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Num programa em que os políticos costumam ser os protagonistas, o humorista Ricardo Araújo Pereira foi o convidado e defendeu a liberdade de expressão até às últimas consequências, até porque é o seu “ganha-pão”. Em entrevista à Vichyssoise, da Rádio Observador, explicou que não convida pessoas do Chega para o Isto é Gozar com Quem Trabalha simplesmente porque “não quer” e justifica que no entretenimento não tem de seguir as regras da informação. Diz que não se sente responsável por influenciar eleições, pois acredita que as suas graças não são suficientes para mudar sentidos de voto.
[Ouça aqui o programa Vichyssoise desta semana na íntegra:]
Ricardo Araújo Pereira diz que fala o “mínimo do Chega”, mas que enquanto terceira força é incontornável que fale do partido. Acrescenta que “nota-se mais” quando fala de “André Ventura porque ele vai para o Twitter chorar”. Considera-se social-democrata e lembra, sobre os que apontam a sua riqueza, que é de “esquerda”, não é “franciscano”, nem fez nenhum voto de pobreza. Sobre as eleições de domingo deixa uma confissão: “Estou como o Rui Tavares, não sei em quem votar”.
“Não convido o Chega porque não quero”
Começava por lhe perguntar, já falou nisto mas é incontornável porque é algo que lhe apontam de forma recorrente: porque é que não convida o Chega para o Isto é Gozar com Quem Trabalha?
Já dei essa resposta várias vezes e talvez a mais simples e curta seja: porque não quero. E isso, reparem, faz parte do mundo em que a gente vive. Quem apresenta programas de entretenimento, quem os concebe, tem o direito de escolher quem é que convida. A liberdade é isso: é eu convidar quem me apetece e não convidar quem não me apetece. Essa é uma parte importante porque há pessoas que acham que eu devo ser obrigado a fazer uma coisa que não quero. Isso não é liberdade. A questão é que me parece que o Chega é especial. É o único ponto em que eu acredito no André Ventura. Acho que ele, de facto, é diferente dos outros, ele e as pessoas que o rodeiam. Não tenho nenhum problema em convidar pessoas desde o PCP à Iniciativa Liberal. Discordo delas, incluindo daquelas em que costumo votar, com muita intensidade, em vários assuntos. Mas há uma coisa em que eu acho que estamos todos de acordo, que é que a democracia é de facto um sistema simpático e eu não creio que do lado do Chega haja a mesma posição. A minha posição é a seguinte: na primeira parte do nosso programa, eu digo o que me apetece; na segunda parte é diferente, tenho lá uma pessoa e, portanto, não posso convidá-la nem para a hostilizar, que é um espetáculo televisivo mesmo muito feio, nem para a bajular, que também é outra coisa desagradável e que não me passaria pela cabeça. Creio que a segunda parte, se tiver algum mérito, é este: num momento em que há uma polarização tão grande, demonstrar que é possível que duas pessoas que têm posições bastante diferentes sobre vários assuntos possam manter uma conversa cordial em que ainda por cima estão a provocar-se uma à outra. E estão a provocar-se uma à outra dentro de umas balizas que são as da vida civilizada. Às vezes eu posso ir até um pouco mais longe porque tenho do meu lado um facto, que é o de eu estar a fazer perguntas que são piadas.
[Já saiu o quarto episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio e aqui o terceiro episódio]
Aquilo humaniza os políticos e acha que André Ventura não é humanizável?
Acredito que o humanize, mas não tenho nenhum interesse nesse tipo de efeito. Quer dizer, não sei se vou dar-vos uma novidade, mas eles já são humanos antes de lá irem. Sei que é possível que, vistos àquela luz, eles se apresentem aos olhos das pessoas de outra forma. No entanto, devo dizer que eles vão responder a uma entrevista política. Se calhar isto faz com que vocês sorriam, mas as minhas perguntas não são ‘como é que se chamava o seu cão’, ‘o que é que fazia na infância’. Nós vamos falar sobre a atividade política deles, a vida política deles. Ao contrário, muitas vezes acontece que nos meios de comunicação tradicionais, nos espaços informativos, periodicamente há… por exemplo, ainda agora vocês fizeram a playlist dos candidatos. Eu não tenho nenhum interesse em saber que músicas é que eles ouvem, não é para isso que eles lá vão. Portanto, eles vão lá responder a perguntas políticas. Bem sei que são perguntas que são piadas com um ponto de interrogação no fim. Agora, estou a fazer um jogo com eles e eu só jogo esse jogo com quem conhece as regras do jogo e as respeita.
