9 de novembro de 1996. O semanário Expresso fazia título com as intenções do então líder social-democrata: “Marcelo quer ‘apertar o cinto’ aos partidos”. O agora Presidente da República assumira a liderança do partido em março desse ano e queria mostrar ao que vinha: acabar com as tão faladas malas de dinheiro de origem duvidosa, que circulavam nos corredores dos partidos. Marcelo Rebelo de Sousa queria mudar a filosofia do financiamento partidário e torná-lo fundamentalmente público, para impedir que os partidos ficassem dependentes de qualquer interesse privado. Todos no PSD concordavam que o sistema estava doente; mas poucos tinham coragem para assumir a paternidade da cura.
“Toda a gente tinha a sensação de que a situação estava relativamente podre. Muitos líderes partidários defendiam que era preciso encontrar uma solução, mas só Marcelo teve coragem de procurar a terapêutica”, recorda ao Observador Luís Marques Mendes, então líder parlamentar do PSD.
Os relatos avolumavam-se há anos. Os partidos, sobretudo PS e PSD, pela sua dimensão, mas também pela sua dimensão de poder, estavam cada vez mais dependentes do dinheiro que as empresas ou os empresários a título individual lhes faziam chegar. Havia, aliás, uma regra não escrita: “Quando um partido estava no poder ou na perspetiva de chegar ao poder, não tinha dificuldades financeiras; quando caía, ficava na penúria“, recorda Marques Mendes.
Depois, havia os intermediários: os homens do aparelho partidário que, a troco das portas que podiam abrir, das decisões que podiam condicionar e das influências que podiam mover, ficavam com o seu quinhão. “Falava-se muito de pessoas que recebiam dinheiro para o partido e que ficavam com parte do que era dado. E depois também se ouvia: ‘Cuidado com aquela pessoa, que é um grande financiador'”, nota o social-democrata.
Nos idos anos 90, com o fim do cavaquismo e os primeiros tempos do guterrismo, a máxima de não haver almoços grátis era tão válida quanto sempre foi: “Uma empresa não é uma Santa Casa da Misericórdia. Ninguém dava nada a ninguém por generosidade. A prazo, todos queriam uma contrapartida“, lembra o ex-líder social-democrata.
A doença estava à vista de todos, mas poucos queriam avançar com um diploma que hostilizasse abertamente os interesses instalados nos partidos. A lei em vigor tinha sido aprovada em 1993, durante o Governo de Aníbal Cavaco Silva, e abriu pela primeira vez (formalmente, pelo menos) a porta a dinheiro de empresas nacionais privadas. À luz daquele diploma, um partido podia receber por ano até um limite (correspondente em escudos) de 236.400 euros de empresas privadas; cada empresa podia entregar 23.640 euros; e uma pessoa singular podia doar 7.092 euros. Donativos singulares até aos 2.364 euros podiam ser entregues em dinheiro e de forma anónima. Valia tudo: malas, sacos de dinheiro, envelopes. Era impossível detetar o rasto do financiamento partidário.
Neste contexto, o que Marcelo propunha era uma mudança radical: acabar por completo com o apoio das empresas privadas aos partidos; limitar os donativos individuais a pequenas quantias e aumentar as subvenções públicas para os partidos.
“O Presidente da República sempre teve este entendimento: o financiamento partidário deve ser essencialmente público, porque isso garante maior transparência. A democracia tem custos e esse deve ser um custo suportado pelo Estado. E os partidos devem impor-se limites de despesa”, explica Marques Mendes.
Mais de 20 anos depois, Marcelo vetou uma lei de financiamento partidário que previa, entre outros aspetos, o fim do limite para angariação de fundos, embora o Presidente não justifique o veto por discordância política mas por uma questão de processo. Os tempos são outros. A exigência de rigor e de transparência também. Mas, como notaram vários especialistas que se pronunciaram sobre o tema, o fim do para as angariações de fundos abria ainda mais as portas a financiamentos encapotados e dificultava a fiscalização. “No presente projeto de lei, trata-se antes de referenciar os grandes eventos partidários em que as receitas, mesmo em dinheiro vivo, passam a não ter limitações, o que enfraquece a necessidade de controlo. Se não há limites legais para quê o controlo?“, resumia assim Margarida Salema, ex-presidente da Entidade das Contas e de Financiamentos Políticos, em entrevista ao Observador.
