“– Rachel, o Pai está ao telefone para falar contigo – disse a Mãe Annette certo dia no Verão de 1992. Peguei no auscultador.
– Rachel, vem ao meu escritório – disse o Pai.
Recentemente, o Pai tinha começado a dar-me atenção especial, convidando-me a passar tempo com ele sem nenhum dos outros filhos por perto. Nessa altura, havia sete raparigas e três rapazinhos, dos três anos para baixo. Não faço ideia da razão por que me escolheu a mim e não aos outros. Levava-me a andar de carro ou às compras ou a comer num restaurante, só os dois, mas na maior parte das vezes passávamos tempo juntos no escritório dele. Regra geral, eu ficava a ler um dos livros que ele tinha por lá ou ajudava-o a limpar ou a fazer alguma tarefa simples que ele me passasse.
Nesse dia, quando cheguei, a luz no escritório estava muito ténue. As persianas estavam fechadas, permitindo apenas que uma pequena parte da luz da tarde espreitasse por entre as lâminas.
– Entra, Rachel.
O Pai estava sentado na cadeira por trás da secretária.
– Aproxima-te – disse, e fez-me sinal com a mão.
Puxou-me para o colo dele. Mexeu as mãos por baixo de mim, fez-me deslizar para fora do colo dele e voltou-me de forma que eu ficasse virada para ele, e empurrou-me para que me pusesse de joelhos. As calças dele estavam desapertadas e ele tinha os genitais expostos.”
Rachel tinha apenas oito anos quando começou a ser vítima de abuso pelo pai, Warren Jeffs, líder da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias e atualmente a cumprir prisão perpétua por abuso sexual de menores. Este foi apenas o primeiro dia de vários anos de abusos, relatados ao detalhe no seu livro “Filha do Profeta” que chega às livrarias no próximo dia 3 de abril. Rachel abandonou a igreja em 2014 e decidiu contar tudo aquilo que viveu sob as ordens do pai.
“Depois de eu ter saído, muitas pessoas que também tinham saído da igreja tentaram contactar-me e queriam ouvir a minha história. Achei que todas aquelas pessoas tinham o direito de saber como era realmente a pessoa que eles acreditavam que era um bom homem. Foi por isso que decidi escrever a minha história, para todas as pessoas que estão na igreja e que saíram. E também para ajudar todas as pessoas que passaram por uma experiência complicada, para saberem que conseguem ser boas pessoas e terem sucesso [apesar do que lhes aconteceu]”, afirma Rachel Jeffs, numa entrevista exclusiva ao Observador.
Nascida em 1983 em Salt Lake City (EUA), Rachel foi a filha mais velha da segunda mulher de Warren Jeffs — que, no total, teve 78 mulheres e 53 filhos. A família fazia parte da elite da igreja. O seu avô, Rulon Jeffs, líder da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, uma fação fundamentalista separada daquela que é conhecida como igreja mórmon, era chamado de Profeta, o homem eleito por Deus para passar os seus “ensinamentos”.
“Era uma família grande e crescemos todos juntos. Vivíamos todos na mesma casa, dividia um quarto com as meias irmãs que tinham mais ou menos a minha idade e chamávamos de mãe a todas as mulheres, independentemente de elas serem a nossa mãe ou não.”
A vida era “muito regrada”, recorda Rachel, agora com 35 anos. A família rezava todas as manhãs e cada elemento tinha uma tarefa, atribuída pelo Pai logo ao início do dia. As mães e crianças eram divididas em grupos. Uns ficavam encarregues de limpar a cozinha e fazer as refeições — muito à base daquilo que a família cultivava, pão e arroz integral, papas e feijões — e outros passavam o dia a tratar da roupa de toda a família. Uma mãe e algumas crianças limpavam o resto da casa enquanto outra mãe e os filhos mais velhos tomavam conta dos mais novos. Tudo sempre com uma atitude subserviente, tanto das crianças para os pais como das mães para Warren Jeffs. Ninguém se atrevia a desafiar ou a questionar o pai.
Apesar das tarefas, as crianças tinham tempo para brincar e ainda frequentavam a escola privada da igreja, a Academia Alta, dirigida por Warren Jeffs, onde tinham aulas de matemática, história, ciências, literatura e inglês até ao oitavo ano, além de aulas sobre a Igreja Mórmon. Rachel aprendeu a tocar violino — uma habilidade que lhe viria a ser útil, anos mais tarde — e os serões de sexta-feira em família eram passados a tocar e a cantar.
