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Não é preciso ser um telespetador assíduo da TVI, nem sequer ver muita televisão, para saber quem é Cristina Ferreira. Essa mesmo, a apresentadora. Mas o que, provavelmente, não sabe é que Cristina Ferreira é licenciada em História e até chegou a dar aulas a alunos do ensino secundário. Menos surpreendente, seguramente, será ler que o treinador da Seleção Nacional é formado em Engenharia Eletrónica e Telecomunicações. Afinal de contas, o título tem acompanhado sempre o mister: engenheiro Fernando Santos. Mas fazia ideia que o vocalista dos Blind Zero, e comentador desportivo, Miguel Guedes é formado em Direito? Também duvido. Como vê não faltam exemplos de pessoas que se formam numa área e dedicam a sua carreira a outras artes.
O advogado Pedro Pinho trocou as leis pela criatividade
É o caso de Pedro Pinho, 33 anos. Nunca soube exatamente o que queria ser quando fosse grande. Mas como gostava muito de escrever e levado por isso, com alguma convicção, mas sem paixão, licenciou-se em Direito, na Universidade Nova de Lisboa. “O curso de Direito era o que tinha mais saídas. Os meus pais diziam-me isso e eu próprio o testei. Talvez metade dos colegas que estudaram comigo na faculdade saltaram fora. Nunca me apaixonei pelo curso, porque era chato, mas também não tinha ideia de fazer outra coisa.” Ainda assim, no último ano inscreveu-se num minor e fez praticamente o primeiro ano do curso de gestão, que adorou.
Até fazer a agregação à Ordem dos Advogados foram quase quatro anos e depois disso esteve mais dois anos a exercer, sempre no departamento jurídico da CIMPOR. “Aguentei porque tinha metas. A última meta era entrar para a Ordem. Quando a atingi dei por mim com cédula, um bom ordenado, um trabalho estável, mas sentia que não queria aquilo. O meu lado mais criativo começou a vir ao de cima.”
Decidiu então inscrever-se num curso de publicidade de um ano e despediu-se da CIMPOR, onde nunca chegou a cimentar a sua posição. Dias depois começaria a trabalhar na Leo Burnett, uma agência de publicidade onde esteve três anos. Da Leo Burnett saltou para O Escritório. Há três anos nesta agência, Pedro trabalha sobretudo a conta do Sport Lisboa e Benfica, mas também da Super Bock e Licor Beirão.
“Este ano ganhámos dois leões com o trabalho da Emirates e, ainda mais recentemente, deu-me um enorme gozo porque saiu a lista das campanhas do Euro mais vistas e comentadas e no meio de coisas da Nike saiu um filme para a Licor Beirão feito por nós.”
“Ganhar prémios em publicidade é quase necessário. É um sinal de reconhecimento. Se não ganhasse já estava desesperado”, explica Pedro Pinho que foi convidado para participar, no final deste ano, em Barcelona, num júri internacional de um dos maiores festivais de publicidade da Europa.
Pedro Pinho, que admite ser competitivo, afirma que se sente melhor nesta área do que no mundo da advocacia, mesmo que só tenha voltado a ganhar o que ganhava na CIMPOR anos mais tarde e mesmo que este trabalho lhe exija disponibilidade total. “Não me arrependo nada, adoro o que faço.” Mas tem noção que não será o seu emprego para sempre. “Um dia gostava mesmo de ter uma marca própria, um negócio meu. E nessa altura espero que aquele ano que fiz de gestão me seja útil.”
Rita Costa, que nunca chegou a ser economista, está a aprender joalharia
Quem também perspetiva um dia ter a sua própria empresa é Rita Costa. Esta setubalense, de 33 anos, decidiu largar tudo, ao fim de 10 anos a trabalhar em agências de publicidade, e dedicou-se à joalharia. Mas vamos ao início.
