua causa, – por causa de Francisco Sá Carneiro – que decidi filiar‐me no PPD, também é verdade que ainda hoje me revejo em muitos dos seus atos e intervenções proferidas na altura.
Francisco Sá Carneiro ficará para sempre plasmado na história da nossa democracia, que já conta com 46 anos de idade. Ele partiu há quarenta e, por isso, os jovens de hoje não tiveram oportunidade de o conhecer na vida política ativa. Também eu não cheguei a ter o privilégio de privar com ele, mas acompanhei o seu percurso desde antes do 25 de Abril e guardo na memória caraterísticas que considero imprescindíveis para o exercício de cargos públicos.
Neste caso, e porque os destinatários deste texto são essencialmente os jovens, gostaria de destacar duas caraterísticas que definem o seu perfil: a coragem e a coerência com que sempre esteve na vida pública, ao colocar sempre em primeiro lugar o interesse do país e dos portugueses, em detrimento do partido e do seu próprio interesse particular.
Sá Carneiro e seus contemporâneos viveram um momento especial da história do país: combateram a ditadura e ajudaram a instaurar o regime democrático, em que a ideologia dominava comícios, manifestações e debates acalorados que contagiavam os portugueses, ansiosos por uma mudança.
Foi neste clima que Sá Carneiro definiu um rumo para o PPD/ PSD: seria um partido de centro, mais exatamente, de centro esquerda.
Compreendido o momento e as circunstâncias em que o fez, eu definiria hoje o PSD como um partido do centro, que, a par das liberdades e da qualidade da própria democracia, se preocupa com a classe média, com o emprego, com a criação de riqueza e, fundamentalmente, com o futuro do país.
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O PSD respeita as minorias, mas é um partido de vocação maioritária; recusamos os extremos e aspiramos a construir um país com mais qualidade de vida, em que a felicidade é a luz que nos guia.
Estivemos ao lado dos portugueses nos bons e nos maus momentos e, apesar de alguns percalços normais na vida política e partidária, orgulhamo‐nos da nossa história e dos nossos militantes. Sabemos que existe hoje alguma justa desilusão em relação aos partidos, mas estamos também conscientes que são eles que têm a responsabilidade de lutar por conseguir reforçar a sua confiança junto dos cidadãos.
Não nos deixamos iludir, nem acreditamos em movimentos que se alimentam de ódios, de divisões e da fraqueza de alguns grupos menos protegidos. A política existe para resolver os problemas das pessoas e, nunca, para tentar tirar dividendos partidários desses mesmos problemas.
Não conheço nenhum regime melhor que a Democracia e, por isso, perante o desgaste que o tempo lhe provocou, é urgente fazer reformas no nosso sistema político. A liberdade com responsabilidade e os valores éticos como base inviolável do nosso comportamento individual e coletivo têm de voltar a ganhar a força e a implantação que, em tempos, já tiveram.
Cabe aos líderes políticos e partidários, mas também à sociedade em geral e aos jovens, em particular, mudar o “estado da arte”.
O PSD, como partido reformista que sempre foi, tem vindo a trabalhar nesse sentido, porque, se assim não for, caminharemos, como disse, para uma crescente degradação da nossa democracia representativa. Caminharemos para uma sociedade cada vez mais egoísta, dominada por grupos de interesses, em que os nossos valores são hipocritamente abastardados para, dessa forma, abrirem a porta a poderem ser utilizados como suporte de tudo e do seu contrário.
Honrar Sá Carneiro é justamente procurar responder aos desafios estruturais do regime e da nossa sociedade.
Foram sempre esses os objetivos que nortearam a sua ação política e foi isso que nele sempre me fascinou. Foi, por isso, que aderi a Sá Carneiro, ainda antes da fundação do próprio PPD.
Rui Rio, presidente do PSD
Francisco Pinto Balsemão. “Cavaleiro solitário, chefe de equipa, homem de visão”
O Francisco Sá Carneiro que conheci em 1969 na Assembleia Nacional não era, como é natural, a mesma pessoa que morreu 11 anos depois, em Camarate. As revoluções que, entretanto, aconteceram no País e na sua vida pessoal, transformaram o jovem advogado do Porto, reservado, impenetrável nos primeiros contactos, num estadista carismático, num animal político como poucos terá havido em Portugal, num homem aberto a tudo o que a vida lhe podia trazer, desejoso de conhecer e de desfrutar.Não é, no entanto, dessa transformação notável – que lhe deu um sólido estatuto de ponto de referência, mesmo quando os seus adversários políticos envolveram a sua vida pessoal nos ataques que lhe faziam – que quero aqui falar hoje.
