São raros os dias em que Cristiano Ronaldo, a namorada ou a mãe não publicam nas redes sociais pormenores sobre a sua vida familiar em Turim, Itália, para onde foi viver depois de ser contratado pela Juventus. E já por algumas vezes tanto o jogador como os seus advogados fizeram comentários à acusação por violação lançada por uma professora que o futebolista conheceu em 2009, em Las Vegas. No entanto, desde novembro que os advogados de Kathryn Mayorga tentam encontrar a sua morada — para o notificarem do pedido de indemnização por danos morais — e não conseguem. Ou seja, perante a justiça norte-americana, o jogador português desconhece que este processo foi aberto em setembro de 2018, logo não pode responder e a ação que está agora num tribunal federal americano não pode avançar.
As dificuldades do advogado norte-americano Leslie Mark Stovall estão reportadas num documento assinado a 28 de fevereiro, a que o Observador teve acesso, que foi entregue ao Tribunal Federal do Nevada. Foi para este tribunal que, em finais de janeiro deste ano de 2019, a defesa da professora recorreu, dadas as dificuldades das autoridades em encontrar a sua morada e notificá-lo. Foi para este tribunal que os advogados então se viraram, na tentativa de conseguirem que Ronaldo fosse avisado do processo por edital publicado num jornal nos Estados Unidos e noutro em Itália. Além da publicação em jornais, os advogados pediam também ao juiz que notificasse por e-mail e para as moradas físicas todos os advogados conhecidos do jogador — Carlos Osório de Castro, em Portugal, e Christian Schertzcom, com escritório na Alemanha e nos Estados Unidos. Pediam ainda que fosse notificado o agente de Ronaldo, Jorge Mendes, as empresas Gestifute e Polaris Sports e a própria Juventus.
No entanto, já em abril, o tribunal decidiu de outra forma. Uma vez que, um mês antes, os próprios advogados de Kathryn Mayorga tinham, por intermédio de um mediador, entregue o processo às autoridades italianas, no âmbito da Convenção de Haia, não valia a pena, para já, avançar com o edital. A decisão do magistrado que assinou o despacho consultado pelo Observador foi, então, a de dar mais 180 dias para que Ronaldo seja notificado do processo, no qual é pedida a revogação do acordo extrajudicial que terá feito com Kathryn em 2009, — e que a impedia de voltar a falar sobre o que aconteceu entre ambos na penthouse de um hotel de Las Vegas — assim como uma indemnização por todos os danos morais que a alegada vítima sofreu e que ainda hoje sofre.
A missão para notificar Ronaldo nesses seis meses adicionais pode, contudo, não ser tarefa fácil. Até agora, os advogados foram confrontados com várias dificuldades — da incerteza sobre o local de residência ao medo que alguns solicitadores diziam ter dos seguranças do condomínio em Turim.
Primeiro andaram a procurar Ronaldo nos Estados Unidos
Os esforços para localizar Ronaldo e garantir que fosse notificado do processo começaram ainda em outubro de 2018, dias depois de o pedido ter entrado num tribunal estadual do Nevada — o Tribunal Distrital de Clark County.
Os advogados de Mayorga recorreram a uma empresa privada — que funciona como uma espécie de solicitadora — para descobrir o verdadeiro domicílio de Ronaldo, para, assim, lhe poderem entregar o pedido de indemnização pessoalmente (a lei do Nevada obriga a que o notificado preencha um documento que prova que recebeu e leu o conteúdo do processo). Caso a morada fosse no estrangeiro, esta empresa ficou ainda com a tarefa de tratar do processo de acordo com a Convenção de Haia — que define como é que os documentos públicos e judiciais podem circular entre países de forma certificada.
Segundo os e-mails que constam no processo a que o Observador teve acesso, foi Norma McMahan (elemento dessa empresa que presta serviços de justiça civil) quem tratou de tudo a partir do dia 1 de outubro de 2018. E o que começou ela por fazer? Segundo a própria, num documento entregue ao tribunal, tentou por todos os meios localizar uma morada do jogador português no estado do Nevada e, depois, em todo o país, nos Estados Unidos. Um mês depois, quando já era público que o jogador se deslocava ocasionalmente aos EUA, deu como certo que o português não tinha qualquer morada ali.
Só em novembro se virou para Itália, para onde o jogador acabara de se mudar, depois de ter sido contratado pela Juventus e de ter abandonado o Real Madrid.
Num dos e-mails enviados por Norma McMahan para Ronald Harper, do escritório de advogados de Stovall (que representa Kathryn Mayorga), a funcionária dá conta de que à data, a 14 de novembro, ainda não conseguira a confirmação da morada — essencial para fazer seguir o processo, como reforça aos longo dos vários e-mails enviados a dar conta do que fazia.