Desde cedo aprendiam a importância de cobrir o corpo e eram ensinados que rapazes e raparigas não se podiam tocar. As raparigas tinham de usar vestidos compridos “que iam dos calcanhares aos pulsos” e tinham de ter o cabelo entrançado de uma forma específica.
O contacto com o mundo exterior era praticamente inexistente. “Disseram-nos que eram pessoas perversas, que éramos os escolhidos e que devíamos estar agradecidos por não fazermos parte do resto do mundo.” Rachel ainda se lembra de ter visto alguns desenhos animados e filmes como “Winnie The Pooh”, “Cinderela”, “Bambi” e “O Homem de Rio Nevado”, mas o acesso a televisão e a livros infantis e escolares era escasso — romances eram proibidos.
Rachel caracteriza a sua infância de “normal”, até o pai começar a abusar dela. “Durante toda a minha vida ele tinha-me ensinado a não deixar nenhum rapaz tocar-me nas zonas privadas, portanto quando ele começou a abusar de mim, eu sabia que era errado. Ele não dizia grande coisa, mas eu sentia-me péssima”, relata Rachel. “Lembro-me de pensar que se o meu pai é assim tão mau, provavelmente os pais do mundo lá fora são muito piores. Assumi isso porque nos disseram que o mundo era tão perverso, por isso achei que devia apenas estar agradecida com este tipo de pai.”
“Quando tinha dez anos, o pai começou a levar-me a livrarias e a bibliotecas para me mostrar pornografia. Deixava-me na secção infantil, depois ia até à zona da loja onde estavam as prateleiras com livros «para adultos», escolhia o que queria mostrar e trazia-o de volta. Para outros patronos parecia apenas um pai dedicado a ler para a filha.
– Rachel, olha o que os homens e as mulheres fazem juntos.
Ou:
– Olha o que os homens e as mulheres fazem a eles próprios.
Se a secção infantil estava muito cheia com outras crianças, o pai dizia-me para o seguir até uma secção diferente da loja, como jardinagem ou ciências, onde não havia outros clientes, para poder explicar-me com detalhe como se faziam os bebés e como nasciam.
– Pai, eu não quero ver.
– Quero que olhes para estas imagens.
O pai punha as mãos nos dois lados da minha cabeça e forçava-me a olhar. Sentia-me envergonhada que as outras pessoas na loja pudessem perceber que eu não queria olhar para o que ele estava a mostrar-me, por isso acabava sempre por obedecer-lhe. Muitas vezes, ele levava-me de volta ao escritório, despia-se e depois fazia-nos imitar as posições das imagens que tinha acabado de me mostrar, excluindo o ato de penetração.”
A jovem ainda contou à mãe o que se passava, mas de nada serviu. “Na noite em que lhe contei, ela enfrentou-o, mas depois nunca mais disse nada. Não sei se foi porque tinha medo dele ou daquilo que ele iria fazer… não sei porque é que nunca fez nada para acabar com aquilo”, conta Rachel.
Além deste episódio, Rachel nunca se queixou nem contou a ninguém o que o pai fazia — só anos mais tarde veio a descobrir que não era a única filha vítima de abuso. Os abusos continuaram até aos 16 anos. Nessa altura, escreveu uma carta ao pai onde lhe dizia o quanto “odiava” aquilo que lhe estava a fazer. Warren Jeffs pediu o perdão da filha e não voltou a abusar dela.
Apesar dos casamentos com raparigas menores serem prática comum na igreja, Rachel não acredita que os abusos sexuais o fossem. “Acho que eram mais os homens que não praticavam abusos sexuais do que aqueles praticavam. A maioria seguia as regras da igreja e não fazia esse tipo de coisas, mas acho que a poligamia acaba por estragar os homens. Acho que a maioria dos pais nunca fariam aquilo que o meu fazia aos filhos. O meu pai era particularmente estranho.”
Dois anos mais tarde, Warren decidiu casar as filhas Rachel e Becky — ambas com 18 anos — com os guardas do avô, Richard e David Allred. “Não achei que era assim tão nova. Achei que tive sorte em casar com 18 anos porque ele já tinha mulheres de 15 anos quando casei.” Entre a notícia de que se iriam casar e o dia da cerimónia, que foi celebrada pelo próprio pai, não passou nem uma semana. Apesar de conhecer o futuro marido de vista, a primeira vez que Rachel falou com Rich foi na véspera do casamento. Horas antes do casamento, Warren Jeffs fez com que a filha lhe prometesse que iria pedir, naquela noite, ao marido um bebé.