Quarenta anos depois da morte de Francisco Sá Carneiro, quero lembrar e analisar três constantes da sua maneira de ser, da sua presença, da sua atuação. Essas três constantes são, em minha opinião, parte essencial da legenda e do legado que nos deixou e ainda hoje nos inspiram: o cavaleiro solitário; o chefe de equipa que sabe trabalhar em equipa; o visionário.
Um acidente grave de automóvel, que teve como consequência retirarem‐lhe o baço e ter visto, então, a morte de muito perto, deram‐lhe uma serenidade grande e uma coragem ainda maior. Sabia hierarquizar a importância das coisas e das pessoas. Não se deixava impressionar ou excitar, media as consequências, não corria a foguetes. E não tinha medo.
Mas, por outro lado, tinha pressa. Não gostava de se atrasar no tempo político; pelo contrário, sabia que a antecipação era importante, que o efeito surpresa contava.
Nesse sentido não foi um homem só, mas foi sempre um cavaleiro solitário.
Um cidadão capaz de tomar uma iniciativa sozinho, trabalhando ‐a primeiro e publicitando‐a na ocasião adequada, fosse um projecto de lei, uma proposta política, uma mudança de alvo prioritário de ataque.
Por exemplo: os diplomas que a Assembleia Nacional de 1969/73 nunca sequer debateu, sobre o direito de reunião e o direito de associação. Esses diplomas, tanto quanto sei, elaborou‐ ‐os sozinho, provavelmente no Hotel Tivoli, onde ficava quando vinha a Lisboa e passava longas horas de isolamento, e entregou‐os sozinho ao parlamento de então. Não consultou os outros membros da “ala liberal”, avisou‐nos apenas do facto consumado. Procedimento idêntico adoptou, aliás, em 1973, ao apresentar individualmente a sua demissão da Assembleia Nacional.
E, quando, poucos dias depois do 25 de Abril, anunciou, na RTP, que tencionava fundar um partido político, também falou por si próprio sem averiguar primeiro se a ideia era apoiada por muitos ou por alguns dos que militavam na mesma onda. Lembro‐me de lhe ter telefonado, no dia seguinte, a perguntar‐lhe se a proposta era a sério e de ele me ter respondido que obviamente era a sério, como se eu estivesse a pôr em dúvida algo que não era discutível (nesse dia seguinte, fui eu entrevistado pela RTP e reiterei a ideia da criação próxima de um partido político de inspiração social democrata, o que veio a acontecer a 6 de Maio).
Do mesmo modo, quando se demitiu da chefia do PSD e quando resolveu voltar à chefia do PSD, as decisões foram solitárias.
Como solitária foi, pelo menos numa primeira fase, a decisão de sair do Governo, se Soares Caneiro não ganhasse as presidenciais de 1980.
Nestas e em tantas outras ocasiões fundamentais, Francisco Sá Carneiro actuou, sempre inesperadamente e por vezes descon‐ certantemente, por si próprio, por sua iniciativa, sem precisar de ouvir ou de receber apoios.
Esta foi sempre uma das suas principais características que o diferenciaram dos seus pares e, pelo seu balanço final positivo, fizeram dele um dos grandes políticos portugueses do século XX.
Não há que confundi‐la com arrogância nem com complexos de superioridade. Sá Carneiro nunca disse e atrevo‐me a afirmar que, em termos gerais, nunca pensou: “eu é que sei, os outros não percebem nada disto”. O que não significa que encontrasse grande disponibilidade para os maçadores, os medíocres, os lisonjeadores profissionais e os intriguistas. Sá Carneiro teve sempre a coragem de dizer o que pensava, de actuar em conformidade e de várias vezes, correr isolado o risco dessa actuação. E de, na maioria dos casos – não sempre como é evidente –, ter razão. Ter razão, no tempo certo, antes dos outros, não antes de tempo, que é o pior que pode acontecer a qualquer político.