A ERC não ficou muito convencida disso. Até emitiu um parecer em que sugeria que se distribuíssem líderes políticos pelo entretenimento da SIC. O Ricardo na altura até sugeriu que alguns fossem ao “Domingão” ou mesmo aos “Casados à Primeira Vista”. Estava a pensar em alguém?
Qualquer um, eu gostava de ver isso, mas com todos. Repare, quando diz a ERC, num primeiro momento foi a ERC, aqui há tempos, mas agora esta última deliberação veio da CNE [Comissão Nacional de Eleições]. Ora, eu tenho acompanhado agora a CNE por causa disso, vejo-me na obrigação de acompanhar de cada vez que sai uma ata da CNE e vou lá ver. O que tem acontecido é que partidos como o ADN e outros perguntam porque é que, tendo em conta que há uma lei que diz que todas as candidaturas são iguais e devem ser tratadas em termos de igualdade, não estão nos debates eleitorais? É uma pergunta especialmente pertinente nestas eleições porque há partidos com assento parlamentar que são convidados e sem assento parlamentar no Parlamento Europeu que também são. O critério que mantém o ADN, por exemplo, de fora pode ser contestado e, no entanto, a CNE arquiva as queixas, dizendo que não vê que a lei esteja a ser desrespeitada. A tal lei que no meu caso concreto do entretenimento é usada para dizer que há de facto um desequilíbrio. Eu nunca sou instado, quem é instado é a SIC, a resolver esse desequilíbrio convidando-os para outros espaços de entretenimento. É um problema da SIC, não meu. Se outros apresentadores de programas de entretenimento tiverem a vontade de convidar outros candidatos acho ótimo que eles lá vão.
Tem um programa que é líder de audiências. Mesmo não sendo um político, sente a responsabilidade que pode influenciar uma eleição?
Não, não sinto responsabilidade nenhuma. Primeiro, porque a coisa que eu mais prezo na minha profissão é o facto de poder ser um irresponsável. Se eu quisesse ter responsabilidade tinha de ir para outra área. Segundo, não há nenhuma prova que me demonstre isso, não há nada que indique. É uma alegação na verdade extraordinária pensarmos que um programa de entretenimento, um programa humorístico, pode ter um impacto real, por exemplo, numa eleição. É uma alegação extraordinária e creio que por causa disso carece de provas extraordinárias.
Toda a gente se recorda, acho que posso dizer isto, do sketch que fez na altura da discussão sobre o referendo ao aborto, em que parodiava Marcelo Rebelo de Sousa — e isso teve um impacto real.
Bom, resta saber qual foi a dimensão desse impacto. Eu até estou disposto a concordar consigo e dizer que é improvável que não tenha tido impacto nenhum. Mas que impacto é que teve? Recordo que durante esse processo houve vários Prós e Contras, dois ou três, se não me engano, muito longos, com imensos debates, houve campanha eleitoral e artigos nos jornais em que a sociedade portuguesa toda participou. De facto, estive um minuto e cinquenta e cinco segundos com uma peruca na cabeça a dizer “Eu posso fazer, mas é proibido. Bom”. Eu acho improvável que haja uma massa significativa de pessoas que define o seu sentido de voto por causa de um sketch humorístico: “Eu por acaso ia votar, mas achei tanta graça a isto de ele estar a dizer pode fazer, mas é proibido”.
“Quando falo do Ventura nota-se mais porque ele vai para o Twitter chorar”
Posso ajudá-lo num argumento, que é o facto de arrasar o Chega bastantes vezes. Não sei se é o único partido, mas várias vezes é um partido bastante visado e André Ventura em particular. O facto de, apesar disso, o Chega continuar a crescer é a prova de que não tem influência nenhuma?