Não é só o Marco Paulo que tem dois amores. Rita Costa chegou ao final do 9.º ano com o coração dividido. “Era louca por matemática, mas também gostava muito de artes. E os testes psicotécnicos que fiz na escola não ajudaram” pois apontaram para a mesma encruzilhada. Foram as conversas que teve com os pais que levaram Rita a decidir-se pelo “caminho mais seguro”: Economia. Os desenhos e a costura ficaram para os tempos livres, em casa.
Já na faculdade, “ao final do segundo ano do curso de Economia entrei em pânico porque me apercebi que não era aquilo que eu queria e comecei a desinteressar-me. Faltava sempre que podia e só me esforçava na altura dos exames. Estava perdida e nem conseguia pensar em alternativa.”
A alternativa apareceu no quinto e último ano da licenciatura. Com o canudo na mão rumou a um estágio de seis meses na agência de publicidade BBDO. Acabou por lá ficar um ano a trabalhar no departamento de contacto ao cliente. De lá saltou para uma empresa de marketing digital, onde esteve oito anos a trabalhar a gestão de cliente e de projeto, a gestão e criação de campanhas e criação dos briefings.
Não se via a fazer economia, mas também neste trabalho começou a sentir que “o dia-a-dia era sempre igual e sentia que não estava a aprender nada de novo, por isso decidi tentar a minha sorte numa multinacional. Foi dar ao mesmo”, conta Rita, lembrando que “sentia cada vez mais falta das artes. O tempo para os hobbies tinha desaparecido”.
Estava na hora de parar e mudar. Recuperar a paixão que tinha ficado em segundo plano e dar-lhe uma oportunidade. Em janeiro deste ano despediu-se e dedicou-se inteiramente ao curso de joalharia. São três anos, mas pode fazer menos. “Eu na verdade queria juntar joalharia com costura. Neste momento ainda estou a aprender as técnicas base e a perceber qual o conceito com o qual mais me identifico.” E o curso de Economia até lhe pode vir a dar jeito se um dia vier a criar uma empresa.
“Os meus pais ainda hoje me perguntam porque é que eu não vou trabalhar para um banco, com tantas regalias, um bom horário e bom salário. Mas eu não consigo. Há muita limitação da nossa expressão individual. São as roupas, o cabelo, as tatuagens, as joias. Eu não me quero sentir limitada.”
Chegou a inscrever-se num doutoramento em física. Agora é cabeleireira
Joana Pereira também se fartou dos condicionamentos à sua forma ser e de estar. Mas no caso dela não foi só isso que a fez desistir do sonho que a acompanhava desde os 13 anos — ser cientista.
Aos 17 anos, Joana não teve qualquer dúvida na escolha do curso que queria tirar, de preferência longe de Lisboa. Foi estudar Meteorologia, Oceanografia e Geofísica em Aveiro, e sem receios em relação à empregabilidade. Como “a licenciatura de Bolonha não servia para nada” seguiu para mestrado, mais voltado para a física e chegou a estar a trabalhar na área com uma bolsa. Terminou essa formação, já em Lisboa, com 17 valores. Durante a tese de mestrado estagiou no Instituto Hidrográfico da Marinha Portuguesa e teve de trabalhar noutros dois sítios para conseguir suportar as despesas. Chegou ao fim do estágio e dispensaram-na.
“Custou-me muito porque tinha estado a estudar tanto para nada”, recorda Joana que, em 2004, acabaria por se inscrever num doutoramento em Vigo. Insistiu na área que teimava em não lhe dar emprego porque “achava que não tinha jeito para mais nada. Desde os 14 que queria ser cientista”. Porém, os atrasos no arranque do doutoramento e a falta de resposta por parte do orientador boicotaram a intenção de Joana que, nessa altura, já lutava contra uma anorexia nervosa. “Cada vez estava mais doente e decidi mudar a minha vida. Estava no fundo do poço”.