O cavaleiro solitário sabia, porém, funcionar em equipa, sabia chefiar grupos de trabalho, sabia que, para dar sequência à sua intervenção política, não podia refugiar‐se na solidão, tinha de ir buscar, motivar e orientar outras pessoas.
Prefiro não entrar no período tumultuoso da criação e crescimento do PSD, desde a própria fundação, com o abandono de Miller Guerra, até às Opções Inadiáveis, com a saída de Magalhães Mota, passando pelo I Congresso em Lisboa, pelo Congresso de Aveiro, pela eleição de Emídio Guerreiro, pelo Congresso da Guarda, pelas saídas e regressos de tantos militantes de primeira hora. Só um partido como o PSD aguentaria todas estas vicissitudes, que fazem parte da sua história e, com elas ou apesar delas, conseguiria crescer até se tornar em 5 anos, de 1974 a 1979, e mais uma vez por impulso e influência de Francisco Śá Carneiro, o líder de uma aliança parlamentar e governamental.
Prefiro recordar três equipas que Francisco Sá Carneiro conseguiu reunir à sua volta e nas quais tive oportunidade de participar:
– O Governo‐sombra do PSD, do qual poucos se lembram, mas que funcionou na perfeição, em 1978 e 1979. Francisco Sá Carneiro percebeu que poderia vir a ser Primeiro Ministro em breve e quis preparar‐se para isso, provocando inevitáveis ciúmes na Comissão Política Nacional de então.
Os ministros‐sombra foram treinados e responsabilizados para exercer o poder. Vários desses ministros sombra passaram a ministros à luz do dia no Governo da AD, em Janeiro de 1980, entre eles, Vítor Crespo, Viana Baptista, Mário Raposo, além de mim próprio.
– Segunda equipa: o Governo AD de 1980. Era um executivo que resultava de uma maioria parlamentar complicada: o PSD detinha 75 lugares (dos quais 7 da Madeira e dos Açores), o CDS 42. Além disso, os Reformadores com 6 deputados eleitos e, com 5, o PPM que representava uma estreia se não mundial pelo menos europeia dos verdes, e também monárquicos populares, no poder democrático.
Francisco Sá Carneiro geria esta difícil amálgama e curta maioria (128 para a AD, 122 para a oposição) com enorme simpatia e paciência, tanto dentro como fora das reuniões do Conselho de Ministros – e eu que o diga, pois, como Ministro Adjunto tinha, entre variadas outras funções, a dos Assuntos Parlamentares.
Num Governo de coligação, o maior partido é, até certo ponto, o mais fraco, pois os partidos mais pequenos sentem‐se no direito de exigir e cobrar desproporcionadamente à relação de forças – e também aqui posso falar de experiência vivida, no Governo Sá Carneiro, como nos dois que a seguir chefiei.
– Terceira equipa: o “gabinete político”, ou seja, o grupo reduzido que, com irregularidade semanal, reunia para definir a estratégia governamental. Estas reuniões eram muito informais – ao contrário das do Conselho de Ministros, onde nos tratávamos por “Primeiro Ministro”, “Vice‐Primeiro Ministro”, “Ministro”, “Secretário de Estado”, etc., e por você.
Francisco Sá Carneiro gostava de ouvir e de contar histórias de bastidores, mas nunca esquecia a análise e a decisão estratégica. A partir do momento em que as decisões estavam tomadas e que o responsável era designado – podia ser eu, Diogo Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa – o Primeiro Ministro descentralizava e, porque confiava, pouco ou nada controlava. Lembro‐me de, na sala anexa ao meu gabinete do 6º andar da Gomes Teixeira, ter instalado um mapa que, com legendagem adequada, dava conta do grau de execução das diversas acções em curso. Acho que só uma vez consegui que Francisco Sá Carneiro viesse do 5º andar ver o dito mapa. De minimis non curat praetor? Sim, mas só em parte, porque, quando se tratava de medidas concretas – a revalorização do escudo, o preço dos transportes, as negociações europeias, por exemplo – descia a todos os pormenores e lia os dossiers até à exaustão.