Na mensagem que dirigiu ao Parlamento para justificar o veto, Marcelo recordou implicitamente a sua posição de sempre, contrária ao espírito das alterações que os partidos (à exceção de CDS e PAN) queriam introduzir. “Independente da minha posição pessoal, diversa da consagrada, como Presidente da República não posso promulgar soluções legislativas, consabidamente essenciais, sem mínimo conhecimento da respetiva fundamentação”, sublinhava o Presidente da República.
Acresce a isto que Marcelo chegou a Belém fazendo a apologia do controlo das despesas na campanha eleitoral. O social-democrata gastou apenas 179 mil euros contra os 924,7 mil de António Sampaio da Nóvoa, o segundo candidato mais votado. O social-democrata tem um entendimento sobre financiamento partidário contrário ao espírito da lei que os partidos tentaram aprovar: mais contenção nas despesas e maior transparência.
Daí que o veto de Marcelo estivesse escrito nas estrelas, concede Marques Mendes. “Não sabia o que Marcelo Rebelo de Sousa ia fazer, mas conheço-o tão bem e há tanto tempo que sabia que o Presidente da República nunca concordaria com uma solução destas. Esta lei seria o início de um retrocesso. O fim do limite para angariação de fundos era uma machadada no espírito da lei atualmente em vigor: que o financiamento dos partidos fosse tendencialmente público”, nota o comentador.
Marcelo admite promulgar a lei sem alterações ao regime do IVA e de angariação de fundos
A derrota de Marcelo quando era líder do PSD
Apesar da mudança de filosofia que, em 1996, representava a proposta do então líder do PSD, Marcelo encontrou algumas resistências no interior do partido. Aliás, a notícia do Expresso apontava precisamente noutro sentido: com o país a caminhar para a estagnação económica depois dos anos dourados da entrada de Portugal na CEE, ninguém queria falar em aumento das subvenções públicas para os partidos. Os sociais-democratas que contestavam a posição do líder não estavam contra o fim da relação com os privados: tinham era receio do impacto que um possível aumento da despesa do Estado com os partidos pudesse causar na opinião pública.
“Como é que se explicava às pessoas que, estando nós a contestar que o Estado beneficiasse os clubes de futebol, viéssemos propor que financiasse os partidos?”, questionava então uma fonte do PSD, citada pelo Expresso nessa época, numa clara referência à polémica do Totonegócio.
O mesmo jornal dava conta da hesitação de Marcelo Rebelo de Sousa em apresentar o projeto de lei, apesar de o ter anunciado logo depois de tomar posse como líder do PSD. O aumento das subvenções estatais era tema tabu no partido, mas cortar com os apoios privados sem encontrar uma compensação válida revelava algum irrealismo, comentava-se nos corredores da São Caetano à Lapa. “As propostas de Marcelo são as ideias [porque vão] acabar com o tráfico de influências”, dizia ao semanário um dos responsáveis pela elaboração do projeto de lei. Mas era preciso trilhar o caminho e chamar os socialistas a jogo.
Marcelo sabia que tinha em Jorge Sampaio um aliado de peso. O Presidente da República era sensível ao tema e, com a dose certa de negociação, estaria disposto a apadrinhar a iniciativa do PSD. O líder social-democrata decidiu então chamar Lopes Cardoso, então assessor de Sampaio e ex-secretário para as finanças do PS, convidando-o para uma troca de impressões sobre o tema. Dias depois, em 26 de novembro de 1996, o Expresso trazia novos desenvolvimentos sobre a discussão e titulava: “PS e PSD disponíveis para acertar contas dos partidos”. Apesar de o debate estar ainda num ponto embrionário e teórico, estavam lançadas as bases para um acordo de regime.
