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Homem de negócios, “confidente próximo” do príncipe André e um “risco de segurança” para o Reino Unido. São várias das descrições feitas sobre Yang Tengbo, o cidadão chinês com residência britânica que foi expulso do país no início de 2023 e cuja identidade tem sido mantida anónima, conhecido apenas como H-6. No passado dia 12 de dezembro, um tribunal confirmou a decisão do Ministério da Administração Interna de o expulsar do Reino Unido.
Poucos dias depois, o advogado de Yang anunciou que este desejava revelar a sua identidade e fazer uma declaração pública, devido à “enorme quantidade” de relatos mediáticos e especulação quer sobre a sua identidade, quer sobre a natureza das suas relações com a família real britânica. “A descrição generalizada de mim como um ‘espião’ é completamente falsa“, afirmou Yang, citado pelos media britânicos. “Construí a minha vida privada no Reino Unido ao longo de duas décadas e amo o país como a minha segunda casa”.
A classificação de Yang Tengbo como “espião” pode ser, porém, limitativa. “Ele é muito mais interessante que isso. Yang é um exemplo de um ativo moderno para o seu país. Podia ser chamado de guerreiro híbrido, agente de influência ou simplesmente um lobbyista da elite”, argumenta Michael Sheridan, correspondente britânico na China e autor de uma biografia sobre Xi Jinping. “Espiões são empregados mas Yang é, ou era, um jogador”, remata num artigo de opinião no The Independent.
A embaixada chinesa em Inglaterra negou igualmente qualquer acusação de espionagem. Mas a carreira profissional de Yang Tengbo mostra uma ascensão, durante a qual manteve ligações ao departamento do Partido Comunista Chinês (PCC), que Mao Tsé-Tung classificou como a “arma mágica”.
De funcionário público em Yunnan a diretor executivo em Londres
Yang Tengbo nasceu em 1974 na província do sul da China de Yunnan, onde completou a licenciatura em Ciências da Informação em 1995. Durante os sete anos seguintes foi funcionário numa “instituição estatal”, tal como o próprio relatou em entrevista à BBC China em 2005. Em 2002, seguiu para o Reino Unido, onde retomou os estudos, fez um mestrado em Administração e Políticas Públicas na Universidade de York e adotou um nome anglicizado: Cristopher Yang.
Acabados os estudos, Yang fundou, em 2005, a Newland UK, uma empresa de consultoria que se revelou muito lucrativa. A consultora — rebaptizada em 2020 como Hampton Group International — é uma de cinco empresas de que é, atualmente, diretor executivo. Entre estas inclui-se, por exemplo, a UK Chinese Business Association, uma empresa que faz a ponte entre negócios nos dois países. Além disso, foi um dos impulsionadores da primeira Cimeira de Líderes de Negócios do Reino Unido e da China, relata o The Telegraph. Fez ainda parte do 48 Group Club, que promove o comércio entre as duas economias, ainda que o grupo tenha declarado à Radio Free Asia que Yang nunca foi responsável pela direção do grupo.
Em maio de 2013, conseguiu uma autorização para permanecer no Reino Unido por tempo indeterminado. Em tribunal, afirmou que, antes da pandemia de Covid-19, passava pelo menos duas semanas por mês no país. O seu longo currículo e a sua proximidade a Londres foram destacados pelo próprio na declaração do passado dia 16, em que insiste na sua inocência. “Sou um empresário independente e self-made. Dediquei a minha vida profissional no Reino Unido à criação de laços entre empresas britânicas e chinesas. As minhas atividades contribuíram para trazer centenas de milhões de libras de investimento para o Reino Unido”, sublinhou.
Então, de onde surgem as acusações de espionagem? O primeiro obstáculo legal surgiu em novembro de 2021, quando foi detido ao desembarcar no aeroporto e obrigado a entregar o seu telefone e todos os equipamentos digitais. Nunca foram revelados os motivos para esta primeira intervenção, mas quando Yang interpôs um recurso a esta decisão — que lhe foi negado — as autoridades justificaram-se com a sua ligação ao Departamento de Trabalho da Frente Unida (UFWD), um ramo do Partido Comunista Chinês responsável por operações de influência cultural.