A principal qualidade política de Sá Carneiro talvez tenha sido, no entanto, a visão. Visão que era previsão e antevisão, mas ia mais além, sem que isso o tornasse num visionário irrealista.
Visão, na Assembleia Nacional, ao denunciar a questão ultra‐ marina, ao apresentar um programa completo da restauração das liberdades e garantias individuais e dos direitos políticos, ao assinar um projecto de revisão da Constituição de 1933. Visão, fora da Assembleia Nacional e antes do 25 de Abril, ao deixar bem clara a sua opção social‐democrata, ao escolher grandes temas para os artigos no EXPRESSO que raras vezes a Censura deixava incólumes. Visão, durante o PREC, ao entender, ainda a tempo, e denunciar a tomada do poder pelo PCP e seus aliados no MFA, ao tentar impedir a sua ramificação por todos os centros de decisão da sociedade portuguesa, ao procurar evitar sem êxito que o PS fosse companheiro de percurso do PCP, ao insistir na adesão à CEE, na altura em que isso não estava na moda, ao marcar claramente a opção social‐democrata do PSD, cortando cerce as tentações direitistas de vários militantes de segunda e mesmo de primeira hora.
Visão, depois do 25 de Novembro, ao estabelecer a sua rota dentro do país, ao perceber a necessidade de um governo maioritário, ao tentar uma coligação com o PS, ao criar a coligação AD, ao avançar para a Europa, ao entender que o Presidente da República seria um obstáculo à normalização da vida democrática que implicava a revisão da Constituição.
É pena que este homem de visão e de palavra, que não deixou sucessor, não esteja mais entre nós.
Muitas vezes me interrogo: como seria Portugal se Francisco Sá Carneiro tivesse vivido?
Não é obviamente possível responder com exactidão. Uma coisa, porém, é certa: se Sá Carneiro não tivesse morrido, Portugal estaria melhor. Melhor não apenas no que respeita ao desenvolvimento e às estatísticas económicas e financeiras, mas, sobretudo, no que respeita à diminuição das injustiças sociais e à criação de igualdade de oportunidades, nas várias etapas da vida social e profissional.
Essa é afinal a palavra de ordem da social‐democracia: a liberdade é essencial, mas sem igualdade, a liberdade plena nunca será alcançada.
Para além das merecidas e necessárias evocações, a continuação da luta pela concretização desta palavra de ordem é a melhor homenagem que podemos prestar à memória de Francisco Sá Carneiro.
Francisco Pinto Balsemão, fundador do PSD
Aníbal Cavaco Silva. A atualidade de Francisco Sá Carneiro
Felicito a Juventude Social‐Democrata (JSD) pela iniciativa de promover e organizar um livro em memória e homenagem de Francisco Sá Carneiro.
Se os jovens sociais‐democratas de hoje querem efetivamente contribuir para fazer do Partido Social‐Democrata (PSD) um partido interclassista forte, vivo e exigente, guiado pelos princípios da social‐democracia moderna, que mereça a confiança dos portugueses para o exercício do poder, é essencial que conheçam melhor a figura e os traços fundamentais do pensamento político de Sá Carneiro.
Foi essa uma das razões que me levaram a escrever o livro “Uma Experiência de Social‐Democracia Moderna” para ser publicado no quadragésimo ano da sua trágica morte. Na cerimónia de apresentação do livro afirmei que, ao pesquisar os meus arquivos pessoais, encontrara dez textos que, ao longo dos anos, escrevera em memória de Sá Carneiro.
Em resposta ao pedido para contribuir para o livro organizado pela JSD transcrevo a seguir excertos daqueles meus textos, escritos entre os anos de 1982 e 2000, que entendo manterem plena atualidade.
“Francisco Sá Carneiro dignificou a atividade partidária
Com ele, o PSD foi sempre um partido pronto a lutar pela construção da democracia, por um Portugal mais justo e mais moderno; no entanto, também pronto a romper, quando e onde estava em causa o interesse do País, o seu futuro como grande partido português.
Ele próprio afirmou: “Saber estar e romper a tempo, correr o risco da adesão e da renúncia, pôr a sinceridade das posições acima dos jogos pessoais, isso é a política que vale a pena”.