“Só passados dois meses inteiros desde o nosso casamento reuni por fim coragem para pedir um bebé ao Rich. Até então tinha-me sentido demasiado assustada para ter uma relação íntima com um homem que conhecera apenas um dia antes de se tornar meu marido. Ainda tinha algum medo, mas ele reagiu com um enorme sorriso.
– Sabes como se faz um bebé, Rachel? – perguntou, com preocupação genuína na voz.
A igreja separava os rapazes das raparigas antes da puberdade. Em casa e na escola éramos mantidos à distância. Paixonetas não eram autorizadas. Namorar não nos passava sequer pela cabeça.
O casamento era a nossa introdução às relações íntimas.
Contudo, disse: – Sim.
O Rich abriu muito os olhos e inclinou a cabeça para o lado, como um cão que tinha acabado de ouvir um som estranho.
– A sério? Como sabes?
– Porque sei – respondi, desviando a cara.
Não conseguia olhá-lo nos olhos.”
Rachel começou a fazer parte de uma família polígama — o marido já tinha duas mulheres e filhos quando casaram. Mesmo tendo crescido numa casa com várias mulheres, estava longe de imaginar a realidade de viver com esposas-irmãs. As cenas de ciúmes eram constantes, especialmente se Rachel passava a noite com o marido. Era Rich quem decidia com quem passava as noites, mas isso não impedia as outras mulheres de a maltratarem e de dizerem mal dela ao marido. As outras mulheres chegaram mesmo a maltratar os filhos de Rachel. “Fechavam-nos num armário por muito tempo ou ameaçavam-nos de palmadas. Eles não percebiam porquê.”
Uma situação que só acalmava quando estava grávida. Como o casal estava proibido de ter relações sexuais durante a gravidez, os ciúmes das outras mulheres acalmavam e aí a dinâmica era mais pacífica. “Eu amava o meu marido. Acho que não era uma amizade perfeita porque era poligamia, mas eu amava-o tanto quanto podia numa situação daquelas.”
Em 2002, Warren Jeffs tornou-se Profeta e líder da igreja após a morte do seu pai, mas não da forma tradicional. Por norma, tem de ser o Profeta a nomear o seu sucessor, o que não aconteceu neste caso. Isso, contudo, não foi problema: Warren, que há já quatro anos agia como líder da igreja, disse ter sido nomeado diretamente por Deus.
“Aos poucos, nos 15 anos seguintes, as coisas foram-se tornando mais rigorosas. Cada detalhe tornou-se muito importante para ele”, recorda Rachel. “Começando pela maneira como nos vestíamos: as cores tinham de ser cor pastel. Recebia novas revelações de que devíamos comer certo tipo de comida e não comer coisas como batatas, chocolate. Disse-nos que as mulheres e as crianças tinham de rezar, de hora em hora e de joelhos.”
Em 2005, Warren Jeffs foi acusado de má conduta sexual para com uma menor, de conspiração para cometer má conduta sexual com uma menor, de cúmplice de violação, de casar uma menor e um homem mais velho e começou a fugir das autoridades. Um ano depois já estava na lista do FBI das 10 pessoas mais procuradas dos Estados Unidos e foi detido, ainda nesse ano, numa operação stop nos arredores de Las Vegas.
Em 2008, as autoridades do Texas receberam uma chamada alegadamente de uma menor que dizia estar casada com um homem mais velho, de quem tinha um filho e decidiram fazer um raid à “terra de refúgio”, para onde Warren Jeffs tinha enviado parte da comunidade da igreja anos antes e que ficaria conhecido por “Yearning for Zion Ranch”.
“Receberam um telefonema falso de uma pessoa que nem sequer estava lá e entraram e levaram todas as crianças das mães e separaram toda a gente. Foi uma altura muito dolorosa. As crianças ficaram separadas das mães e das famílias durante quatro meses. Foi uma grande confusão”, afirma Rachel que, apesar de ter estado no rancho no dia da rusga, foi recebendo notícias dos irmãos que estavam sob custódia do Estado e que lhe ligavam em segredo. “Eles deviam ter ido lá e investigado os homens, não teria sido tão doloroso para o resto das pessoas. Sinceramente acho que eles se arrependem do modo como lidaram com tudo. Magoou muitas pessoas. Ao mesmo tempo, fiquei agradecida que os casamentos com menores pararam depois disso, mas foi uma época muito dolorosa.”
