Melissa Fleming está sempre atenta às histórias mais marcantes de refugiados — sírios, líbios, iemenitas, palestinianos, afegãos — por entre as milhares de pessoas que todos os dias chegam (ou tentam chegar) à Europa. A experiência traumática de Doaa al Zamel no mar Mediterrâneo marcou a porta-voz do Alto Comissariado das Nações Unidas (ACNUR) para os Refugiados como nenhuma outra.
Em 2014, a jovem síria partiu com a família de Daraa, a cidade onde vivia e onde, em fevereiro de 2011, explodiu a contestação ao regime de Bashar Al-Assad. Do Egito, Doaa embarcou com o noivo num barco apinhado com outras 500 pessoas. Morreram quase todas, afogadas ou dilaceradas pelas hélices do barco, depois de um grupo de egipcíos ter abalroado a embarcação. A intenção era mesmo essa — matar toda a gente que seguia a bordo.
Num hotel de Lisboa, a voz de Doaa mal se ouve quando a jovem síria se exprime, em árabe. Aceitou dar o seu testemunho a Melissa Fleming, que o transformou em livro. Uma história que Steven Spielberg e J. J. Abrams vão agora adaptar ao cinema. A jovem síria, hoje com 21 anos, queria voltar a reunir-se com a sua família na Suécia e, pelo caminho “ajudar” a denunciar o drama diário que se vive na costa sul da Europa.
Melissa viveu esse drama enquanto um dos elementos de maior confiança de António Guterres, enquanto Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados. Não poupa elogios ao português, que agora lidera a organização, pelo esforço e dedicação à causa. A nota dissonante neste discurso — e, mesmo essa, muito suave — surge com a ideia de que o ACNUR esperou demasiado tempo para que a União Europeia tomasse este problema em mãos. É para a Europa que Fleming guarda a condenação capital: os responsáveis europeus foram incapazes de lidar com a realidade que lhes bateu à porta e deixaram que o caos se instalasse.
Há indiferença do mundo ocidental relativamente à situação dos refugiados? Foi isso que a levou a escrever o livro?
Melissa: Penso que há um cansaço de compaixão. Também há uma noção de que, quando os refugiados começaram a chegar à Europa, só então houve consciência de que havia uma crise de refugiados no mundo. Antes, era um problema de outros.
E o que mudou?
M: Antes, havia um discurso de boas-vindas e de ajuda. Mas depois acabou. Temo que os populistas de direita comecem a retirar benefícios do facto de os seres humanos sentirem medo do outro.
Isso já acontece na Europa.
M: Sim, eles exploram-no. E por causa disso temos mais muros a ser construídos, políticas mais restritivas que antes dessa chegada. Vemos que há mais financiamento a chegar aos refugiados em países em desenvolvimento, mas não chega.
Há uma passagem muito crua no livro, o momento em que o barco em que Doaa segue com o noivo e outras 500 pessoas é abalroado por outro barco tripulados por egípcios que querem levar todos para o fundo do mediterrâneo. Com tudo o que viu, é possível recuperar dessa experiência?
Doaa: Esta situação mudou-me muito. Certamente não serei a mesma pessoa que era. Isto mudou muitas coisas na minha vida, ao ponto de mudar a forma como encaro a própria vida.
Perdeu o seu noivo nessa viagem. E ao mesmo tempo tem a consciência de que, todos os dias, milhares de pessoas entram para os barcos comandados por traficantes e põem a vida em risco para chegar à Europa. O que diria a essas pessoas, se pudesse enviar-lhes uma mensagem?
D: A minha tragédia é igual à de muitas pessoas fora da Europa. Mas esta é uma tragédia pequena quando comparada com o que se passa todos os dias. Mesmo que lhes dissesse para não subirem para os barcos, não conseguiria impedi-los porque estas são as circunstâncias das vidas delas. A terrível situação que enfrentam é o que as leva a entrar nos barcos e a cruzar o Mediterrâneo. Qualquer coisa que lhes dissesse teria como resposta: “É esta a nossa vida.”
“Uma esperança mais forte do que o mar” é o título do livro. É a esperança ou é o desespero que empurra estes refugiados para o mar?
M: Ambos. A esperança de que venham a ter uma vida melhor significa ter segurança e a oportunidade de recomeçar. Mas é também o desespero — e penso que a Doaa estava a tentar expressar — que leva tanta gente a tomar essa decisão. Uma pessoa não arriscaria a sua vida no Mediterrâneo se sentisse que tem uma oportunidade de reconstruir a vida em segurança onde está. Estas pessoas não estariam naqueles barcos se sentissem que podiam alimentar os filhos. Não há ninguém que escolhesse entrar naqueles barcos se a sua situação não fosse mesmo desesperada.
Por mais objetivo que se seja na descrição desta experiência, alguma vez será possível perceber o risco que se corre e os perigos que existem nesta forma de chegar à Europa?
M: Se lerem o livro, penso que poderão compreender melhor.
Era essa o maior propósito do livro?
