Primeiro foram os alemães. Depois, os franceses, os italianos, os belgas e os polacos. O protesto também chegou a Espanha. Agora, os agricultores portugueses decidiram juntar-se aos protestos que têm levado ao bloqueio de estradas e ao encerramento de fronteiras por toda a Europa. E nem as promessas do Ministério da Agricultura os demovem.
A luta não é exatamente a mesma, os meios também não, e garantem não se ter inspirado nas imagens que chegam de fora. Os agricultores portugueses não querem criar “desordem pública”, mas estão empenhados em provocar “constrangimentos”, porque, dizem, “só assim” serão “ouvidos”. Para isso, mobilizaram-se em grupos no WhatsApp onde vão partilhando informações e se vão organizando para o momento em que decidiram sair à rua: esta quinta-feira, a partir das 5h30, em vários pontos de norte a sul do país.
No Alentejo, o Observador sabe que são esperados “muito mais que 2 mil” agricultores e 400 tratores. O objetivo é impedir a circulação nas fronteiras do Caia, no concelho de Elvas, e do Retiro, perto de Badajoz, bem como as estradas de Olivença, Mourão e Ficalho, no Baixo Alentejo. Já no Ribatejo, o número é ligeiramente inferior, estando previstos perto de 800 agricultores no local e 150 máquinas agrícolas. Ali, com um protesto combinado para a zona da Chamusca, não se fala em bloqueio, mas numa marcha lenta — o efeito pode, na verdade, ser o mesmo e acabar por impedir (ou, pelo menos, dificultar) a circulação num local considerado o “eixo central da região”.
Em Trás-os-Montes, não é possível prever o número de participantes nos protestos que planeiam bloquear as fronteiras com Espanha. No entanto, explica ao Observador uma das administradoras do grupo da região, Ana Rita Bivar, quando tomaram a decisão de se juntarem ao protesto e fechar a fronteira, os agricultores perceberam que não tinham os meios para concretizar o plano. A solução veio dos companheiros de protesto mais a sul: ao longo desta quarta-feira foram enviados tratores do Alentejo para ajudar a alcançar uma maior dinamização. No que diz respeito às outras regiões, como Minho, Beiras e Algarve, o Observador tentou contactar alguns dos membros, mas não obteve resposta.
Apesar de o protesto português ter semelhanças com os que estão a acontecer lá fora – tendo, por exemplo, os agricultores franceses bloqueado várias autoestradas ao redor de Paris –, há muitas diferenças em ambas as lutas. A começar das motivações que estão na origem das manifestações.
Pagamentos chegaram com atraso. E com corte de 35%. “Foi a gota de água”
Alguns falam num “gatilho” que desencadeou a decisão de aderir ao protesto; outros, referem-se à “gota de água num copo que já ia a transbordar”. O “grande problema” que motivou os protestos dos agricultores chegou na semana passada. Com “três meses de atraso”. E com uma notícia inesperada que fez disparar a revolta.
Em outubro, vários agricultores esperavam receber o adiantamento dos apoios do Plano Estratégico da Política Agrícola Comum (PEPAC) destinados à agricultura biológica e de produção integrada. Não chegaram nesse mês; e também não chegaram em dezembro, mês em que os apoios propriamente ditos (e não os adiantamentos) tendem a ser pagos.
A revolta cresceu quando, na semana passada, os agricultores foram informados pelo IFAP (Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas) de que os valores que esperavam chegariam, sim, mas com cortes de 25% e 35% ao abrigo dos ecoregimes de agricultura biológica e de produção integrada. Para agricultores já por norma descapitalizados, foi a gota de água. Fontes do setor contam que houve casos de produtores que contraíram durante a campanha passada créditos junto da banca a contar com montantes de apoios que, perceberam agora, não iam receber.
“O que acontece é que, no dia 25 de janeiro, esperávamos receber uma certa verba, e só recebemos 65%”, revela ao Observador o agricultor Nuno Mayer, um dos membros do grupo de Ribatejo. “Sem nos avisarem, cortaram-nos os apoios em 35%.” Esse corte acabou por tornar impossível cumprir com certas responsabilidades. “Temos compromissos com os fornecedores de grupos, de equipamentos, com a banca e com a população. Esperávamos que, quando o dinheiro chegasse, desse para pagar esses compromissos. Mas não deu”, continua.
Em alguns casos, tiveram mesmo de ser feitos sacrifícios para suportar essas responsabilidades. “Acabei de vender o meu rebanho e vejo imensas explorações a fechar”, conta Ana Rita Bivar. “A gota de água foi o corte no pagamento de ajudas, mas há muitos anos, tendo ficado pior desde a Covid, os custos ficaram inacreditáveis. Sem as confederações mexerem um dedo e os Governos outro.”
