Luís Montenegro ainda não vai avançar com a comissão parlamentar de inquérito aos casos BIC e Banif, como pretendia André Ventura. O Observador sabe que os sociais-democratas vão continuar a pressionar António Costa a esclarecer a sua intervenção nestes dois processos, mas a estratégia, para já, não passa pelo recurso a essa figura regimental.
“O PSD vai fazer perguntas diretas ao primeiro-ministro. Perguntas formais. E vamos esperar pelas respostas de António Costa. Não estamos no tempo [para se avançar com a] comissão parlamentar de inquérito”, explica ao Observador um destacado dirigente social-democrata.
Ainda durante o fim de semana, Montenegro sugeriu que o PSD não ia esperar “nenhum tribunal” para “assacar responsabilidades políticas” a António Costa, deixando no ar a hipótese de avançar com uma comissão parlamentar de inquérito – hipótese nunca descartada por Joaquim Miranda Sarmento, líder parlamentar do PSD.
No entanto, acabou por prevalecer outra solução: nos próximos dias, se António Costa continuar sem dar explicações cabais sobre o papel que teve (ou não) nos dossiês Eurobic/BPI e Banif (sobretudo neste último), os sociais-democratas vão avançar com perguntas formais diretamente dirigidas a António Costa.
Se, mesmo assim, o primeiro-ministro continuar a resistir em esclarecer as questões pendentes ou se der respostas que o PSD considere insuficientes, então a direção social-democrata não exclui esgotar todos os instrumentos regimentais disponíveis – incluindo, aí assim, a comissão parlamentar de inquérito.
Os estilhaços do Banif e a herança de Passos
Apesar de tudo, os sociais-democratas não olham com grande entusiasmo para uma possível comissão de inquérito (encarada como de utilidade duvidosa). Não para já, pelo menos. Em primeiro lugar, porque qualquer decisão que fosse tomada agora nesse sentido seria sempre interpretada como tendo sido tomada a reboque do Chega e de André Ventura.
Além disso, ninguém ignora que o Banif (sobretudo o Banif) é um tema que queima o passismo, de que esta direção social-democrata é herdeira assumida. Na altura, já depois de ter deixado o cargo de primeiro-ministro e quando o Banif implodiu, Pedro Passos Coelho foi acusado de ter escondido os problemas no banco por motivos eleitorais e para encenar a saída limpa do programa de ajustamento.
Depois de ter feito correr muita tinta nos jornais e no Parlamento, houve finalmente uma comissão de inquérito que acabou por deixar os sociais-democratas numa posição delicada. Com um pormenor: o PSD acabou por votar isolado contra o relatório da comissão de inquérito que existiu sobre o caso, que recebeu luz verde da esquerda e a abstenção do CDS, prova de que a gestão do Banif era um assunto mal resolvido na PàF.
O coordenador do PSD nessa comissão de inquérito, Carlos Abreu Amorim, nunca aceitou o relatório final, que considerava “uma omissão de críticas ao atual Governo”, o branqueamento da “prestação enganosa” do então ministro das Finanças, Mário Centeno, na comissão de inquérito e ignorava a “incapacidade, talvez a capitulação, do atual governo face à escalada das exigências” de Bruxelas.
Publicamente, Pedro Passos Coelho sempre defendeu que a sua estratégia para o Banif – separar os ativos menos rentáveis para um veículo próprio e vender a parte ‘boa’ do Banif – teria tido resultados diferentes dos do governo de Costa, protegendo mais os contribuintes e evitando os lesados que resultaram da resolução do banco.
No arranque de janeiro de 2016, em entrevista à Rádio Renascença, o antigo primeiro-ministro apontaria diretamente a António Costa: “Houve uma altura em que o BCE retirou o estatuto de contraparte ao Banif, porque ele já não tinha capacidade e ativos para poder aceder à liquidez do Banco de Portugal ou do BCE. Isso resultou de se ter andado a tratar da questão do Banif na praça pública. Não houve o cuidado de tratar este assunto com a reserva que ele devia merecer”.
As alegações que constam no livro “O Governador” (ver abaixo) acabam por juntar argumentos à tese de sempre do antigo primeiro-ministro. Ainda assim, forçar uma comissão parlamentar de inquérito — ainda para mais num bancada em que apenas se contam um ou dois especialistas no tema — poderia devolver o PSD ao divã daqueles anos de difícil gestão.
Noutra frente, a relação entre o poder angolano, o BPI, o Eurobic e o governo de António Costa sempre levantou as maiores reservas a Pedro Passos Coelho — que assistiu na primeira fila e ao lado de Luís Montenegro ao lançamento do livro “O Governador”.