Advogados querem vídeo da entrega, mas em Itália têm medo dos seguranças
Nesse dia, ainda a 14 de novembro de 2018, a responsável — que será o equivalente a uma solicitadora em Portugal — explica que, mesmo sem a morada certa de Ronaldo em Turim, contactou uma pessoa italiana para entregar o processo em mãos a Ronaldo, sem sucesso. Porquê? A pessoa recusou por causa da “reputação dos seguranças privados”.
Assim, os advogados de Mayorga fazem-lhe um pedido claro: querem não uma, mas duas pessoas em Itália que possam fazer o serviço. Alguém que entregue o dossier a Cristiano Ronaldo em mãos — ou aos seguranças que guardem o local onde morar o jogador português — e outro que filme e fotografe a entrega, para terem provas de que foi notificado, como a lei exige.
A 15 de novembro de 2018, porém, McMahan dá conta de que uma das pessoas que contactou para o fazer não se mostrou muito “entusiasmada” com a ideia. No dia seguinte, no entanto, uma boa notícia para a defesa de Kathryn Mayorga: conseguiu contratar duas pessoas para o tal serviço, pelo valor de 1500 euros (ao qual, alerta, se deve somar o valor do envio registado do documento).
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Havendo já quem fizesse a entrega, surgiu um outro problema: num novo e-mail a dar conta das sucessivas tentativas para chegar à casa de Ronaldo e da sua família, um mês depois, a 13 de dezembro, a empresa contratada informava que, para cumprir a Convenção de Haia, os documentos tinham que ser traduzidos para italiano. Além disso, a questão de fundo mantinha-se: continuavam sem ter uma morada da residência de Ronaldo, para lhe fazer chegar esse documento já traduzido.
Enquanto Cristiano Ronaldo, a namorada e a mãe publicavam imagens da sua rotina, das suas viagens, da sua vida, esta empresa contratada continuava a tentar perceber onde morava. A 14 dezembro de 2018, McMahan sugere, então, que se enviem os documentos para a sede da Juventus, uma possibilidade que, ao longo do processo, se percebe não ser a preferida dos advogados. Sugere ainda recorrer a um advogado em Itália para fazer esse pedido de notificação através das autoridades italianas, mas lembra que todo o processo pode levar mais de quatro meses. O recurso a um jurista italiano poderia poupar pouco mais de um mês na espera, mas teria um custo provavelmente superior a 3 mil dólares.
Há casa, mas não há como entrar lá
As informações que a defesa de Mayorga juntou ao processo cível — que agora se encontra no Tribunal Federal do Nevada — e que estão assinaladas como elementos de prova, mostram também um e-mail enviado a 3 de janeiro de 2019, três meses depois de o pedido de indemnização original ter chegado à justiça.
A pessoa contactada em Itália para descobrir a morada do jogador tinha, finalmente, conseguido descobrir a zona onde o jogador morava (e, aparentemente, ainda mora), mas não a indicação da casa específica — percebendo-se que deverá tratar-se de um condomínio com várias habitações. 14 dias depois, de acordo com os registos, chega a informação de que os documentos já estão traduzidos. Mas, não havendo morada, a solicitadora faz uma sugestão: envia-se para a Juventus?
Todos estes contactos e estas tentativas de notificar Ronaldo foram sendo feitos por iniciativa dos advogados, como prevê a lei daquele estado americano. Até que, a 27 de janeiro de 2019, e dadas também as limitações do próprio tribunal para localizar formalmente o jogador português, a defesa de Mayorga optou por recorrer para o Tribunal Federal do Nevada. Desistiu, assim, do pedido original, no Tribunal Distrital de Clark County e ficou apenas com este, no tribunal superior.
Essa mesma informação chega à empresa privada, que continua tenta localizar o jogador — enquanto Ronaldo aparece todos os dias nas redes sociais, mas cuja morada parece permanecer em mistério. A 29 de janeiro, McMahan, a solicitadora, envia nova informação aos advogados de Kathryn Mayorga: acredita que encontrou a morada, mas, mais uma vez, há um problema. A casa pode ser ali, mas não há um segurança à porta do condomínio e não é possível entrar para fazer a entrega. O plano inicial dos advogados seria frustrado.
Sugere, então, que se recorra às autoridades italianas — o que implica, como ela própria já tinha explicado, a contratação de um jurista italiano, para poder preparar o pedido. O processo, por seu turno, tem que ser novamente traduzido e instruído, uma vez que mudou de tribunal no Nevada.
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Dias depois, a 1 fevereiro deste ano de 2019, chegam as explicações para os três meses passados à procura da morada de uma das pessoas mais conhecidas do mundo. “Os jogadores da Juventus são como a realeza”, conta, citando fontes italianas que sugerem que eles têm uma espécie de proteção especial em Turim. A pessoa contactada em Itália, relata Norma McMahan nesse e-mail para os advogado da alegada vítima do jogador, conseguiu fornecer a morada do condomínio onde vive Cristiano Ronaldo, mas não a da sua residência pessoal, entre as várias que poderão existir lá dentro. Terá dito, além disso, que todas as tentativas para obter o número da porta falharam, que em todas as buscas a morada de Ronaldo aparece em branco e que mesmo os registos de propriedade do condomínio ou foram apagados ou não existem.