Sá Carneiro respeitava e admirava as bases do seu partido, sabia falar mas sabia também ouvir, rejeitava o amorfismo e a obediência automática, estimulava a criatividade e a exigência.
Com ele, a vida partidária não se arrastava no compromisso, na apatia, na resignação. As bases sentiam‐se o motor de um projeto em movimento, eram corajosas e exigentes.
A ideia de Sá Carneiro era de transformar o País numa democracia onde vigorasse o primado da pessoa humana, onde se eliminassem as injustiças sociais sem perverter nem violar as liberdades individuais, onde a criatividade dos Portugueses se afirmasse.
Francisco Sá Carneiro dignificou o cargo de Primeiro‐Ministro.
Para ele, o poder em si não era um objetivo e a ética lhe exigia o seu exercício apenas como caminho para a realização de um projeto que o povo lhe colocara nas mãos através da força do voto. Governar apenas com o objetivo de manter o poder era comportamento que chocava frontalmente com a sua ética política.
Sá Carneiro acreditava firmemente no imperativo moral do cumprimento das promessas eleitorais, que tantos fazem em campanha para pôr na gaveta no dia a seguir à vitória. Não vendia ilusões, não mudava ao sabor do vento, não alterava a sua opinião por oportunismo. Não era um político da demagogia nem um vendedor de falsas promessas: era um político da verdade e as realizações concretas.
Sá Carneiro era o oposto daqueles políticos portugueses – alguns até se dizendo socialistas – que muito trazem na boca a palavra de justiça social mas que, na ação concreta, pouco ou nada fazem por ela e agravam mesmo a iniquidade na distribuição do rendimento.
Hoje, mais do que nunca, vale a pena revisitar o legado deixado por Sá Carneiro.
Neste tempo de impasse e degradação em que a situação política do País parece mergulhada, os portugueses só terão a ganhar com a difusão da sua obra e do seu exemplo.
O Homem coerente e vertical que trouxe para a política nacional o sentido das convicções por que vale a pena lutar.
O Político de inegável capacidade de liderança, perspicácia e clarividência, respeitado pelos seus adversários, a quem se acusava de ter razão antes do tempo.
O Político com profundo sentido de Estado, quer como governante quer como líder da oposição, nunca confundindo a arquitetura da Nação, que queria só lida, com a luta partidária.
O Governante rigoroso, que soube traçar um rumo para o País, restituir confiança aos portugueses e perspetivar as mudanças estruturais indispensáveis à modernização do País.
Com Francisco Sá Carneiro havia uma visão de futuro para Portugal, as políticas não andavam ao sabor dos ventos, das pressões dos grupos de interesse ou dos títulos da comunicação social.
O pensamento e o exemplo de Sá Carneiro, as suas qualidades políticas, devem servir de inspiração e estímulo para traçar os caminhos do futuro do nosso País.
Para construir o Portugal moderno, com níveis de prosperidade próximos da média da União Europeia, o Portugal de maior justiça e solidariedade social, onde cada um independentemente das suas capacidades possa levar uma vida digna, o Portugal de igualdade de oportunidades, onde à partida, independentemente da sua herança, todos tenham iguais possibilidades de afirmar as suas capacidades, só temos a ganhar em revisitar Sá Carneiro.
Francisco Sá Carneiro deve ser hoje para os sociais‐democratas o exemplo da coragem, honestidade, inteligência viva, talento político, capacidade de trabalho até ao sacrifício, do amor à terra e às suas gentes.
Fica‐nos a obrigação de não esquecer, de entregar o testemunho da força anímica de quem foi grande aos jovens que não o conheceram.
O exemplo do chefe que não vai à frente, mas avança lado a lado com os outros num caminho que pertence a todos”.
Aníbal Cavaco Silva, antigo líder do PSD, antigo primeiro-ministro e antigo Presidente
Passos Coelho. “O homem é o homem e a sua circunstância” (Ortega y Gasset)
Sá Carneiro foi, ao longo da sua vida política, uma personalidade que evoluiu e se desenvolveu em diferentes contextos, deixando marcas diversas no caminho que percorreu. É inegável que foi sempre uma personalidade controversa e muito influente. Mas as opiniões que sobre ele nos foram deixadas por variadas pessoas não são coincidentes. Há considerações tão diferentes, algumas dissonantes e até contraditórias, que poderíamos dizer que não há um, mas vários Sá Carneiros, para conhecer e interpretar.