M: Era, sim. Se se pegar no livro dedicar-se com tempo a imaginar a dor de deixar o seu país, o sofrimento de perder alguém próximo, o mal das pessoas que cometem homicídios em massa no mar mediterrâneo — matando 500 refugiados, 100 dos quais crianças — se realmente o livro for lido com a consciência de que é uma história de não-ficção, percebe-se. Eu dei o livro a algumas pessoas, que o leram, e toda a gente chorou. [Os realizadores] Steven Spielberg e J. J. Abrams leram-no e acharam que tinham de fazer um filme com esta história. Penso que a história tem a capacidade de fazer as pessoas não pensar “que interessante” mas, de facto, tocar-lhes profundamente.
E partirem para a ação?
M: Esse é outro desejo. A primeira pergunta que muitas pessoas que leram a história me fazem é como estão agora a Doaa e Masa [uma criança que se salvou nos braços de Doaa]. Era isso que queria alcançar. Que as pessoas não se limitassem a dizer que a história as comove mas que fizessem alguma coisa.
Fica a ideia de que o mundo ocidental ficou paralisado com este nível de migração. A Melissa lidou de perto com esta realidade, enquanto porta-voz do Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, António Guterres. Partilha desta perceção?
M: A União Europeia ficou paralisada. Demorou muito tempo a garantir uma presença na Grécia e em Itália e isso deu azo ao caos e a movimentos desregulados [de migrantes na Europa]. E isso deu gás a muitas das políticas preocupantes, a que fossem construídos muros e a narrativas políticas distorcidas. Há quem considere que foi essa realidade que mais força a situações como o Brexit.
E a União Europeia foi incapaz de desmantelar a retórica falaciosa que foi usada contra os refugiados.
M: A União Europeia não estava preparada para isto. Foi um alerta. A União Europeia só começou a prestar a atenção que devia a esta situação quando os refugiados começarem a chegar fisicamente à Europa.
E a seguir?
M: Depois, houve mudanças. Algumas boas, algumas más. Conseguiu-se perceber que é preciso investir muito mais nos países vizinhos de onde partem os refugiados. Síria, Líbano, Jordânia, Turquia, Egito são exemplos de que podemos prestar melhor assistência. Não se pode dizer aos países pobres que este é um problema deles só porque são vizinhos da Síria. Este é um problema internacional e todos precisamos de assumir responsabilidade. A educação das crianças é um ponto fundamental. As famílias que chegam à Europa dizem que estão cá porque não conseguiam pôr os filhos a estudar. É por isso que arriscam a vida, porque querem um futuro para os seus filhos. Sou mãe, consigo perceber isso perfeitamente. Sou obcecada com a educação dos meus filhos. A maior parte dos pais são assim. E, de repente, os políticos europeus perceberam que tinham de investir em escolas. Outra coisa de que os refugiados se queixam é de que não conseguem trabalhar.
Não podem retomar as vidas.
M: Esperamos que vivam numa tenda durante um, dois, três, cinco anos e que não consigam reconstruir as suas vidas? Nunca me esqueço de um homem que conheci no Líbano, um sírio. Ele começou a chorar à minha frente — e não creio que muitos homens sírios chorem à frente de outras pessoas — e disse que tinha um negócio, uma casa e que tomava conta da família, que era alguém com peso na comunidade e que aquilo tinha sido a pior coisa que lhe tinha acontecido na vida. Perguntei-lhe o quê. Ele disse: “Vir a esse centro das Nações Unidas para os Refugiados e pedir ajuda”. Tinha perdido a dignidade e isso foi o pior que lhe aconteceu. Por isso, temos de trabalhar com os governos e encontrar formas de os refugiados poderem retomar as suas vidas.
Os traficantes de pessoas são outro problema. Deixam pessoas para morrer no Mediterrâneo, fazem dinheiro com isso e escapam impunes.
M: Porque há um mercado. Como é que se para esse mercado? Podemos tentar prendê-los, mas não está a resultar. Como é que se corta a procura? Melhorando as condições de vida dos refugiados onde eles estão, apoiar programas de recolocação, como Portugal está a fazer.
A Melissa sublinhou a falta de intervenção da União Europeia no apoio aos refugiados. O que sentiu quando partiu da Síria para o Egito?
D: Quando saí da Síria senti que havia compaixão da parte de muita gente, mas muitas pessoas não sentiam o mesmo. Isso foi o que mais causou impressão. Estava à espera de mais compaixão.
O que significa para si ser refugiada?
D: O mais importante era que as pessoas não olhassem para os refugiados como um número. Que quando olhassem para estas pessoas, percebessem que fugimos da guerra mas somos seres humanos.
Imagino que tenha sido duro reviver aqueles dias que passou à deriva, à espera de apoio.
D: Foi muito duro. Sobretudo porque costumo manter os sentimentos guardados para mim.
Valeu a pena tê-lo feito?
D: Não importa se estou satisfeita ou não. É verdade que estou, mas queria ajudar mais pessoas.
António Guterres lidou com alguns dos anos mais intensos da crise de refugiados. Como foram esses momentos?