Em causa está o Plano Estratégico da Política Agrícola Comum (PEPAC), que foi aprovado pela Comissão Europeia em 2022 para entrar em vigor em 2023 até 2027, e que define como é aplicada a PAC em Portugal nesse período. O ano passado foi, portanto, o primeiro. Vários aspetos do desenho proposto pelo Governo já tinham sido criticados pelos representantes dos agricultores, que antecipavam cortes.
O foco de tensão são os “ecoregimes” de agricultura biológica e produção integrada, que foram transferidos do segundo Pilar para o primeiro, e que viram o volume de candidaturas crescer acima do previsto. O IFAP explica que, à luz das novas regras, o valor do apoio por agricultor passou a ter intervalos mínimos e máximos e valores indicativos que podem mudar consoante a procura. Como a procura foi mais elevada que no quadro anterior, os montantes a pagar diminuíram.
A comunicação desses valores pelo IFAP não caiu bem junto dos agricultores. E foi até criticada pela própria ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, que a considerou “menos feliz” e precoce — mesmo apesar de o instituto ser tutelado pelo seu ministério. Segundo a governante, tanto o PEPAC permite realocar verbas não usadas noutros ecorregimes, como o pacote de apoio anunciado esta quarta-feira pelo Governo ainda não estava fechado. Esse pacote promete reverter os cortes comunicados, mas também não demoveu os agricultores.
Governo anuncia pacote para agricultores de 440 milhões que inclui reversão dos cortes contestados
No princípio eram 100. Em poucas horas já tinham 15 grupos WhatsApp
Sem se sentirem representados pela Confederação Nacional de Agricultura (CNA) e pela Confederação de Agricultores de Portugal (CAP) — responsáveis por promover os interesses dos profissionais por todo o país —, e ao verem o Ministério da Agricultura “desculpabilizar-se com o Governo em gestão”, os agricultores decidiram ir para a rua. E tudo começou com algumas mensagens num pequeno grupo de WhatsApp.
A organização dos protestos surgiu de forma inorgânica, sem ligação às confederações agrícolas. Aliás, os promotores dos protestos nas diferentes regiões só se aperceberam do que estava a ser feito nas restantes zonas quando já se tinham mobilizado para bloquear estradas e fronteiras.
No Alentejo, conta Nuno Mayer, começou com “um grupo muito pequeno, com apenas 100 pessoas”. “E, de repente, em apenas três horas, atingiu os mais de mil membros. Foi incrível”, recorda. Já em Trás-os-Montes, foi Ana Rita Bivar a grande “porta-voz” de toda a revolta. “Fiz um grupo, porque queria juntar agricultores e falar sobre o que estava a acontecer. Queria, no fundo, saber se os outros estavam tão indignados quanto eu”, conta.
Outros agricultores foram sendo adicionados ao grupo, incluindo um colega do Alentejo. “Ele disse-me que lá havia já um grupo enorme, com mil e tal pessoas, e eu juntei-me a esse.”
Não levou muito tempo até que esse grupo atingisse a lotação máxima de membros e levasse à criação de outro. E o “efeito dominó” levou à criação de muitos outros, havendo, atualmente, 15 grupos diferentes para organização dos protestos e um outro em que apenas estão reunidos os “porta-vozes”, como Ana Rita Bivar os chama. “É onde dizemos o que se está a passar, damos feedback do que está a acontecer, o que os agricultores pretendem e quais são as reivindicações”, explica a agricultora.
Agricultores preparados para um protesto de “muitos dias” em todo o país
Criados os grupos e os motes “o nosso fim é a vossa fome” e “sem agricultura, não há comida”, os agricultores, que se juntaram como Movimento Civil Agricultores de Portugal – que dizem ser “espontâneo e apartidário” – só precisavam de perceber qual a melhor forma de gritarem pelas suas reivindicações.
Para isso, coordenaram-se “com os comandos distritais da Guarda Nacional Republicana (GNR) de vários locais” e comprometeram-se a fazer uma “manifestação muito pacífica”. “Não vamos entrar na autoestrada, porque é proibido os tratores entrarem, não vamos bloquear aeroportos e outras infraestruturas. Não vamos fazer nada disso”, assegura Nuno Mayer.
Apesar dessa garantia, o bloqueio das estradas e fronteiras, por si só, pode constituir um abuso de “direitos fundamentais”, como o direito à livre circulação. Foi esse o aviso que deixou o ministro da Administração Interna, José Luís Carneiro, esta quarta-feira, dizendo que “o direito de manifestação é fundamental, mas que também deve ser acompanhado por alguns deveres”. A ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, também pediu que as manifestações fossem feitas de “forma ordeira”, sem colocar em causa a segurança de pessoas e bens.
