Folhas em branco ao alto. Se na maior parte dos protestos as palavras de ordem são escritas em grandes cartazes, nas várias cidades chinesas onde se têm multiplicado manifestações contra Xi Jinping bastam, para já, folhas brancas. Não que os protestos sejam silenciosos, já que os manifestantes entoam cânticos e palavras de ordem que pedem a saída de Xi Jinping, mas quem ergue no alto as páginas em branco explica: “Não precisamos de escrever nada, é um símbolo da revolução do povo.”
A explicação é feita à jornalista Eva Rammeloo, a correspondente na China para o Dutch Daily, que está no local e tem relatado no Twitter alguns dos momentos vividos em Urmqi, a cidade-chave para a revolta que tem saído às ruas chinesas nas últimas horas. A viver na China há mais de uma década, Eva Rammeloo diz que “nunca viu” nada semelhante, excluindo, claro, os protestos em Hong Kong.
Entre as músicas entoadas, a “Internacional” comunista é gritada a plenos pulmões pelos manifestantes, alternado com o hino nacional do país. Pontuado com gritos de “Xi Jinping fora!“, os manifestantes começaram as iniciativas pela crítica à política “Zero Covid”, mas rapidamente os protestos alargaram ao regime comunista chinês.
Como começaram os protestos?
Os protestos subiram de tom após um incêndio de grandes dimensões ter provocado a morte de pelo menos 10 pessoas e ter infligido ferimentos noutras nove em Urumqi, na região chinesa de Xinjiang, a 24 de novembro. A população acredita que as vítimas não conseguiram escapar do prédio residencial em chamas porque as portas estariam trancadas por fora, à conta das restrições impostas pelo governo local, mas as autoridades negaram as acusações.
Nas redes sociais, milhares de chineses denunciaram a imposição de restrições em Urumqi associando-as à morte das dez pessoas no incêndio. Mesmo com a imposição de permanência em casa, a expressão online do descontentamento foi insuficiente e os habitantes de Urumqi saíram mesmo à rua, desrespeitando todas as regras impostas pelo Governo de Xi Jinping.
Depois de o sol se pôr, os habitantes de Urumqi vieram para as ruas, mantendo as máscaras, quebrando a regra de confinamento em casa. Entoaram cânticos e, de acordo com o relato da agência de notícias Reuters, ainda entraram em alguns confrontos com a polícia local.
A Reuters acrescenta também que a maior parte dos registos online que existia dos protestos da noite de sexta-feira foi retirada dainternet logo no sábado de manhã, numa tentativa de controlar a difusão de informação relativa aos movimentos em massa dos chineses contra as regras impostas pelo regime de Xi Jinping.
Chilling. The national anthem. Especially that phrase ‘qi lai!’ (‘stand up!’). Never seen anything like this. Well, except in #HongKong… pic.twitter.com/OGYZwNgnKi
— Eva Rammeloo (@eefjerammeloo) November 26, 2022
Onde estão os chineses a sair à rua?
Aquilo que já era excecional, com os chineses a saírem às ruas em massa para contrariar as decisões do governo de Xi Jinping em Pequim e Xangai, ganhou outra relevância com as manifestações a multiplicarem-se em várias cidades do país. De Wuhan, onde o surto da Covid-19 começou há quase três anos, ao centro financeiro de Xangai, passando por cidades como Chendu ou Xi’an. O regime chinês enfrenta, pela primeira vez em muitos anos, contestação social de larga escala nas ruas do país.
As vigílias de homenagem às vítimas mortais transformaram-se em manifestações de revolta contra as regras anti-Covid. Em Wuhan, os manifestantes juntaram-se nas barricadas que impedem a mobilidade dos cidadãos para fora da cidade chinesa e conseguiram derrubá-las. Querem o fim da política Zero-Covid.
https://twitter.com/gchahal/status/1596826367831990275
Em Pequim os estudantes da Universidade de Tsinghua saíram para as ruas e gritaram: “A liberdade vai prevalecer”. Um dos movimentos começou quando um aluno exibiu uma folha de papel em branco — um dos símbolos dos manifestantes nos protestos contra as medidas anti-Covid — junto à cantina. Centenas de outros estudantes juntaram-se a ele e começaram a gritar: “Isso não é uma vida normal, já chega. As nossas vidas não eram assim antes”.
Tsinghua university right now???????? city after city seeing protests small and large against Zero Covid policies and against excesses of Communist Party rule – every hour there seems to be a new one pic.twitter.com/7CbUtzNmjR
— Emily Feng 冯哲芸 (@EmilyZFeng) November 27, 2022
A cidade de Xangai também está a ser palco de manifestações intensas contra a estratégia chinesa de controlo da Covid-19. Uma das principais avenidas da cidade esteve mesmo cortada por causa dos protestos, com a multidão a pedir a destituição de Xi Jinping e o afastamento do Partido Comunista. Os participantes gritavam: “Partido Comunista, fora! Xi Jinping, fora!”, numa rara manifestação contra o regime.