A verdade é que foi graças a provas recolhidas durante esta incursão que as autoridades acusaram Warren Jeffs de abuso sexual de menores. O julgamento teve início em julho de 2011 e Warren Jeffs foi acusado de abuso sexual de duas das suas mulheres, uma de 12 anos e outra de 15 anos.
“Uma das esposas do Avô Rulon, Rebecca Musser (tinha deixado a igreja depois da sua morte porque o pai insistira para que ela casasse outra vez e ela não queria), testemunhou acerca do papel das mulheres na FLDS e disse ao tribunal que a sua salvação, de acordo com a igreja, vinha de se submeterem aos maridos.
Mas foi a forma cuidadosa como o pai tinha mantido registos da sua própria vida que permitiram ao Estado constituir um caso. A acusação só teve de ler o que o pai tinha escrito ou instruído outros a escrever por ele, incluindo descrições dos ataques às suas esposas. Durante alguns destes recitais muito gráficos, o pai objetou repetidas vezes, invocando o Senhor com frequência. Até havia uma cassete de áudio de uma hora em que o pai dava instruções a um «quórum de doze senhoras» sobre fazerem sexo em grupo. Por fim, um perito em ADN confirmou que o pai tinha concebido um filho com a esposa de 15 anos. Outro registo provava o abuso à mulher de 12 anos, no qual ele a tratava pelo nome.
O pai não tinha grande forma de se defender. A sua única testemunha era um membro da igreja que não ajudou o pai em nada. O júri levou quatro horas a dá-lo como culpado de ambas as acusações.
A fase do julgamento em que se decidiu a sentença trouxe a lume um monte de nova informação acerca das 78 mulheres do Pai, muitas das quais tinham sido esposas do Avô antes de ele morrer – mães do Pai, por outras palavras – e quase um terço delas menores. O Estado também apresentou provas de todos os casamentos polígamos que ele tinha celebrado, das famílias que tinha desfeito, dos homens que mandara embora e de abusos sexuais adicionais a crianças, incluindo as suas próprias noivas menores. (O Estado não sabia nada acerca da relação do Pai comigo. Ele não mantinha registos disso.) O Pai escolheu não estar no tribunal durante esta parte, portanto deixou a sua defesa ao cuidado do advogado de reserva enquanto esperava numa sala do outro lado do corredor acompanhado de um guarda.
A 9 de Agosto de 2011, o júri levou menos de uma hora a voltar à sala com uma sentença: prisão perpétua.”
A condenação, contudo, não fez com que Warren Jeffs perdesse o controlo da igreja. Bem pelo contrário: continuou a enviar mensagens com as revelações de Deus onde eram dadas instruções cada vez mais rigorosas. As pessoas passaram a ter de começar a vestir-se pelo lado direito, só depois passando para o lado esquerdo. O riso passou a ser considerado pecado, deixaram de poder comer certo tipo de alimentos como leite, batatas, cebolas e alho e tinham de beber um copo de dois decilitros de água de meia em meia hora.
Foi também nesta altura que Warren começou a separar as crianças dos seus pais, acusando-os de crimes sem fundamento. Rachel não foi exceção. O pai acusou-a de ter tido relações sexuais com o seu marido quando estava grávida e foram ambos afastados dos filhos. “Como nunca o fizemos, porque o meu marido é muito obediente das regras da igreja, e nunca iria confessar o crime porque não o tinha cometido, ele não me deixava estar com os meus filhos durante muito tempo. Enganava-me para eu pensar que seria apenas uma semana, mas depois eram meses e meses. Foi provavelmente a época mais difícil da minha vida, eu não consigo viver sem os meus filhos.”
Estar separada dos filhos foi a gota de água e Rachel decidiu abandonar a igreja. Uma decisão que diz não ter tomado mais cedo porque sabia que “iria perder o amor” da sua família para sempre no dia em que partisse definitivamente. “Foi a decisão mais difícil que eu sabia que tinha de tomar pelos meus filhos. Eu já tinha decidido que queria sair meses antes, mas queria falar com o meu marido primeiro. Queria ter a oportunidade de falar com ele, mas percebi que não ia ter essa possibilidade. Quando o meu pai decidiu que eu tinha de ir viver com o meu tio Lyle — ele não era muito boa pessoa — decidi que tinha de me ir embora naquele dia.”
