Discurso de André Ventura
O ano ainda vai muito curto, mas já podemos dizer que os dois maiores partidos portugueses tiveram um congresso em 2024 e o nosso foi muito maior do que o do PS.”
André Ventura arranca a primeira intervenção da convenção com referência ao facto de os “dois maiores partidos portugueses” terem realizado congressos em 2024. Ora, os únicos que encaixam na descrição são PS e Chega, o que mostra que Ventura prossegue a narrativa de que a alternativa ao PS é o Chega. Ventura usa assim o discurso para menorizar o PSD, a quem se referiria mais tarde no discurso para dizer que “não tem força” para defrontar o PS.
“Lembro-me de chegar aos Açores e dizerem ‘aqui é impossível, aqui é PS ou PSD’, que não valia a pena, que havia um ciclo de subsidiodependência que era impossível quebrar. Mas fomos à luta e o orgulho que temos de, por causa do Chega e só por causa do Chega nos termos livrado de 25 anos de socialismo nos Açores. (…) Na Madeira fizemos engolir o maior sapo da sua história. Andavam arrogantes a dizer ‘se não tivermos maioria absoluta vou-me embora e não governo’, tivemos até o líder do PSD a sair de avião de Lisboa para ir para o Funchal celebrar os resultados da Madeira (…) e à noite era ver Luís Montenegro a transpirar no Funchal. Enquanto se esperava o último resultado da Madeira em que mais uma vez por causa do Chega acabámos com a maioria absoluta do PSD de há décadas no arquipélago.”
Num ano em que há eleições regionais nos Açores — com a queda de um governo que chegou a ser apoiado pelo Chega (e que o partido assume agora como um erro) — Ventura tenta tirar ao PSD o mérito de derrotar o PS naquela região autónoma, feito que atribui exclusivamente ao Chega. Torna-se mais relevante Ventura referir a situação nos Açores porque, ainda antes das eleições legislativas de 10 de março, o Chega pode ter de ser chamado a dar de novo a mão a José Manuel Bolieiro para evitar o regresso do PS ao poder. Sobre a Madeira — onde o Chega teve um uma enorme subida eleitoral, mas tornou-se irrelevante para a governação — Ventura opta por contar apenas metade da história e destacar o facto de o partido ter forçado o PSD a “engolir” um “sapo” chamado PAN. É, sobre o assunto Madeira, a única referência que acaba por fazer a Luís Montenegro, para, de forma caricatural, destacar o facto de o líder do PSD estar a suar na noite eleitoral minutos após saber que a coligação PSD-CDS não conseguiu maioria no parlamento regional.
“Deixem-me dar-vos o exemplo maior de como o nosso trabalho não está concluído: as nossas forças de segurança. Hoje continuam em protesto em muitos pontos do país e não pedem nada de extraordinário ou de incrível. Pedem a mesma dignidade e não discriminação do que foi justamente atribuído à Polícia Judiciária. (…) A todas as forças de segurança deste país, aos guardas prisionais, a todos os que dão a vida pela nossa segurança, eu quero-lhes deixar um compromisso solene, a de que nenhuma maioria de direita subsistirá, nenhuma maioria de direita existirá sem que a sua primeira medida seja restabelecer a equiparação de suplementos a todas as forças de segurança.”
As forças de segurança há muito que são uma bandeira do Chega, já que André Ventura defende um país mais securitário. O líder do Chega está a tentar capitalizar o descontentamento das forças de seguranças, que nos últimos dias têm estado nas ruas em protesto. Assume-se assim, como aliás sempre tem feito, como o maior aliado político das polícias. No arranque, Ventura dedicou a convenção às forças de segurança, mas acabou mesmo por ir mais longe e faz depender qualquer maioria à direita de uma medida que aumente os salários das forças de segurança, equiparando-os às da Polícia Judiciária. A partir de agora, o PSD já sabe: qualquer negociação com o Chega implicaria a cedência a esta medida.
“Duas gémeas filhas de brasileiros terão chegado ao SNS português sem prescrição, só apenas com recomendação do secretário de Estado e aí obtiveram um medicamento de mais de quatro milhões de euros. O medicamento que o próprio Brasil lhes recusou. Mas, claro, os contribuintes portugueses estão sempre prontos para pagar o que seja. O que é que ouvimos do PSD? Zero.”
André Ventura não esqueceu um dos casos mais mediáticos dos últimos tempos e que o próprio tem cavalgado em intervenções públicas: o das gémeas luso-brasileiras que se deslocaram a Portugal para receber um medicamento milionário. O presidente do Chega atirou ao secretário de Estado António Lacerda Sales, atirou ao PSD, mas poupou o Presidente da República, que teve neste caso um dos mais difíceis de gerir dos seus dois mandatos na Presidência. Ventura não atacou Marcelo (ao contrário do que tinha feito quando o caso rebentou) porque sabe que a posição do Presidente (de aceitar soluções governativas com o Chega) é favorável à normalização do Chega. Nos próximos meses, a posição de Marcelo será, de forma improvável, útil para a André Ventura.