Em março de 2023, foi retirado de um voo que tinha aterrado em Londres vindo de Pequim e informado da decisão oficial: a então ministra da Administração Interna, Suella Braverman, tinha cancelado a sua autorização de residência, uma decisão “favorável ao interesse público”. Yang recorreu junto da Comissão Especial de Recursos de Imigração (SIAC) — o julgamento decorreu entre 9 de julho de 12 de dezembro deste ano e o tribunal confirmou a decisão de impedir a sua entrada no país, citando “um risco de segurança“.
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“Elementos enganadores”, “contactos frequentes” e “interferência política”. O caso contra Yang
Para além das empresas e grupos de que fazia parte, Yang estava envolvido em eventos do Partido Comunista Chinês. Era representante das comunidades chinesas no estrangeiro junto da Conferência Política Consultiva da China, um órgão com ligações ao UFWD, em cujas reuniões elogiou a posição internacional de Pequim. Mas, afinal, o que é o UFWD?
É um departamento do PCC que foi descrito por Mao Tsé-Tung e Xi Jinping como “a arma mágica” de Pequim e procura “influenciar a discussão pública sobre temas sensíveis”, descreve a BBC. Isto pode incluir, por exemplo, a questão de Taiwan ou do tratamento de minorias étnicas. “A Frente Unida pode incluir espionagem, mas é mais do que isso”, explica Audrye Wong, professora de política na Universidade de Southern California ao canal britânico. “As atividades da Frente Unida focam-se na mobilização dos chineses no estrangeiro”, descreve.
Numa primeira declaração em tribunal, Yang negou qualquer ligação ao PCC e aos seus órgãos, chegando a afirmar que “evitava envolver-se em política e não tinha qualquer ligação a ninguém na política chinesa”. Contudo, quando a análise dos seus aparelhos eletrónicos — recolhidos em 2021 — revelou uma ligação ao UFWD e “contactos frequentes com oficiais ligados ao Estado chinês”, defendeu-se dizendo que a sua qualidade de empresário no estrangeiro tornava o contacto com este departamento “inevitável”.
Ainda assim, o tribunal decidiu que Yang “ocultou deliberadamente” as suas ligações ao UFWD e, por isso, ao PCC, o que constitui um “elemento enganador” nas suas relações de negócios com parceiros britânicos. O SIAC reconheceu que não foi encontrada uma “abundância” de provas contra Yang — nomeadamente na falta de uma ordem direta de oficiais chineses — e que estas podem ter “explicações inocentes”. Porém, considerou que “na posição [de Yang] é esperado que compreendam os objetivos de UFWD e do PCC” e que “se envolvam ativamente sem terem de ser ordenados”.
O SIAC considerou, portanto, as provas como “suficientes” para assinalar Yang como um risco de segurança e confirmou a decisão do Ministério da Administração Interna. Na sentença, o coletivo de juízes apontou ainda que Yang chegou a posições que permitiram “gerar relações entre oficiais chineses e figuras britânicas proeminentes que podiam ser utilizadas para interferência política pelo Estado chinês”. Uma destas figuras é referida expressamente na sentença e é responsável por ter atirado o caso para os círculos mediáticos. Trata-se do duque de York, príncipe André, irmão mais novo do Rei Carlos III.
“Espião” chinês esteve no Palácio de Buckingham a convite do príncipe André
A “influência considerável sobre o duque” e a correspondência trocada com um conselheiro
Não é certo quando Yang Tengbo e o príncipe André se encontraram pela primeira vez, mas os media britânicos indicam que os dois se conheceram através do programa Pitch@Palace, um projeto semelhante ao programa de televisão Shark Tank, em que empresários procuram apoio para os seus negócios. Neste caso, o apoio era dado pelo duque de York. Yang viria a lançar a versão chinesa deste projeto, com o apoio do governo chinês.
Em 2020, Yang apareceu várias vezes ao lado do príncipe: quando foi convidado para o seu 60.º aniversário, em festas no Palácio de St. James, no Castelo de Windsor e em visitas ao Palácio de Buckingham. Frequentou ainda uma celebração do ano novo chinês em Downing Street, residência oficial do primeiro-ministro britânico, onde tirou fotografias com David Cameron e Theresa May, relata o The Guardian. Os porta-voz dos dois antigos primeiros-ministros, contactados pela Sky News, desvalorizaram as fotografias, sublinhando que ambos frequentaram centenas de eventos, onde tiraram milhares de fotografias com pessoas que não conhecem.