M: Ele tornou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados mais forte ao longo desses anos, à medida que o número de refugiados crescia. O nosso trabalho está centrado nos países em desenvolvimento e não na Europa, por isso, ele ficou muito relutante, quando a crise de refugiados chegou à Europa, de colocar recursos no continente.
Era uma inversão da realidade a que estavam habituados.
M: Sim, de certa forma. Ele dizia à União Europeia: “Vão para a Grécia, vocês têm um problema aqui”. E quando percebe que a Europa não estava a responder da forma que era necessária, montou uma operação de larga escala na Grécia. Mas estava muito relutante porque trabalhamos em países que precisam mesmo de nós e pensávamos que a UE teria a riqueza, a capacidade, as equipas necessárias.
Qual foi o principal motivo dessa relutância de Guterres: a sensibilidade do trabalho diplomático?
M: Não, ele sentia que era responsabilidade da Europa, enquanto união, de acudir a um país que enfrentasse uma situação esmagadora como aquela. A UE acabou por fazê-lo, mas o apoio do ACNUR foi bastante necessário. O ACNUR teve de ser bastante flexível e ele tratou de garantir que nos conseguimos adaptar a conflitos que explodem. À medida que o número de refugiados crescia — e isso não é culpa dele –, Guterres foi um fantástico angariador de fundos para o ACNUR. O orçamento cresceu durante os mandatos na ordem dos milhares de milhões de dólares. Ele conseguiu solidificar a confiança dos dadores, convencer os países acolhedores de refugiados a manter as portas abertas — esse foi um dos maiores desafios…
Trabalhou ativamente para esse fim?
M: Foi muito difícil acompanhar o ritmo dele. Estava sempre a viajar para os países de acolhimento, para os países de origem onde havia guerra e para os países dadores que precisavam de continuar a financiar esta missão. Isso exigiu muita energia, muita diplomacia, uma fantástica capacidade de comunicação, que ele tem, para convencer não apenas os governos mas também a opinião pública. Isso requer um grande coração. E ele preocupa-se genuinamente. Foi apaixonado na sua missão de apoiar os refugiados.
Como eram esses contactos no terreno?
M: Quando visitávamos países de acolhimento ele ficava irritado quando o programa tinha um certo número [grande, assinala Melissa com recursos a gestos] de reuniões e outro número [bastante mais pequeno] de tempo com refugiados. Ele dizia-nos: “Não, não, não, não, isso está ao contrário, temos de fazer o inverso!”.
Ainda assim, continuar a faltar uma solução sustentável e duradoura para este problema. Vê isto como uma missão não completada de António Guterres.
M: Ao trabalhar como Alto Comissário para os Refugiados, ele nunca poderá dizer “missão cumprida”. Porque isso significaria um mundo sem refugiados. Mas, como secretário-geral das Nações Unidas, ele pode contribuir para o sucesso dessa missão. Durante a sua liderança, pode trabalhar para evitar e parar os conflitos que estão a deslocar tanta gente. E ele fez disso uma prioridade. É muito difícil, mas é muito importante. É preciso alguém com uma visão de conjunto e não pense apenas nos interesses nacionais, mas antes na paz internacional. Ele tem o conhecimento, a rede de contactos, tem a confiança dos Estados-membros e está comprometido com essa causa.
No livro, questiona-se sobre o porquê de ainda não estar em marcha um programa de recolocação de refugiados de larga escala. Devolvo-lhe a pergunta: a União Europeia ainda não se comprometeu como devia?
M: Não. Comparo este caso com o dos vietnamitas, com o programa de recolocação que ajudou um milhão de vietnamitas em todo o mundo. Porque é que não temos isto para os refugiados sírios, quando estamos perante um dos maiores conflitos do nosso tempo?
Tem uma resposta?
M: Não tenho. Continuamos a trabalhar para isso, pensamos que a melhor solução passa por uma responsabilidade partilhada.
Os EUA acabam de cortar as suas contribuições para as Nações Unidas.
M: Sim, para metade.
Como é que se lida com esta nova posição de Washington relativamente aos refugiados?
M: De certa forma, tentamos dizer que os EUA — tanto republicanos como democratas — sempre apoiaram os refugiados. Há um legado, um história forte e tem havido fortes protestos contra estas políticas. Talvez não da parte dos espetadores da Fox News e dos apoiantes mais convictos de Donald Trump, mas isso tem acontecido no setor empresarial e em algumas comunidades onde menos se esperava.
Então existe pressão pública.
M: Existe pressão para reverter o bloqueio [à entrada de cidadãos de determinados países, que tem merecido resistência por parte dos tribunais norte-americanos] e para que se continue a receber refugiados.
Pensa regressar à Síria?
D: Espero que sim. E espero que todos os sírios possam fazê-lo.
O que era preciso mudar para que isso acontecesse?
D: O regime. E a guerra. A guerra tem de parar.
Alguma vez haverá de novo paz?
D: Certamente. Espero que isso possa acontecer no futuro.