Os alertas, no entanto, não demoveram os agricultores, que já se preparam para passar “muitos dias” ao relento. “Não há alterações. Correrá tudo pacificamente e com ordem”, garante António Saldanha, membro do grupo do Alentejo. “Estamos em articulação com a GNR para fazer o protesto sem desrespeitar os direitos fundamentais”, concorda Ana Rita Bivar. “Por isso, também podemos exercer os nossos.”
Outras palavras do Governo que não tiveram reflexo na desmobilização do protesto foram as proferidas pela ministra da Agricultura e da Alimentação, Maria do Céu Antunes, que anunciou esta quarta-feira um pacote de apoio ao rendimento dos agricultores no valor de 440 milhões de euros.
“Até recebermos as verbas em dívida”, não vão parar com os protestos, assegura António Saldanha. “Até lá, são promessas que, infelizmente, sabemos que não são cumpridas normalmente.”
Mas é provável que a resposta não chegue com a brevidade desejada. Segundo a ministra Maria do Céu Antunes, para reverter os cortes e garantir o “pagamento integral aos agricultores”, o Governo mobilizou 60 milhões de euros do Orçamento do Estado para este ano. Mas é obrigado a notificar a Comissão Europeia, e a esperar pela respetiva autorização, uma vez que a verba entrará sob a forma de auxílio de Estado. Maria do Céu Antunes reconhece que é mais um elemento de burocracia que não beneficia os agricultores.
“Sempre que é necessário fazer alterações temos de pedir a Bruxelas e isso é um entrave. É a tal burocracia. Temos pedido à Comissão Europeia para flexibilizar e considerar esta autonomia dos Estados-membros para podermos trabalhar de forma diferente”, afirmou, em conferência de imprensa convocada já esta quarta-feira.
Mas, se as promessas da ministra da Agricultura e da Alimentação não param os agricultores, o que o fará? “Queremos apenas ser ouvidos. Primeiro, pela sociedade civil, da qual fazemos parte. Depois, pelos principais interessados, porque o fim da agricultura vai ter uma consequência muito pesada. Não só para nós, como para todo o país”, sublinha Ana Rita Bivar.
Governo anunciou medidas de apoio ao setor. Muitas já estavam previstas no OE e acordos anteriores
A marcação da conferência de imprensa com o ministro das Finanças, Fernando Medina, e a ministra da Agricultura, Maria do Céu Antunes, chegou dez minutos antes das 14h00, pouco depois de o presidente da CAP, Álvaro Mendonça e Moura, anunciar aos jornalistas que houve “acordo” com o Governo para a reversão dos cortes contestados. A convocatória não indicava o motivo: os dois governantes “realizam uma conferência de imprensa conjunta”, lia-se apenas.
A ideia seria apresentar o “Pacote de Apoio ao Rendimento dos Agricultores”, no valor de 440 milhões de euros, que não foi relacionado pelo Governo à onda de protestos que se vivem na Europa — e que são esperados em Portugal. Em causa estão apoios para mitigar os efeitos da seca — com medidas para apoiar a produção, de 200 milhões de euros, e a criação de uma linha de crédito a juro zero, de 50 milhões de euros.
Também há medidas para “reforço do apoio aos rendimentos”, muitas delas já previstas no acordo de rendimentos assinado na concertação social em outubro — como o reforço do pilar 2 do PEPAC — e até aprovadas no Orçamento do Estado para 2024 — como a redução do ISP do gasóleo agrícola para o mínimo permitido na diretiva europeia, de 4,7 cêntimos por litros para 2,1 cêntimos por litro, o que tem um custo de 11 milhões de euros por ano.
Pedro Santos, dirigente da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), diz ter sido apanhado de surpresa com o anúncio do pacote, no qual a organização não foi chamada a participar. Mas sublinha que há muitas reivindicações de fundo a que não responde: “Continuamos a não mexer nos preços à produção, com medidas concretas que melhorassem a distribuição do rendimento. É preciso regular toda a cadeia”, pede. A CNA promete manifestações sexta-feira e ao longo do mês de fevereiro, mas sem ligação ao inorgânico Movimento Civil Agricultores.
A forma de luta não será a mesma, mas há muito que liga a organização ao movimento — além das reivindicações, nem um nem outro ficaram convencidos com o anúncio do Governo. A força e o descontentamento de cada um ficará à vista nos protestos prometidos para os próximos dias.