Creio que sim. Repare, até sou capaz de discordar de si. Falo do Chega o mínimo possível. Isso já foi mais verdade, no tempo em que ele tinha um deputado. Os nossos critérios são diferentes dos jornalísticos, mas alguns são partilhados. O critério da proeminência, por exemplo, nós também o adotamos porque, como é óbvio, é muito mais engraçado um palhaço atirar uma maçã podre à cara do Presidente da República ou à testa do primeiro-ministro do que a de um desgraçado qualquer. Tal como um jornalista, eu também dou mais atenção ao que faz o Governo, os ministros, o primeiro-ministro e o Presidente da República e depois então o líder da oposição e depois os outros partidos, onde está o Chega, que neste momento é a terceira força política. E, por isso, como é óbvio, está mais visível agora. Não quero estragar a vida de ninguém, mas até gostaria que algum académico confirmasse o tempo que dedicamos a cada figura. Não tenho a certeza de que dediquemos ao André Ventura, por exemplo, nem sequer o mesmo tempo que os serviços informativos dedicam. Acho que nós dedicamos menos.
Menos?
Menos, sim. As pessoas dizem ‘pois, estás sempre a falar do Ventura’. Não é verdade. É possível que quando eu falo do Ventura isso se note mais porque ele esperneia, porque vai para o Twitter chorar, por uma série de razões. É até relativamente raro a gente falar no André Ventura. O critério onde o André Ventura entra não é tanto o da proeminência é o da bizarria. Assim como quando o primeiro-ministro se apresenta em público com a braguilha aberta eu dou atenção a isso e vocês não dão — e bem, mas eu dou. Às vezes, o critério da bizarria para mim vale, para vocês não tanto, e o Ventura entra nesse critério. Eu creio que a ideia de que nós damos especial atenção ao Ventura não é verdadeira, antes pelo contrário.
Deixe-me falar agora dos candidatos de esquerda. Quase todos os que vão ao programa mandam-lhe à cara que é rico. Isso é uma coisa que se sente como uma incoerência, ter uma vida bastante confortável e ao mesmo tempo ser, creio eu, por uma maior distribuição da riqueza.
Sim, sou.
Não sei se o Ricardo Salgado entretanto já tratou disso e já não é assim tão rico.
Bom, ele deu-me uma ajuda. Sou de esquerda, não sou franciscano. Há uma diferença entre as duas, eu não fiz voto de pobreza.
Pensei que ia dizer aquela frase, ‘Sou comunista mas não sou parvo’.
Não, não necessariamente, até porque eu não me definiria como comunista. Repare, eu sou um social-democrata no sentido em que o senhor Bernstein era um social-democrata. Eu conheço a canção do Zé Barata Moura sobre a valsa da burguesia tocada bem a compasso pela social-democracia para nos travar o passo. Mas eu acho que a social-democracia é de facto uma espécie de base.
Está mais perto de Olof Palme do que de Álvaro Cunhal?
Sim, sim, exatamente. Embora tenha admiração pelo Álvaro Cunhal, há coisas na personalidade do Álvaro Cunhal que considero arrepiantes. Por exemplo, estou sempre a citar uma passagem na autobiografia de umas memórias que o Carlos Brito escreveu em que ele conta que foram à Hungria e o Álvaro Cunhal foi recebido com honras de chefe de Estado e levaram-no aos melhores sítios e quiseram proporcionar-lhe uma visita muito agradável. A certa altura, estão numa casa de striptease e entra a senhora e começa a tirar a roupa e o Álvaro Cunhal dá um murro na mesa, levanta-se e diz que aquilo é uma exploração do corpo da mulher e que não admite e sai. E o Carlos Brito anota nas memórias ‘eu por acaso estava a gostar’. E eu sinto-me muito mais próximo dessa posição do Carlos Brito do que da posição, digamos, sacerdotal. Eu sou antifanático por natureza e portanto…
Exceto naquele clube que nós sabemos.