Em maio de 2016, o antigo primeiro-ministro, em entrevista ao semanário SOL, deixava pouco por dizer: “Bastava ter o mínimo de bom senso para perceber que se o Estado quer ser visto de forma independente só pode intervir para acautelar o interesse geral. O Estado não pode legislar para aquele banco e para aqueles acionistas.”
Essa é precisamente a acusação que os sociais-democratas agora recuperam para pressionar António Costa a dar respostas sobre o tema. O passismo, muito presente nesta direção social-democrata, entende que hoje é mais evidente do que nunca que o socialista teve uma intervenção ilegítima e, pior, contou com a cobertura de Marcelo Rebelo de Sousa.
No PSD, há quem entenda que esta sucessão de intervenções demonstra bem a confusão que existe quanto aos limites de separação de poderes e que o facto de tanto António Costa como Marcelo Rebelo de Sousa acharem que se procedeu bem na questão do BPI e Isabel dos Santos é ainda mais preocupante — os pesos e contrapesos que deveria existir não estão a funcionar.
De resto, a direção social-democrata ficou muito irritada com a forma como Presidente da República saiu em defesa de Costa, com membros do núcleo duro de Montenegro a dizerem que a colagem do Chefe de Estado ao atual primeiro-ministro já roçava o “ridículo” e o “nonsense total“.
Socialistas aplaudem defesa de Marcelo, PSD irrita-se: “Já roça o nonsense total”
As pontas soltas trazidas pelo “O Governador”
No centro desta renovada polémica em torno da banca estão as mais recentes revelações que constam do livro “O Governador” assinado pelo jornalista Luís Rosa. Nessa obra, Carlos Costa acusa António Costa de enviar uma carta ao Banco Central Europeu durante o processo de venda que precipitou a queda daquela instituição. O antigo governador acusa também o então ministro Mário Centeno de negociar com o Santander – em ambos os casos, Costa e Centeno terão agido à revelia de Carlos Costa.
De acordo com o testemunho do ex-governador, essa carta, enviada a 14 de dezembro de 2015, motivou um “agravamento muito significativo da desconfiança das autoridades europeias” e “afetou o acompanhamento dos bancos portugueses pelo Mecanismo Único de Supervisão, tanto em termos de confiança como de requisitos de capital e requisitos qualitativos de supervisão”.
Nesse livro, Jorge Tomé, então presidente do Banif, estabelece uma possível relação de causa-efeito entre a notícia avançada pela TVI a 13 de dezembro (“Está tudo preparado para o fecho do banco”) e essa mesma missiva – a fonte dessa informação nunca foi revelada, mas a notícia resultou na perda de 984 milhões de euros e na deterioração ainda mais significativa do banco.
A tese que agora ganha força é de que o Governo de António Costa terá alimentado um simulacro em torno da venda do Banif quando, de forma confidencial, informava Bruxelas de que o banco já estava em processo de resolução e venda aos espanhóis do Santander.
Depois, há ainda o caso Eurobic. Nesse livro, Carlos Costa garante que António Costa o tentou condicionar para que não afastasse Isabel dos Santos do Conselho de Administração do Eurobic – “Não se pode tratar mal a filha do Presidente de um país amigo de Portugal”, terá dito o socialista durante uma conversa com Carlos Costa.
Já depois da divulgação do capítulo em causa (o livro foi entretanto publicado), o primeiro-ministro anunciou que ia processar o antigo governador alegando que tal colocava em causa o seu “bom nome”. Mas fez mais: enviou uma SMS a Carlos Costa onde, tentando contextualizar a referida frase de 2016, assumiu que afastar Isabel dos Santos era, de facto, “inoportuno”.
Os sociais-democratas têm contestado precisamente este contacto entre António Costa e Carlos Costa à boleia do Eurobic. Em 2016, Carlos Costa quis afastar Isabel dos Santos do conselho de administração dessa instituição e terá sido nesse contexto que António Costa considerou “inoportuna” a decisão. Em paralelo, decorria outro processo: a venda do BPI aos espanhóis do La Caixa.
Perante um impasse nas negociações, o Governo decidiu aprovar um decreto-lei que, no fundo, forçava a angolana a desfazer-se da participação no BPI para ser comprado pelos espanhóis – ao mesmo tempo, o BPI se desfazia da participação Banco Fomento Angola. Para impedir que a decisão de Carlos Costa estragasse os planos para o BPI, e sempre de acordo com o testemunho do ex-governador, António Costa terá então tentado condicionar o supervisor.
António Costa pressionou Carlos Costa para não retirar Isabel dos Santos do BIC