Nessa altura, avançam para uma outra estratégia: fazer a pesquisa nos registos oficiais pelo nome da namorada de Ronaldo ou da mãe. De novo, em vão.
Plano Z: bater à porta da Juventus ou dos advogados do jogador
Uma outra tentativa é feita junto da própria sede da Juventus. De lá, a resposta não levanta esperanças de que o dossier seja entregue, de facto, nas mãos de Ronaldo. Respondem que, se deixar ali a cópia, garantem que entregam aos representantes de Ronaldo. Mas não é essa a intenção da defesa, que quer garantir que a notificação do processo chega mesmo ao jogador e precisa ter provas disso. E, assim, o homem que ali se deslocou a mando da solicitadora norte-americana acaba por voltar para trás, sem deixar qualquer documento.
Norma McMahan ainda voltou a perguntar aos advogado de Mayorga se deveriam tentar de novo e arriscar deixar a documentação no clube. Mas, para já, não existe no processo qualquer posição sobre isso.
Por esta altura, também já tinha falhado a tentativa de notificar Ronaldo através dos seus advogados nos Estados Unidos. Ainda em 2018, no início da saga para encontrar o jogador português, a solicitadora procurou o escritório de David Chesnoff, um conceituado advogado — habituado à defesa de celebridades norte-americanas — que chegou a tomar a defesa do português, pouco depois da apresentação da queixa. Ele próprio tinha contactado a defesa de Mayorga, no início de outubro, quando o caso foi tornado público, assumindo-se como representante legal de Cristiano Ronaldo. Esse contacto, segundo os registos entregues em tribunal, foi uma espécie de aviso: os advogados da alegada vítima preparavam-se para fazer, naquele dia, uma conferência de imprensa sobre o caso e a defesa de Ronaldo quis lembrar-lhes que, pelo código de ética imposto aos advogados do estado do Nevada, estavam proibidos de fazer declarações públicas e extrajudiciais sobre o caso.
Cerca de um mês depois, porém, contactado pela solicitadora da defesa de Mayorga, o escritório de Chesnoff recusava ser notificado em nome do jogador português, dizendo que não estava mandatado para receber ou tratar qualquer elemento sobre o caso. Assim, Norma MacMahan virar-se-ia para um outro advogado, Peter Christiansen, para fazer a notificação do processo em nome do jogador. Também essa troca de e-mails consta do processo — mas o jurista explica que, apesar de representar o jogador, não tem qualquer autorização ou delegação para receber notificações dele. Esse contacto é feito a 26 de novembro de 2o18 e assinado pelo próprio Peter Christiansen.
Sem grandes alternativas, e já depois da busca pelas moradas em Turim, a solicitadora sugere aos advogados de Kathryn Mayorga que os documentos sejam enviados para a morada geral do condomínio, na esperança de que cheguem a Cristiano Ronaldo. Mesmo que, dessa forma, nunca tenha a garantia da notificação.
A comunicação mais recente de Norma McMahan, que consta do processo, é uma declaração na primeira pessoa dirigida ao tribunal, para fundamentar o pedido que os advogados fizeram — o de notificar o jogador português através de editais publicados num jornal norte-americano e num italiano. A solicitadora, com 15 anos de experiência, avisa que, entretanto, enviou às autoridades centrais de Roma uma cópia traduzida para italiano da notificação daquele tribunal federal, a dar conta do processo e da queixa apresentada por Mayorga, mas que isso pode demorar muito tempo a estar concluído.
Fundamentado na Convenção de Haia e entregue a 22 de março, o pedido requeria às autoridades italianas que notificassem Cristiano Ronaldo na sua casa em Turim — dando, para isso, uma morada — e na sede da Juventus. Nessa declaração, McMahan refere que, pela sua experiência, estes pedidos podem demorar seis meses, ou seja, até outubro. E é por isto que o Tribunal Federal decide dar 180 dias para que Ronaldo receba o processo nas mãos.
O processo cível em causa, que corre paralelamente ao processo crime reaberto pela polícia de Las Vegas e que investiga o alegado crime de violação, pede a revogação do acordo firmado entre o jogador e a professora para que ela mantivesse o silêncio sobre o que aconteceu em 2009, na penthouse onde Ronaldo estava hospedado. É pedida também uma indemnização por todas as consequências psicológicas causadas pelo crime e pelo acordo que garante ter feito sem estar na posse de todas as suas capacidades psicológicas e emocionais.
Se até se cumprir esta extensão de 180 dias o jogador não tiver recebido formalmente a notificação, o tribunal pode ainda determinar a publicação de um edital nos jornais — tal como pretendia a defesa de Kathryn Mayorga quando recorreu para o tribunal federal.