Ainda pensou ser cozinheira mas como era vegan, não suportou a ideia de ter de cozinhar animais, conta entre risos. “Por isso pedi a uma tia, que está no Brasil e é toda exotérica, para me ajudar. Ela lançou o tarot e disse-me que me via a ser feliz como cabeleireira. Não pensei duas vezes”, relata Joana, pedind para não a acharmos maluca.
Decidiu tirar um curso de um ano, mas começou logo a trabalhar em cabelereiros. Neste momento já é técnica de cor, num cabeleireiro em Lisboa.
“Já não tenho pena, nem me sinto frustrada, de não ser cientista. Quando comecei a tirar o curso o país estava diferente e eu achava que ia conseguir. Mas foi o curso que me destruiu. Eu não quero viver de bolsas. Além disso, eu precisava de me aceitar como sou. E ali tinha muitas regras, até no vestir, mesmo sendo um trabalho de laboratório. Então tive de pensar em alguma coisa que me interessasse e em que pudesse ser eu própria.”
Diogo só se via em Direito, mas descobriu que gostava era de vender
Diogo Pinto, agora com 29 anos, achava que estava a fazer a escolha certa quando, aos 18 anos, optou pelo curso de direito. Sentia interesse e achava que lhe “encaixava-me na perfeição”, tendo em conta a sua personalidade, garante ao Observador, completando que sempre foi “certinho, regrado e conciliador” e que tentava sempre “analisar tudo à luz do que era justo e não justo, certo ou errado”.
Mas bastou entrar para a faculdade para perceber que talvez não fosse bem assim. Chumbou o primeiro ano. “Foi dramático. Percebo agora que era um pouco imaturo e não sabia que competências tinha de ter”. Afinal, um advogado não é (só) “certinho, regrado e conciliador”. Tem também de ser “confiante, assertivo, e falar bem em público”. Diogo não o era. E se queria ser advogado teria de desenvolver essas competências, que a faculdade não lhe ia dar.
Ao segundo ano do curso decidiu que ia começar a trabalhar a tempo parcial e assim foi. De dia aprendia direito, ao final do dia vendia comida para cão. “Como deve calcular não era de todo o meu estilo, mas saltei barreiras e foi o início daquilo que sou hoje.”
Chegado ao quarto ano de Direito, Diogo sentia que tinha jeito era para vender e foi a Londres fazer um curso de verão de “persuasão e negociação”. “Foi uma decisão muito fácil para mim, mas horrível para os meus pais. Chamaram-me tonto por nem sequer me ter inscrito na Ordem. Eu ainda fui a algumas entrevistas em sociedades de advogados mas confirmei que não era aquilo que queria”.
Concorreu a um anúncio da Mars que viu na Faculdade de Economia da Nova, mesmo ao lado da sua. “Estavam à procura de um vendedor, mas em letras pequeninas diziam que davam preferência a licenciados em economia ou gestão. Ainda assim decidi enviar currículo.” E foi o escolhido para vender chocolates de porta a porta no sul de Portugal. Os primeiros seis meses foram tão “difíceis” que chegou a pôr em causa a decisão. Via os colegas de turma a subirem na carreira, enquanto ele levava nãos porta sim, porta não.
Tudo mudou quando desenvolveu uma espécie de jogo de motivação de equipas e com isso pôs os outros vendedores a venderem por ele em troca de um incentivo. “Através desse jogo, as equipas sentiam-se envolvidas em ganhar distribuição e vencerem no Ponto de Venda”, explica. Do sul, passou para todo o país e chegou até a ir a Washington expor o projeto. “Permitiu-me crescer dentro da Mars. Mudei de função para coordenador de área.” Depois disso, esteve lá mais dois anos como responsável pelos materiais nos pontos de venda.
Até que há três anos e meio recebeu o convite da Red Bull, onde se mantém até hoje. “Sou responsável por aumentar a penetração da categoria de energéticas em Portugal, através do Ponto de Venda.”