Exatamente. Guardo para aí. Na religião, o ser fanático produz resultados muito agradáveis. Na política, a mesma coisa. No desporto, eu gosto mais destes que estão vestidos de vermelho e branco e tu gostas mais daqueles que estão vestidos de verde e branco e está tudo bem. Se mantivermos isso dentro de um determinado controlo, até se consegue sublimar ali as coisas que se faria de outra maneira pior noutros sítios. Já não lembro da pergunta…
A pergunta era se convivia mal com o facto de receber muito dinheiro e depois ter uma postura perante a vida que…
Nem sequer percebo a acusação de hipocrisia no sentido em que eu, de facto, acho que a riqueza devia estar mais bem distribuída e é por isso que voto nos partidos que o defendem. Estaria a ser hipócrita se achasse que a riqueza devia estar mais bem distribuída e depois votasse nos partidos que me beneficiam. Ganho sempre as eleições. Se ganha a direita, pago menos impostos e agradeço ao povo português, se é isso que vocês querem. Se ganha a esquerda, ganha uma visão mais próxima daquela que eu considero que devia ser o modo como a sociedade está organizada. É bastante simples.
Até costuma exibir como cartaz que vota sempre em quem perde.
Bom, isso sim, eu não tenho responsabilidade em nada do que se passou no país até agora. Essa é vossa e das pessoas que votam nos partidos que ganham. Alguém tem de votar neles.
Já praticamente todos os políticos passaram pelo Isto é Gozar com Quem Trabalha. Qual foi o momento mais confrangedor nestas entrevistas?
Deixem-me só voltar atrás um bocadinho. Registo o que disse, que às vezes há políticos de esquerda que vão lá e me acusam e fazem suposições sobre o dinheiro que eu possa ter. Antigamente faziam isso os de direita. Outra coisa que me agrada, devo dizer, é verificar o seguinte: muitas vezes os partidos de esquerda vão lá e dizem que eu não sou suficientemente de esquerda e os partidos de direita vão e dizem que eu sou demasiadamente de esquerda. Acho isso ótimo. Repare que o 25 de Abril também é acusado do mesmo. O 25 de Abril e eu nascemos com 3 dias de intervalo.
Tem que convidar o Nani Moretti para lhe pedir que diga qualquer coisa de esquerda.
Sim, lá está, eu também não diria que acredito que haja alguém, tal como o Moretti diz ao D’Alema, que esteja na televisão a pedir que eu diga coisas de esquerda. Não é o meu trabalho.
João Cotrim Figueiredo sugeriu que acredita que o Ricardo Araújo Pereira votará na IL.
Não. Ele disse que admite que eu talvez não vote, mas já estive mais longe do partido. Não é verdade. Estou tão longe como já estive.
Só quando entregou o IRS é que pensou nisso.
Nem isso. Há um livro de poemas, acho que é do Mário Castrim, em que ele dizia: “Realizo-me quando pago as quotas do partido”. Fui militante do PCP durante breves meses e isso nunca me aconteceu. Também não sou capaz de dizer que me realizo quando pago impostos ou quando preencho o IRS, mas nunca ninguém me há de ouvir queixar dos impostos que pago. Não tenho nenhuma razão para isso. Não sei se conhecem aqueles grandes capitalistas que se esforçam imenso para não pagar impostos e depois dão balúrdios a instituições. Considero que isso não é bem feito porque em democracia é ao Estado que a gente entrega o dinheiro para depois, todos juntos, democraticamente, decidirmos onde é que o dinheiro é aplicado. Não é o Sr. Bill Gates a dizer: ‘A vocês não dou, eu sei melhor onde é que vou investir o meu dinheiro’. Nada contra os impostos, antes pelo contrário — gostava que eles fossem mais bem aplicados.
E sobre o momento mais confrangedor com os políticos?
Houve um bastante confrangedor. Eu estava excitadíssimo quando o ministro das Finanças, Fernando Medina, foi lá porque eu tinha preparado um teatrinho que era o seguinte: eu dizia, ‘Sr. Ministro, já agora não é costume isto, mas eu para a primeira pergunta gostava de citar aqui este livro’. E abria o livro e caíam imensas notas de euro lá de dentro e eu dizia: ‘Ah, então era aqui que eu tinha este 75 mil euros. Já lhe aconteceu isto, um percalço qualquer com dinheiro escondido em livros?’ E estava tão excitado a fazer este teatrinho que só no fim de tudo é que olhei para a cara dele e a cara dele indicou-me que podia ser a primeira vez que alguém se levantava e ia embora. De resto eu, por exemplo, sempre que a doutora Manuela Ferreira Leite vai lá aquilo é um êxito de tal ordem que já lhe já lhe mandei mensagens a dizer: ‘Sra. doutora, é evidente que somos a maior dupla cómica desde o Bucha e o Estica. Portanto, a gente se calhar devia pensar num espetáculo itinerante.