31 de dezembro de 2014 foi o último dia de Rachel na igreja. Na véspera, duas das irmãs, que tinham saído da igreja meses antes e que estavam a viver com os seus avós maternos que não faziam parte da comunidade — as mães de Angela, Becky e Rachel eram irmãs e ambas casaram com Warren Jeffs –, foram buscar os filhos de Rachel, que ficou para trás para arrumar as suas coisas.
“Às nove já era noite cerrada e eu telefonei à Angela.
– Podes vir buscar-me? Estou pronta. Não me parece que esteja alguém a vigiar agora.
Os guardas do Lyle costumavam trabalhar 24 horas por dia mas naquela altura não via nenhum deles de serviço.
Levei todos os sacos que empacotara lá para baixo, pu-los junto à porta da frente e sai lá para fora para esperar. Havia uma nota afixada na porta. Reconheci a letra do Lyle:
– Rachel, por favor, não vás embora. Podes viver onde quiseres.
Ri-me alto. Há 36 horas que não dormia, tinha os nervos em franja por causa dos ataques violentos e constantes daquele dia e agora ele dizia-me que eu podia decidir o que queria se ficasse?
Depois do que me fizeram passar? Não me parece.
Trouxe tudo para junto do portão para esperar. Estava a tremer ao frio do final de Dezembro. Apesar do tom conciliatório do bilhete do Lyle, o medo de ser descoberta fez-me tremer ainda mais. Não sabia quando voltariam os guardas, mas tinha a certeza de que o fariam.
Despacha-te, Angela! Despacha-te!, pensava enquanto esperava junto aos meus sacos.
Passaram várias pick-up, levando-me a agachar com medo que fossem os seguranças para me buscar. Quando continuavam sem parar, mais do que alívio, eu sentia apenas uma pausa no sentimento de terror que me acompanhava desde a noite anterior.
Não sei que milagre esvaziou as estradas quando a minha irmã estacionou por fim na curva em frente da minha casa, mas não havia ninguém por perto para nos ver quando enchemos a bagageira do carro com os pertences da minha família e arrancámos de Short Creek pela última vez.”
Ao fim de 31 anos, Rachel estava por fim longe da Igreja Fundamentalista de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias. “Fiquei chocada com o quão livre me sentia, quase que me sentia culpada por estar feliz. É difícil descrever a felicidade que sentia por estar livre e, ao mesmo tempo, a dor que sentia porque sabia que a minha família estava a dizer coisas terríveis sobre mim e a acreditar em todas as mentiras que o meu pai lhes dizia sobre mim.”
Mas nem por isso o pai a deixou em paz. Os seus tios tentaram por várias vezes entregar-lhe mensagens de Warren, algo que só acabou depois de Rachel falar com o FBI e contar o que se estava a passar.
Rachel teve de começar a sua vida do zero com os cinco filhos: Ember (Warren Jeffs, que dava os nomes às crianças, batizou-a de Barbara), Majasa (Martha), Rulon, Lavinder e Nathaniel. Começou a dar aulas de violino para se poder sustentar e foi para a universidade durante um ano para melhorar a sua escrita. “Foi muito difícil. Chorei muito, mas valeu a pena para ser livre. Os meus filhos puderam ir à escola e ter uma educação. Havia tantas coisas novas para fazer e para ver.” As cinco crianças também se adaptaram rapidamente à nova realidade. A única coisa que lhes custa, segundo Rachel, é não terem contacto com o pai, que nunca os procurou depois de terem saído da igreja.
Depois de três meses a viver com os avós, Rachel mudou-se para o estado de Montana e atualmente vive com o marido Brandon, também ele ex-membro da igreja, no Idaho, onde trabalha como professora de violino e fotógrafa. O primeiro filho em comum do casal vai nascer em julho.
E apesar de tudo o que passou, a sua fé em Deus não ficou abalada. O mesmo não se pode dizer em relação às instituições. “Não vou a nenhuma igreja, porque tenho dificuldade em confiar neles, depois de tudo o que o meu pai fez, mas rezo e falo aos filhos sobre Cristo. Acima de tudo acreditamos em Cristo e em Deus, mas não seguimos ninguém nem uma igreja em particular. Rezamos, lemos a Bíblia e é isso.”
Regressar à igreja nem sequer lhe passa pela cabeça: “Nem nos meus piores dias aqui quis voltar para a igreja. A única coisa de que tenho saudades é da minha família, os meus irmãos e irmãs. Gostava que eles saíssem, mas tirando isso, não sinto falta da cultura.”