Seguiram-se largos meses de discussão parlamentar. Apesar de um primeiro sinal de abertura dos socialistas, as coisas começaram a complicar-se para Marcelo: o PS não estava disposto a aceitar o fim dos donativos das empresas privadas, a grande luta do líder social-democrata. Os socialistas concordavam com o reforço da fiscalização interna e externa às contas dos partidos, mas agitavam com os limites existentes para as doações para afastar qualquer alteração nessa matéria. O Observador ainda procurou perceber junto de Jorge Coelho e Alberto Martins, socialistas que tiveram um papel determinante nessas negociações, mas os dois já não se recordavam com precisão dos detalhes do processo.
Marcelo Rebelo de Sousa acabaria por ser derrotado em 1998 na Assembleia da República. A 30 de junho desse ano, o Parlamento discutiu a nova lei de financiamento dos partidos, que introduzia alterações fundamentais ao diploma de 1993: criava-se um limite para os gastos feitos em campanha, reforçavam-se os poderes e meios de fiscalização do Tribunal Constitucional, aumentava-se o controlo judicial sobre as contas dos partidos, apertavam-se os critérios de contabilidade interna dos partidos e criava-se a possibilidade de os partidos terem um revisor oficial de contas. Aos olhos do PSD, no entanto, o passo mais audaz não tinha sido dado: impedir que os partidos recebessem donativos de empresas privadas (as públicas já não estavam autorizadas a fazê-lo). Marcelo falhara.
O debate desse dia teve dois protagonistas singulares: Alberto Martins, do lado do PS, e Rui Rio, pelo PSD. O então deputado social-democrata dava conta dessa frustração: “O PS entende que tudo está bem tal como está. O PSD, ao contrário, entende que devemos criar uma nova filosofia, no que diz respeito ao financiamento partidário, que evite a dependência dos partidos relativamente às empresas. Nós pretendemos uma nova lei, uma lei com outra filosofia. O que esperamos é que o Partido Socialista não venha a arrepender-se um dia, tal como noutros países outros já se arrependeram”, lamentava Rio.
Da bancada socialista, Alberto Martins respondia: “Não temos qualquer incidente de suspeição sobre as empresas privadas, como não temos nenhum incidente de suspeição sobre os partidos e muito menos sobre o controlo que os órgãos judiciais competentes são capazes de exprimir nesta apreciação. Por isso, não foi em função do resultado que, de repente, como fez o PSD, resolvemos deixar de considerar que as empresas privadas estavam isentas desta suspeição.”
Rui Rio resistiu às provocações de Alberto Martins: “A posição do PSD não tem nada a ver com o resultado eleitoral. A sociedade é dinâmica”. E lançava a pergunta: “Qual a vantagem para a democracia portuguesa que as finanças dos partidos dependam do financiamento das empresas e que os partidos só possam funcionar enquanto as empresas os financiarem? De facto, não percebo qual a vantagem disto para a democracia. Como é que o PS evita que um partido fique totalmente, em termos financeiros, na mão de um grupo económico? Não compreendo como é que isso se evita.”
Na resposta, Alberto Martins limitou-se a devolver as críticas aos sociais-democratas, sem responder às questões levantadas por Rui Rio. “Não percebo o facto de, repentinamente, para o PSD, as doações das empresas privadas passarem a ser suspeitas e inquinadoras do regime democrático. Confio nas estruturas e nos órgãos da democracia, desde logo nos tribunais e no papel de controlo e de fiscalização do Tribunal Constitucional”, rematou o socialista.
PSD, PCP e PEV — estes últimos também condenavam o financiamento dos partidos por empresas privadas — ainda tentariam votar isoladamente as normas que permitiam este tipo de apoio pecuniário, impedindo assim que esses pontos do diploma fossem rejeitados. Mas acabariam vencidos pelos votos de PS e CDS. Estava assim aprovada a nova lei do financiamento dos partidos, promulgada a 31 de julho de 1998.