A relação com André é, contudo, mais profunda, tal como comprovam duas cartas enviadas a Yang por Dominic Hampshire, um dos conselheiros principais do príncipe. “Espero que seja claro o seu lugar ao lado do meu superior e da sua família”, pode ler-se na primeira carta, de março de 2020. “Nunca deve subestimar a força dessa relação. Fora dos seus confidentes mais próximos, está sentado no topo de uma árvore em que muita, muita gente gostaria de estar”, lê-se ainda no documento, citado pelo tribunal.
Na segunda carta, de outubro de 2020, o conselheiro do príncipe autoriza Yang a agir em nome de André no fundo Eurasia, uma iniciativa financeira internacional. Um outro documento tem mais instruções para a relação entre Yang e André: “Importante: gerir expectativas. Muito importante não pôr expectativas ‘demasiado altas’ — [o príncipe] está numa situação desesperada e vai agarrar-se a qualquer coisa”.
A “situação desesperada” do duque de York também foi sublinhada pelo tribunal. “É óbvio que as pressões sobre o duque o tornariam vulnerável à má utilização deste tipo de influência”, escreveram os juízes na sentença. Ambos os casos são uma referência ao facto de a relação próxima entre o príncipe André e Jeffrey Epstein — detido por tráfico de menores — terem sido tornadas públicas na mesma altura. André viria a ser afastado da vida pública da família real depois de também ele ter sido acusado de abuso sexual por uma menor.
O The Guardian detalha a ligação entre Yang e Hampshire, que se terão conhecido através de trabalhos na consultora Eurasia Global Partners — não é claro se esta empresa tem ligações ao Eurasia Fund mencionado na segunda carta. O gabinete do príncipe André, por sua vez, quebrou o silêncio apenas para tentar afastar o nome do duque do escândalo. “O duque conheceu o indivíduo através de canais oficiais e nada de natureza sensível foi discutido“, pode ler-se na nota citada pela imprensa britânica.
Vítima de um “novo clima político” e de “conspirações sinistras”
Yang Tengbo recusa todas as acusações e diz estar a ser um dano colateral de um clima de crispação política entre Londres e Pequim. “Quando as relações estão boas e o investimento chinês é procurado, eu sou bem-vindo no Reino Unido. Quando as relações azedam, uma posição anti-China é tomada e eu sou excluído”, argumentou, citado pela BBC.
Ainda durante o julgamento e antes de a identidade de Yang ter sido tornada pública, a embaixada chinesa em Londres já tinha condenado “as histórias infundadas de ‘espionagem’ que visam a China“. Em comunicado, a embaixada acusou o Reino Unido de querer “perturbar as trocas normais entre pessoal chinês e britânico” e “manchar a China”.
“Estas conspirações sinistras nunca vão ser bem sucedidas. Apelamos às partes relevantes no Reino Unido que parem imediatamente de criar problemas e que parem de espalhar a narrativa da ‘ameaça chinesa‘”, declararam ainda as autoridades chinesas, citadas pelos media britânicos.
Apesar das condenações, a associação entre um cidadão chinês, com ligações ao PCC e às elites — políticas e da realeza — britânicas, fez soar alarmes. O antigo líder do Partido Conservador, Iain Duncan Smith, aproveitou a oportunidade para pressionar a aprovação de um esquema de registo de influência estrangeira, um programa que foi aprovado pelo anterior governo conservador, mas cuja entrada em vigor foi adiada pelo atual governo trabalhista.
Iain Duncan Smith considerou que Yang não é um “lobo solitário”, mas apenas “a ponta do icebergue” de esquemas de influência chinesa no Reino Unido, que, argumenta, devem ser travados. A análise de Michael Sheridan à estratégia de Pequim não anda muito longe desta ideia. “A espionagem hoje tem muitos mantos e o Estado chinês é adepto de explorar as fraquezas dos seus adversários”, escreveu. “A tarefa de patriotas como Yang não é roubar segredos. É influenciar os seus alvos, absorver os seus problemas, atenuar as suas impressões de um regime hostil e criar condições para apaziguamento e hesitação num crise”, argumenta, acrescentando que o objetivo final é “dividir as democracias”. “Isso requer talentos subtis.”