“Ventura, tendo as mãos tão calejadas, sabe avaliar quem são os povos mais trabalhadores”
Vamos falar um bocadinho também sobre liberdade de expressão. Aguiar-Branco esteve bem ou não?
Ainda bem que me fazem essa pergunta porque eu nestas eleições concretas, nestas europeias, estou como o Rui Tavares: não sei em quem é que hei de votar… E uma das razões…
O Francisco Paupério levou o Rui Tavares de cartão que lhe ofereceu?
Levou, levou. Quis levar e nós demos-lhe.
Nós, aliás, temos uma coisa que é a última chamada do dia e ele confessou nesse dia que o Rui Tavares de cartão que lhe ofereceu está na sede do Livre.
Isso é excelente.
Mas estava a dizer que uma das razões para não saber em quem votar…
…a minha questão é a seguinte: eu na direita não voto por uma razão, que é o facto de não ser de direita. E, na esquerda, nestas eleições em concreto, tenho uma dificuldade acrescida que é essa que tem a ver com a liberdade de expressão. Não me sinto representado. Pelo menos eu ouço várias pessoas à esquerda que têm a mesma posição que eu e nenhuma delas está em lugar de destaque neste momento nos partidos que estão no Parlamento. A liberdade de expressão é para mim decisiva, central. Não só por uma questão de princípio porque uma liberdade robusta é essencial para a gente poder dizer que vive numa democracia e também porque é o meu ganha-pão. Sem liberdade de expressão a minha profissão não pode ser desempenhada, pelo menos da maneira como eu a desempenho. Creio que há uma inclinação bastante grande e o que me surpreende é que ela vem de vários sítios para limitar a liberdade de expressão. Há precisamente quatro anos o Ventura escreveu no Twitter que, se o Chega um dia for governo, ofender magistrados e polícias vai dar prisão. Isso significa que eu já estaria preso porque eu já ofendi — não fiz de propósito, mas sei que ofendi porque um magistrado, o Juiz Neto de Moura, fez questão de me dizer na capa do Expresso em 2019.
É a tese da rampa deslizante?
Bom, a rampa deslizante é uma falácia que apontamos às pessoas que dizem ‘bom se a gente permite x acontecerá y’. Não é estranho que eu diga que sinto que há uma inclinação de várias pessoas para que os limites da liberdade de expressão sejam mais estreitos do que são agora e eu creio que isso não é bom. Uma coisa que me atrai na esquerda, sempre achei que isso era simpático, era uma certa insolência. A insolência estava do lado da esquerda. Chocar um certo conservadorismo. Aquela expressão que os ingleses têm de “pearl clutching”, levar a mão ao colar de pérolas e dizer ‘Ai meu Deus, isto não se diz’. De repente, começo a olhar para o lado e a ver várias pessoas do meu quadrante ideológico que estão também a fazer o gesto que antigamente era característico de outro tipo de pessoa. Existem limites que são os seguintes: quando as palavras causam dano substancial, provável e iminente são crime. E todas estas palavras são importantes. O dano ter de ser “substancial” significa que não pode ser apenas: ‘Eu senti-me um bocado ofendido’. O dano tem de ser substancial, tem de ser provável e tem de ser iminente. Por isso é que o Stuart Mill dá aquele exemplo: a gente pode escrever no jornal “Estes mercadores de milho estão a condenar-nos à morte com a sua política de preços”, mas à frente da casa de um mercador de milho, quando estamos liderar uma massa de uma turba com alfaias agrícolas e tochas, não podemos dizer “Este mercador de milho está a matar-nos”. Mas já não estamos nessa antecâmara de termos a turba com foice e este tipo de discurso sobretudo se for feito no Parlamento contra determinadas comunidades, contra determinadas minorias, não pode ser o combustível ou servir de combustível a essa turba. Deixe-me dar-lhe o exemplo concreto do que aconteceu. Ventura disse que o povo turco não era conhecido por ser um dos mais trabalhadores.
Estou a tentar afastar do exemplo concreto para discutir os limites da liberdade de expressão no abstrato.