“Candidato-me porque a imigração é hoje um problema de que temos que falar. Ontem ouvimos aqui um imigrante brasileiro, o Marcus [Santos], que é também vice-presidente da Distrital do Porto, e quando passou fez continência à nossa bandeira. O que gostaria era que todos os portugueses tivessem o amor à bandeira que o Marcus e outros como ele têm em Portugal. O Chega nunca quis acabar com a imigração, nunca disse que esta imigração era terrível, disse que a imigração tinha que ser regulada, controlada e com regras. Nenhuma casa se mantém se não tiver portas e janelas e deixa de ser uma casa e torna-se um terreno aberto. (…) Não podemos aceitar aqueles que vêm para obrigar as nossas mulheres a andar de burca pelas cidades ou terem que andar afastadas do espaço público, aqueles que não podemos aceitar são aqueles que vêm para a Europa não para nos ajudar a melhorar, não para participar na comunidade, mas para ajudar a financiar redes de tráfico humano ou redes de terrorismo internacional. Nunca pedimos o fim da imigração, queremos é uma imigração legal, justa, regulada e daquela que Portugal precisa para viver.”
Depois das forças de segurança, a imigração é outra bandeira da qual o Chega não abdica. O assunto continua a levantar convenções e desta vez André Ventura optou por colocar em oposição a imigração boa (dos emigrantes portugueses quando são imigrantes lá fora) e imigração má (de alguns imigrantes que vêm para Portugal mas, nas palavras do líder do Chega, querem viver de subsídios; ou que vêm de países árabes e tentam impor “burcas” às mulheres). Ventura disse que a imigração em Portugal é “muitas desenraizada, desenculturizada, sem a nossa presença civilizacional e sem qualquer capacidade de se integrar”, enquanto os portugueses emigrados são um orgulho porque “não foram à porta da Segurança Social”, mas sim à porta das empresas procurar trabalho.
Todos assistimos este ano ao Governo, já em fase final, a tentar mais uma vez humilhar os nossos símbolos nacionais e todos viram aquele desenho que apareceu que deixava as quinas da nossa bandeira de fora e transformava os nossos símbolos. Todos viram que Portugal decidiu dar 34 milhões de euros para um museu em Angola.Num país onde faltam medicamentos em 94% dos hospitais, vamos dar 34 milhões de euros para um museu em Angola. Vamos estar a dar dinheiro para um museu que vai glorificar a história do combate contra o terrorismo colonial, contra os soldados portugueses e contra as famílias portuguesas. São, porque não há outra palavra, uns traidores. Aqueles que dão dinheiro a quem matou portugueses e sangue português não têm outro nome senão traidores à nossa história, à nossa memória e à nossa pátria.”
Foi a parte mais nacionalista do discurso de Ventura, onde fez a defesa dos combatentes da Guerra Colonial e não teve problemas de qualificar como traidores quem enviou dinheiro (o Governo de António Costa) para um museu de memória contada por “quem matou portugueses”. Deixa a promessa de que, se chegar ao poder, vai cancelar a transferência de 34 milhões de euros para o museu em Angola. Além disso volta a recuperar a polémica do símbolo minimalista do Governo (que aboliu a esfera armilar), sempre para exaltar um nacionalismo e uma glorificação dos combatentes da guerra colonial que aquece a sala.
“Agora tentam branquear a imagem da geringonça e dizer que a maioria dos portugueses gostou desta governação. Se gostámos tanto daquela governação à esquerda porque é que passamos por qualquer hospital do país e é um desastre de atendimentos, macas e pessoas à porta à espera de serem atendidas, profissionais de saúde desgastados e completamente desmotivados, professores desautorizados, espezinhados, humilhados, que andam há anos atrás do primeiro-ministro a pedir-lhe o mínimo de decência que seria, como outras carreiras tiveram, o reconhecimento do seu tempo de serviço. E ainda ontem, ou anteontem, vimos António Costa insurgir-se novamente contra um professor, quase que ameaçando e colocando-se em cima dele. Ele pode ameaçar os professores, a nós não nos ameaça.”
Ventura usa os últimos cartuchos contra António Costa. Vai da geringonça à saúde e aos professores para se atirar ao primeiro-ministro, utilizando o momento — divulgado em peças televisivas — em que o ainda chefe de Governo responde a um professor de forma mais exaltada. O líder do Chega sabe que na campanha já vai ter em Pedro Nuno Santos um novo adversário, mas quer capitalizar os votos dos anti-Costa enquanto o primeiro-ministro demissionário ainda está no ativo.