Diogo não tem dúvidas que o curso de Direito se tornou uma mais-valia e que foi muito por causa desse currículo que recebeu o convite. “Tem sido uma mais-valia para mim. É como se me destacasse no meio de um oceano azul. Sou o tipo que analisa as coisas do ponto de vista qualitativo, quando os meus colegas fazem uma análise quantitativa.” Mas também sabe que foi o trabalho a vender comida para cão e o curso de verão que fez em Londres que lhe permitiram entrar para a Mars.
“Os trabalhos e atividades que fui tendo ao longo do curso permitiram-me perceber que muitas vezes nos fechamos nas nossas áreas onde estamos confortáveis e que deixamos escapar um conjunto de coisas de que podemos gostar e que estão à nossa volta.”
Embora se sinta realizado e feliz, Diogo gosta de arriscar e já se vislumbra a mudar novamente. “As nossas paixões vão mudando e o nosso mundo também.”
Deixar de lado o fator personalidade obriga muitas vezes a fazer marcha-atrás
E terá sido uma coincidência o Observador ter encontrado apenas exemplos de pessoas que mudaram para áreas mais criativas? “Talvez não. Sabe que as pessoas mais criativas são as que se saturam mais rapidamente”, explica Vasco Soares, psicólogo clínico na empresa Insight. “Normalmente quem muda de área são pessoas que estão a fazer trabalhos mais pragmáticos e intelectuais e que sentem uma vontade de inovação e combate à rotina.”
O ponto, afirma, é que “muitas vezes os jovens fazem escolhas baseadas em critérios que não são completos porque não tomam em consideração a sua personalidade”. “É fácil verem-se em profissões em que ganhem bem, o problema é que só olham para as coisas boas e não têm noção de como vai ser o dia-a-dia. Depois chega o choque com a realidade, ou ainda durante o curso, ou só quando começam a exercer”, completa o psicólogo, que aconselha os jovens que, a partir desta quinta-feira, se vão candidatar ao ensino superior, precisamente a levarem em conta os gostos e aptidões, mas também a personalidade.
Para ajudar à escolha, os jovens podem encontrar informações sobre os cursos nos sites das próprias faculdades ou no site da Direção Geral do Ensino Superior e para se informarem sobre as profissões podem consultar, por exemplo, o documento com a Classificação Portuguesa das Profissões.
“Se for um gestor de topo, a licenciatura que tem torna-se praticamente irrelevante”
Casos como os de Pedro, Rita, Joana e Diogo não são assim tão raros. Nuno Troni, diretor para a área de Professionals da empresa de recursos humanos Randstad, afirma ao Observador que “excetuando áreas muito técnicas em que as habilitações académicas são essenciais para o desempenho da função (como medicina ou investigação), muitas pessoas tiram um curso e trabalham em áreas distintas”.
E o mercado também começa a apostar nisso. “Várias consultoras de topo começam a recrutar candidatos com licenciaturas fora das áreas clássicas por consideraram importante terem outras formas de olhar para a realidade.”
Quanto à importância e à mais-valia de ter uma formação diferente daquela que à partida é exigida num processo de candidatura para um determinado posto de trabalho, Nuno Troni não tem dúvidas que “um recém-licenciado com um bom curso de gestão é muito mais apelativo para a generalidade das empresas do que um recém-licenciado com um bom curso de comunicação”, mas também refere que “se for um gestor de topo a licenciatura que tem torna-se praticamente irrelevante, sendo que o importante é a experiência da pessoa em causa, assim como pós graduações ou MBA que tenha feito”.
E dá exemplos: “o diretor geral da Panrico em Portugal, João Morão, tem um percurso impressionante em empresas de grande consumo e é licenciado em História” e “o CEO da Randstad em Portugal, José Miguel Leonardo, é engenheiro civil de formação”. De resto, “vários engenheiros ocupam lugares de topo em administrações de empresas de PSI 20. O que determina o sucesso profissional é uma conjugação de vários fatores: formação, oportunidade e perfil”.