Claro que as opiniões não são separáveis dos diferentes tempos em que foram produzidas, nem se podem desligar de quem as produziu. Por vezes, pode considerar‐se que os retratos que nos chegam de Sá Carneiro nos dizem mais dos retratistas do que do retratado. Mas mostram, em conjunto, alguém que não passou indiferente, que
não foi secundário nem periférico, e que não foi intempestivo para a sociedade portuguesa do nosso tempo. Mostram mesmo alguém com uma forte personalidade, que várias vezes fez a diferença e que ajudou a mudar o curso político dos acontecimentos. Inspirou amores e ódios. Esteve à altura dos grandes momentos e provocou‐os. Fez por ser “a pessoa certa no lugar certo” várias vezes, e felizmente teve o seu encontro com a História.
Apesar de ter estado junto dele mais do que uma vez, não posso dizer que tivesse “conhecido” Sá Carneiro. Conheci a sua imagem pública de modo mais direto desde que a minha atenção e memória políticas se tornaram mais presentes, sobretudo a partir de 1978 no congresso do cinema Roma. Porém, o seu percurso político ganhou relevo muitos anos antes, com a eleição, na “Ala Liberal”, para deputado na Assembleia Nacional ainda no tempo de Marcello Caetano. O convite não foi obviamente um acaso. O propósito de o envolver na “abertura” política do anterior regime traduzia o reconhecimento de que Sá Carneiro era, já então, alguém que se tinha dado a conhecer e que prometia para futuro.
Sá Carneiro foi também o mais influente e decisivo dos fundadores do PPD/PSD, partido determinante da natureza do regime democrático e da sua inserção na União Europeia. O lastro político afirmado por Sá Carneiro antes de 74 foi decisivo para o posicionamento e a definição do partido que fundou. Como chefe partidário, foi um homem mais de ruturas que de compromissos. Alguns criticaram‐no por revelar um pendor conflituoso, intolerante e algo autoritário, e um tanto errático na tática política. Dele conservo, no entanto, a imagem de um político determinado que gostava de separar águas e de assumir responsabilidades nas suas condições. Não era complacente e não se submetia à lógica do poder pelo poder, mas soube criar as condições para tornar o poder ao alcance da direita – o que parecia inimaginável ainda em tempos de Conselho da Revolução e apenas 4 anos após o 25 de novembro.
Realmente, hoje, quando evocamos Sá Carneiro, lembramos, sobretudo, este chefe político que conduziu a direita ao governo depois do 25 de abril, que se afirmou como um estadista liberto das vicissitudes do seu percurso partidário e que morreu tragicamente num atentado que lhe não estava destinado. Recordamos ainda o político que se sentiu atraído pela experiência europeia nórdica da social democracia, experiência que sonhava adaptar em Portugal através de uma formação partidária muito pouco dogmática, popular e reformista que foi, e ainda é, o partido que nos legou. Mas não creio que a sua visão da social democracia, quando forjou a AD e chegou ao governo, fosse a mesma que o tinha seduzido no princípio dos anos 70. Os excessos da revolução, aliados ao imobilismo do “socialismo democrático” do PS e à encarnação pragmática da luta contra os males socialistas fizeram de Sá Carneiro, da sua social democracia e do seu PSD, os ativos mais relevantes e influentes do combate ao socialismo e pela libertação da sociedade civil em Portugal.
De facto, o exercício de poder que inaugurou, apesar de breve, revelou‐se fundamental para a governabilidade do país e para a adoção de uma agenda reformista que marcaria para sempre, em Portugal, a diferença com o socialismo e com a sociedade estatizante e paralisante que este último protegia e promovia, então como agora.
Nunca saberemos o que aconteceria se a morte o não tivesse levado tão cedo. Sabemos que ele considerava a provável derrota nas eleições presidenciais incompatível com o exercício do lugar de primeiro ministro. Mas é implausível antecipar corretamente as escolhas que faria nas circunstâncias que se seguiriam a esse desfecho.