“Pedro Nuno Santos enquanto andava em campanha disse, e até acho bem, que se [deve] recuperar o tempo de serviço dos professores. Mas naquela semana votou-se o orçamento do Estado que impediu a recuperação do tempo de serviço dos professores e votou ao lado do PS. Se nos mentiu agora que garantia temos que daqui a dois meses não nos vai mentir outra vez? Se ele nos mostrou que só sabe governar por WhatsApp, e mal, que garantia temos de que vai governar melhor daqui a dois meses? Se sabemos que conseguiu dar indemnizações de meio milhão de euros quando os portugueses têm salários de tostões, que garantia nós temos que o neto do sapateiro não vai ser o melhor amigo do Espírito Santo em Portugal? Que garantia nós temos de que o neto do sapateiro não vai apenas servir os interesses obscuros do PS e das suas empresas amigas em Portugal? Nenhuma. E o PSD já não tem força para o impedir.”
Pedro Nuno Santos foi alvo de Ventura e até através de uma associação indireta José Sócrates quando disse, sob a forma de pergunta, que não existem garantias de que “o neto do sapateiro não vai ser o melhor amigo do Espírito Santo em Portugal”. José Sócrates, que em tempos foi um dos alvos preferidos de Ventura, foi assim utilizado forma subliminar no ataque a Pedro Nuno Santos — jogando assim com eventuais desconfianças do eleitorado. O presidente do Chega lembrou também a indemnização de 500 mil euros Alexandra Reis autorizada por Pedro Nuno Santos, naquilo que chamou de má governação por WhatsApp. Aproveitou ainda para mais um ataque ao PSD e à certeza de que o PSD “não tem força para impedir” uma má governação de Pedro Nuno Santos.
“Já imaginaram um governo com o Pedro Nuno Santos, Paulo Raimundo e Mariana Mortágua, que tem aquela vantagem que provavelmente vai acumular o salário de ministra com o de deputada. Viram um filme que é o Trio dos Horrores? Imagino aquelas três personagens sentadas no Conselho de Ministros. Por exemplo, Paulo Raimundo, ministro da Pesca. Mariana Mortágua, ministra para a Igualdade de Género. Já agora, isto não vai ficar bem nos jornais da noite, mas eu vou dizer à mesma: aquele dinheiro todo que nós vamos dar lá para as ideologias de género e supostamente para promover uma qualquer igualdade de género, vou pegar nesses milhões todos e vou dizer a essas associações que não vão receber um tostão. Vou pegar nesse dinheiro todo, nesses 400 e tal milhões só para o próximo ano e vou criar um fundo de apoio às nossas forças de segurança, à justiça e aos nossos ex-combatentes.”
André Ventura tem batido na tecla de Mariana Mortágua ter acumulado o salário de deputado com o de comentadora e voltou a utilizar esse argumento. Depois de definir a geringonça como trio dos horrores, aproveitou para um ataque à ideologia de género. André Ventura promete acabar com os fundos para as associações que defendem a ideologia de género, dizendo onde vai recolocar esses valores: transferi-lo para as forças de segurança, ex-combatentes e justiça. Ventura não diz exatamente como são atualmente atribuídos esses 400 milhões, nem como os calculou. O valor é, à partida, elevado demais para ser referente apenas a apoios no âmbito da ideologia de género. E não corresponde à verdade, uma vez que inclui, entre outros apoios, o reforço do complemento solidário para idosos, “políticas ativas de emprego e formação profissional”, o alargamento da gratuitidade das creches, o reforço do abono de família ou a gratuitidade dos passes Sub-18 e Sub-23.
Um país que quer mesmo ter grandeza não pode continuar a lidar com pensões de 200 e de 300 euros em Portugal. Com todo o esforço orçamental que será preciso fazer e alguns locais onde será preciso cortar, porque só quem não for honesto dirá que não é preciso cortar, quero deixar-vos o compromisso de que esta missão só será concluída quando em seis anos garantirmos que não há nenhum idoso com uma pensão abaixo do salário mínimo em Portugal. Nenhum idoso com a pensão abaixo do salário mínimo em Portugal.”
André Ventura já tinha assumido a promessa e volta a fazê-lo na primeira vez que fala na convenção: quer todos os pensionistas a receber, pelo menos, o salário mínimo. Ventura prevê, como relevou no passado, que a medida custe entre 7 e 9 mil milhões de euros e chegou a sugerir que se utilizasse os fundos europeus para pagar este valor. Na Convenção admite que não será fácil e reconhece que pode haver cortes noutras áreas para o fazer. Luís Montenegro no encerramento do Congresso do PSD não só prometeu um rendimento mínimo dos pensionistas (por via do Complemento Solidário para Idosos) de 820 euros, como disse que tentaria “no espaço de duas legislaturas” (oito anos) tentar que nenhum pensionista recebesse abaixo do salário mínimo. Estava aqui, de forma cautelosa e provavelmente involuntária, a aproximar-se da proposta do Chega. André Ventura vem agora acelerar ainda mais o ritmo de aplicação da medida: quer fazê-lo no espaço de “seis anos”.