“Eu sei que isto será uma surpresa para muitos e um desapontamento para outros.” No discurso à nação desta quarta-feira em que anunciou a sua demissão, o primeiro-ministro demissionário da República da Irlanda, Leo Varadkar, assumiu que a decisão era inesperada. Mesmo vários membros da coligação que lidera foram apanhados desprevenidos com a notícia.
O chefe do executivo irlandês, que vai permanecer no cargo até ser substituído pelo novo presidente do partido que lidera (Fine Gael), disse que haverá nos próximos tempos “especulação” sobre quais seriam as “razões reais” que motivaram a sua decisão. “Há razões reais. É só isso. Não tenho nada planeado. Nenhum plano pessoal, nem político. Mas espero ter tempo para pensar”, afirmou Leo Varadkar, que reconheceu que a sua demissão se devia particularmente a “motivos políticos”, mas também “pessoais”.
“Nunca há um ‘tempo certo’ para sair do cargo. No entanto, este é um momento tão bom como outros — o Orçamento de [Estado de] 2024 está feito e ainda não começaram negociações para o próximo”, referiu Leo Varadkar, que chegou à conclusão — após uma “consideração cuidada e alguma reflexão” — que não era mais a “pessoa indicada” para ser o primeiro-ministro irlandês.
Apesar de não ter especificado os motivos pelos quais sai do cargo, Leo Varadkar deixou um guião para o partido, para a coligação que governa a Irlanda (composta pelo partido de centro-direita Fine Gael, pelos liberais do Fianna Fáil e pelo Partido dos Verdes) e para o seu sucessor. “Têm dois meses para preparar as eleições locais e europeias [marcadas para dia 7 e 9 de junho, respetivamente] e para as eleições gerais do próximo ano.”
Umas novas eleições gerais na Irlanda foi um cenário afastado por Leo Varadkar. A coligação, afirma o responsável político, vai reorganizar-se e encontrar um líder que suceda ao atual primeiro-ministro. “Tenho a confiança absoluta que o país e a economia estão num bom lugar e que os meus colegas dos três partidos vão continuar o trabalho árduo para [seguir] os melhores interesses da nação.”
As sondagens, a derrota num referendo e uma debandada do partido: o que pode ter motivado Leo Varadkar a sair?
Em clima pré-eleitoral, o partido de Leo Varadkar e os aliados vão enfrentar os desafios das eleições locais e as europeias. E as sondagens recentes não têm sido favoráveis ao Fine Gael. O principal partido de esquerda e da oposição, o Sinn Féin (que tem como uma das principais bandeiras a união entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte) tem surgido à frente, com uma vantagem de cerca de dez pontos percentuais face ao segundo partido mais votado.
Ainda que a vantagem do Sinn Féin tenha diminuído ao longo dos últimos meses nas sondagens, certo é que a coligação entre centro-direita, verdes e liberais pode estar em risco de perder as eleições gerais — e também as locais e as europeias. A saída de Leo Varadkar, que já é primeiro-ministro desde 2017, pode ter tido como principal objetivo dar uma nova dinâmica de vitória ao Fine Gael, que passa a ser encabeçada por um novo rosto.
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Simultaneamente, a coligação e o executivo liderados por Leo Varadkar receberam uma espécie de cartão amarelo na votação de um referendo, no início deste mês. Para o Dia Internacional da Mulher, a 8 de março, o primeiro-ministro demissionário convocou uma votação sobre se as emendas 39.ª e 40.ª à Constituição irlandesa deveriam ser aprovadas.
A 39.ª emenda à Constituição tinha como objetivo alterar o primeira parágrafo do 41.º artigo da Constituição irlandesa, que estipula que o “Estado reconhece que, através da sua vida passada em casa, a mulher dá ao Estado um apoio sem o qual o bem comum não pode ser atingido”. A 40.ª emenda passava por substituir a terceiro parágrafo, que diz que o Estado deve “proteger com especial cuidado a instituição do casamento, no qual a família está fundada, e deve protegê-la de qualquer ataque”.
No entender de Leo Varadkar, que convocou o referendo, alguma da linguagem utilizada na Constituição era “muito antiquada e muito sexista para as mulheres”. Praticamente todos os partidos no Parlamento irlandês apoiavam o “sim” que originaria o fim daqueles termos. Apesar disso, as emendas à lei máxima da Irlanda foram chumbada de forma expressiva nas urnas: cerca de 67% votaram contra a mudança de que a mulher deve passar a “vida em casa”, enquanto cerca de 74% rejeitaram a alteração de que a família está “fundada no casamento”.
Foi uma derrota para o governo, assumida pelo primeiro-ministro. “Eu penso que é claro as emendas em referendo foram derrotadas — derrotadas de forma convincente com uma participação eleitoral respeitável”, assinalou Leo Varadkar após os resultados serem conhecidos no dia 9 de março, acrescentando: “Era nossa responsabilidade convencer a maioria das pessoas a votar ‘sim’ e claramente falhamos nesse objetivo”.
No discurso desta quinta-feira, o chefe do executivo demissionário, que assumiu ser homossexual em 2015 e que foi o primeiro filho de pais indianos a governar a Irlanda, mostrou-se, ainda assim, “orgulhoso por ter tornado o país mais igualitário e mais moderno no que diz respeito aos direitos das crianças, aos da comunidade LGBT, ao da igualdade para as mulheres e da sua autonomia com os seus corpos”.
Por tudo isto, o chumbo ao referendo poder ser interpretado como um voto de protesto contra o governo. Porém, o ministro dos Transportes e atual líder dos Verdes, Eamon Ryan, considera que os resultados no referendo não foram um “elemento chave” na decisão do primeiro-ministro. Para aquele político, Leo Varadkar aproveitou um “espaço” entre as eleições “locais e europeias”: “O timing foi provavelmente mais importante do que o referendo”.
Dentro do seu partido, o chefe do governo demissionário já vinha enfrentando alguma contestação. Dez deputados do Fine Gael anunciaram que não iam juntar-se às listas eleitorais nas eleições gerais de 2025, tendo sido interpretado como uma forma de protesto contra a liderança de Leo Varadkar. Ora, o resultado do referendo, ainda que não determinante, pode ter pressionado o primeiro-ministro irlandês a demitir-se.
O Brexit, o referendo ao aborto e a Covid-19. A obra feita de Leo Varadkar
Durante o discurso em que se despediu do cargo, o primeiro-ministro demissionário lembrou a obra feita durante sete anos. Começou por destacar o que diz ser os bons resultados na economia irlandesa, que ainda sofria os impactos — em 2017 — da crise financeira que o país enfrentou na última década: “Tive a honra de ajudar a liderar a Irlanda do desemprego para o emprego total, do défice para superávite, da austeridade para prosperidade”.
A gestão da pandemia de Covid-19 também foi um dos pontos que Leo Varadkar salientou — “salvámos milhares de vidas” — e também as negociações por conta da saída do Reino Unido da União Europeia, o Brexit. Entre avanços e recuos, o primeiro-ministro irlandês demissionário teve de gerir o assunto com pinças, principalmente a fronteira no que concerne à Irlanda do Norte. “As nossas relações comerciais com o Reino Unido, na era pós-Brexit, estão estáveis.”
Outro dos pontos mais destacáveis do seu mandato foi a aprovação do referendo ao aborto, em 2018. Leo Varadkar participou ativamente na campanha e afirmou, esta quarta-feira, que estava “orgulhoso” de ter “tornado o país mais moderno”.