Porém, não precisamos desse exercício para saber o que foi, o que fez e o que nos legou Sá Carneiro. E isso é o bastante para nos podermos sentir honrados em fazer por merecer agora ser os seus continuadores, pondo Portugal e os portugueses antes de tudo. E colocando o respeito pela pessoa no centro da ação política, na justificação da intervenção pública e no limite da ação do Estado, como ele tão bem defendeu.
Pedro Passos Coelho, ex-primeiro-ministro e ex-presidente do PSD
Conceição Monteiro. A minha evocação a Francisco Sá Carneiro
É difícil, muito difícil escrever sobre Francisco Sá Carneiro em poucas linhas.
Há tanto para dizer sobre esse extraordinário Homem e político. Há tanto para recordar. Há tanto para com ele aprender. Há tanto para agradecer a quem tão rica herança deixou ao seu Partido.
Como portuguesa e social democrata agradeço à JSD o ter‐se lembrado de homenagear Francisco Sá Carneiro 40 anos depois da sua morte.
É bom que assim seja porque os jovens dos nossos dias estão cada dia mais longe da política e a ideia que dela têm é muito negativa. Cabe a cada um de vós mudar esta situação. Para tanto, há que fazer política como ele fazia, ver e viver a política como ele nos ensinou: a política é um serviço, a política é uma forma de participação na vida da comunidade da qual ninguém está dispensado, mas ser político é mais do que isso, é servir o nosso País, sempre com o interesse do bem comum como meta a alcançar, sempre com o homem no centro das nossas ações e decisões.
Compreendo que nos dias que correm, pouco ou nada, na política, é apelativo, sobretudo para os jovens.
Passaram 40 longos anos de saudade e orfandade, sei que nenhum elemento da JSD era nascido naquele trágico 4 de Dezembro, mas lá diz o velho ditado ”Recordar é viver”.
Assim, esta iniciativa da JSD parece‐me muito oportuna e a forma perfeita para “viver” o Partido e a Social Democracia e “recordar” o seu fundador.
Há dias, recebi do meu querido e especial amigo, Pedro Santana Lopes, um vídeo de uma entrevista de Francisco Sá Carneiro (Março de 1980), dada pelo então Primeiro Ministro à RTP. Com os meios de que dispomos hoje em dia, qualquer um pode vê‐la nos arquivos da Rádio Televisão Portuguesa. Vocês “Jotinhas”, não deixem de o fazer!
Que lição ele nos dá. A clareza das ideias, a força da verdade, a coerência, o respeito por todos e cada um, a importância dos compromissos e promessas, as pessoas no centro de todas políticas, independentemente das suas escolhas religiosas, ideológicas, raça, cor ou classe social. Todos, mas todos estavam incluídos nos sonhos que tinha para o nosso País… e para o Mundo.
Pessoalmente, tudo o que com ele aprendi durante os mais de 6 anos em que fui sua secretária, tem‐me servido para encarar a política como uma missão nobre, virada para as pessoas, defensora dos ideais social‐democratas, defensora da verdadeira liberdade, daquela liberdade que acaba onde o prejuízo dos outros começa, a liberdade própria do ser humano, aquela liberdade que os portugueses merecem, aquela liberdade que tantos querem coartar mas que dela se anunciam como campeões!
Custa muito, depois de tantos anos de luta, ver a herança que Francisco Sá Carneiro nos deixou, ser desbaratada e esquecida.
É doloroso ouvir alguns utilizarem citações de escritos seus, totalmente fora de contexto, como há dias ouvi na Assembleia da República a propósito da figura do Referendo.
Na já citada entrevista ele defende‐o com “unhas e dentes” como o direito do povo a ser ouvido.
Apelo aos jovens da JSD, com vontade de servirem a causa pública, a lerem, relerem e ouvirem as suas intervenções, entrevistas e escritos, se o quiserem fazer como verdadeiros social democratas.
Eu já tinha 40 anos quando o conheci e comecei a aprender, vocês têm muito mais tempo e muitos meios para o fazerem.
Para homenagear Francisco Sá Carneiro não há melhor forma do que tentar conhecê‐lo através do riquíssimo legado que nos deixou, apesar dos seus curtos 46 anos.
Conceição Monteiro, militante número 2 do PSD e antiga secretária de Sá Carneiro