Em 2003, quando Durão Barroso era já primeiro-ministro, a Assembleia da República voltou a discutir o tema. Nesse período, Jorge Sampaio envolveu-se diretamente na discussão, pedindo aos partidos que estudassem, entre outros aspetos, a lei do financiamento dos partidos. E, desta vez, estiveram todos de acordo: chegavam ao fim as contribuições de empresas privadas para os partidos. Marcelo, “que foi sempre incompreendido e mal-amado no partido”, recorda Marques Mendes, teria assim a sua pequena vitória, cinco anos depois de ter colocado o tema na agenda.
Partidos de cartel não, obrigado
Depois de derrotado no financiamento, Marcelo não deixou de falar do tema dos partidos, mesmo que isso fosse impopular dentro do partido. A 3 de janeiro de 1998, precisamente 20 anos antes do veto presidencial às alterações à lei do financiamento partidário, Marcelo aproveitava um artigo no Expresso para denunciar aquilo que dizia ser a cartelização dos partidos. O exercício era teórico e aprofundava vários conceitos de ciência política, mas partia também para críticas muito concretas ao PS e avisos ao PSD: “A minha posição foi e será sempre uma só: partido de cartel, não, muito obrigado“.
O que tem a ver com a atualidade? A ação dos partidos em benefício próprio. O diagnóstico de Marcelo era violentíssimo. “O partido de cartel age colocando os seus interesses, isto é, os interesses da máquina, do aparelho, à frente dos interesses dos militantes. É a perversão do voto e da democracia. O partido de cartel, ao privilegiar o aparelho e ao colar-se do Estado, afasta a participação política e, nessa medida, facilmente se converte num partido conservador, fechado sobre si mesmo. O partido de cartel habitua-se a viver financeiramente dependente do Estado, dos seus subsídios, dos seus lugares, do poder para distribuir pelos amigos e clientes”, argumentava o líder do PSD. Baseava-se numa nova teoria da Ciência Política dos investigadores Richard Katz e Peter Mair que criava o conceito de partidos de cartel: aqueles que, como o PS e o PSD estavam dependentes dos recursos públicos, e mais orientados para os recursos do Estado do que com a mobilização da sociedade civil:
“Enquanto é Governo, [o partido cartel] perde a noção de serviço, e, quando passa à oposição, transita da fortuna de milhões de contos para a pobreza de alguns milhares, e, durante longo tempo, em vez de querer desbravar novas ideias e projetos, vive na nostalgia-ressentimento do poder perdido. Por tudo isto, tenho sido firmemente contra a inevitabilidade de o PSD se converter em partido de cartel, como já quase chegou a ser e como é, por natureza, o Partido Socialista.”
“Esta escolha tem custos”, continuava Marcelo, “inquieta barões sedentos de poder, obriga a viver com poucos meios, implica moralizar comportamentos e perder maus hábitos, irrita muito eleitor, torna o líder antipático para um eleitorado que gosta de viver na ilusão do consenso, das águas mornas até ao dia em que compreende que a democracia se faz de competição de projetos e não de acordos constantes de secretaria”.
Com as devidas distâncias, estas palavras de Marcelo Rebelo de Sousa remetem para a argumentação usada pelo agora Presidente da República para justificar o veto à nova lei de financiamento partidário. Quando antes escreveu que “o partido de cartel age colocando os seus interesses à frente dos interesses dos militantes”, desta vez lembrou que “uma matéria fundamental no domínio do financiamento partidário [não pode ser] alterada sem que seja apresentada qualquer justificação“. Uma decisão só possível por uma cartelização da maioria dos partidos com assento parlamentar. Quando antes escreveu que este tipo de decisões é “a perversão do voto e da democracia”, desta vez recordou aos deputados que a “democracia também é feita da adoção de processos decisórios suscetíveis de serem controlados pelos cidadãos. A isso se chama publicidade e transparência“. O mesmo Marcelo, com argumentos semelhantes, 20 anos depois.