上海乌鲁木齐路 最新视频
民众齐声高喊“共产党下台 习近平下台”
马路对面的警察并未阻止 pic.twitter.com/Vh40idZWWy— 李老师不是你老师 (@whyyoutouzhele) November 26, 2022
A polícia deteve alguns dos manifestantes que saíram às ruas no sábado, mas isso não demoveu os participantes. Noutros pontos dos protestos em Xangai, os manifestantes exigiram o fim da testagem PCR, que ainda é obrigatória para aceder a alguns espaços públicos quando se detetam surtos de Covid-19. “Sem testes de PCR, queremos liberdade!”, gritaram alguns dos manifestantes. De resto, a palavra “liberdade” é a principal mensagem a ecoar nos protestos.
https://www.youtube.com/watch?v=QwATngtX620&ab_channel=%E4%BA%BA%E4%B8%96%E9%96%93
Ainda em Xangai, um cartaz que celebrava o 70º aniversário da Universidade de Ciência Política e Direito do Leste da China foi grafitado com a mensagem: “Não fiques calado”. Em Nanjing, também no leste da China, dois estudantes exibiram folhas de papel em branco — à semelhança do aconteceu em Xangai — e cantaram o hino nacional. Um deles declarou: “Eu costumava ser um cobarde, mas hoje tenho que falar por aqueles que morreram!”.
Já há protestos fora da China
Em várias cidades, como Londres, Paris, Amesterdão, Dublin, Toronto e em diversos locais dos Estados Unidos, a comunidade chinesa está a sair à rua, em solidariedade, com o que está a acontecer no seu país natal. As folhas de papel branco são erguidas em todo o lado, sendo já o símbolo deste protesto.
Jornalista da BBC entre os detidos
Os estudantes universitários, em vários pólos, estão a ser dos principais impulsionadores e vozes de revolta contra as limitações impostas para tentar combater a Covid-19 e contra o regime. A universidade Tsinghua, da elite de Pequim, alma mater de Xi Jinping foi uma das instituições onde os estudantes se juntaram para protestar. Os protestos já estão a ser comparados às manifestações no movimento da Praça de Tiananmen em 1989, numa altura em que a polícia está a deter centenas de pessoas nas ruas de várias cidades, de acordo com os correspondentes internacionais.
Entre eles esteve um jornalista da BBC, Ed Lawrence que estava em trabalho e devidamente identificado. A polícia chinesa diz que o fez para “proteger” o jornalista que “corria perigo de apanhar Covid-19.”
De acordo o comunicado da BCC, assinado pelo porta-voz da estação, Lawrence “esteve detido por várias horas antes de ser libertado. Enquanto esteve detido, foi espancado e pontapeado pela polícia.” E, acrescenta a BBC: “Tudo isso ocorreu enquanto trabalhava como jornalista devidamente credenciado”.
A BBC escreve ainda que a polícia chinesa está a deter qualquer pessoa que tire fotografias ou faça vídeos dos protestos.
Jornalista da BBC foi detido e agredido pela polícia chinesa enquanto cobria protestos em Xangai
O The Telegraph relata que, na tarde deste domingo, com os manifestantes a entoar cânticos e a gritar palavras de ordem, a polícia rapidamente “perdeu a paciência” e começou a encaminhar dezenas de pessoas para carrinhas da polícia, detendo-as. “Quem quer que ficasse parado na rua, seria alvo”, relata ao jornal um dos habitantes de Urumqi, que também já saiu à rua nos últimos dias.
O fim das restrições impostas pela Covid-19 é a grande reivindicação?
É esse, pelo menos, o objetivo maior de todos quantos têm saído à rua nos últimos dias. Ao The Telegraph um dos habitantes de Urumqi, que se identificou apenas como Zhang, com “medo de ser preso”, diz que “há alguns anos perdeu a esperança e desistiu da ideia de lutar.”
Desta vez, pelo contrário, decidiu juntar-se às centenas de pessoas que já estavam nas ruas, de folhas brancas na mão, a pedir o fim das restrições que vigoram há quase três anos no país. “Achei que era bom participar, mesmo que fosse apenas só estar presente”, explica Zhang, que se manteve ao lado dos vizinhos apenas em silêncio. O objetivo era não ter uma postura desafiante frente à polícia que os levasse a agir e a detê-los.
“Todos pensam que os chineses têm medo de sair e protestar, que não têm coragem. Eu também pensava assim, mas saí para a rua. Descobri que o ambiente era de coragem, são todos muito corajosos”, relata à Associated Press um dos habitantes da região de Xinjiang onde as ruas também se encheram de manifestantes.
Depois de em outubro se ter proclamado governante vitalício no Congresso do Partido Comunista Chinês, Xi Jinping enfrenta uma onda de manifestações sem precedentes que testará a capacidade de o líder ceder, ou não, à vontade da população. A história mostra o contrário, mas os chineses parecem determinados em, pelo menos, tentar que as regras contra a Covid-19 sejam revistas.