Muito bem, mas do ponto de vista abstrato acabei de lhe dizer: se as palavras causarem dano substancial provável e iminente. Por isso é que o exemplo concreto me interessa: porque acho muito improvável que alguém possa defender que o Ventura dizer que ‘o povo turco não é conhecido por ser o mais trabalhador do mundo’ cause dano substancial, provável e iminente. Qual é a minha posição? A minha posição é responder a discurso com mais discurso. Não é suprimir o discurso. É os deputados das outras bancadas, os democratas, contraporem aquilo que o Ventura disse. E não era difícil: podiam, por exemplo, ir buscar factos: podiam dizer que a imigração turca, por exemplo, esteve na base da reconstrução da Alemanha no pós-guerra e fez da Alemanha a potência que ela é hoje. Podiam, que seria a hipótese que mais me agradaria, escarnecer do Ventura e dizer que realmente ele tem uma ética de trabalho conhecida de todos porque a sua profissão mais saliente consistia em discutir foras de jogo e penáltis na CMTV. E, portanto, é óbvio que é uma pessoa que, tendo trabalhado tanto, tendo as mãos tão calejadas, sabe avaliar quem são os povos mais trabalhadores e menos. Ou, por exemplo, podiam pedir-lhe os dados nos quais ele assenta aquela afirmação e, não havendo os dados, oferecer-lhe um palito, porque é o tipo de consideração que se faz com um palito na boca. Agora, eu pergunto-lhe: que contraditório é que ouviu?
Houve algum.
Se calhar houve, mas foi completamente abafado pelo que aconteceu a seguir , que foi discutir palavras que o Ventura não disse, mas que, se ele eventualmente disser, gostaríamos de saber o que é que acontece. E, portanto, acho que isso é prestar um mau serviço. É por isso que eu acho que o meu método é melhor, contrapor o que o Ventura disse acho que era bastante mais eficaz do que dizer ‘Senhor professor, este menino pode dizer isto? O que é que vai acontecer, por exemplo, quando estes energúmenos descobrirem figuras de estilo? É possível: há chimpanzés que conseguem. No dia em que ele disser assim: ‘E os turcos, como toda a gente sabe, são grandes trabalhadores’. Vão dizer: ‘Senhor doutor, ele está a ser sarcástico, acho que este menino usou o sarcasmo”. Eu confesso que parece-me muito mais eficaz, muito melhor contrapor, e essa é uma confusão que se faz muitas vezes que é: as palavras dos maus têm muito poder e as nossas não têm nada. Não é verdade. As palavras, todas elas, têm força.
“Convidei o Passos Coelho para o programa e ele não quis ir”
Vamos agora avançar para a fase do Carne ou Peixe, em que tem de escolher uma de duas opções. Preferia Luís Filipe Vieira de novo como Presidente do Benfica ou André Ventura como Presidente da República?
Mas isso não são pratos, isso é ir a um restaurante e apresentarem-nos lixo. Isso é lixo e mais lixo. São ambas repugnantes, mas, a ter de escolher, o mal menor talvez fosse o Luís Filipe Vieira. Veja bem o esforço que eu tenho que fazer para escolher isto.
Se fosse diretor de um jornal, preferia convidar para colunista Carmo Afonso ou Luís Osório?
Vê-se que vocês estiveram com alguma maldade a conceber isto. A Carmo Afonso deve ser mais lida, não? Como diretor de jornal, em princípio optaria pela Carmo Afonso, uma vez que o Luís Osório fechou A Capital, fechou o Rádio Clube Português, enfim, teria medo que ele também fechasse o meu órgão de comunicação social.
Se tivesse que substituir João Miguel Tavares no Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer quem escolheria: Luís Marques Mendes ou Paulo Portas?
Talvez o Portas, até para fazer um favor à SIC.
Não resistiu sequer à ideia de despachar João Miguel Tavares…
A minha suposição é que o João Miguel Tavares sairia porque tinha sido convidado para secretário de Estado ou uma coisa desse tipo. E eu desejar-lhe-ia boa sorte. Mas teria pena que ele saísse, sim. Era melhor o Portas. A SIC assim agradecia porque mantinha o Marques Mendes e passava a contar com o Portas.
Se tivesse de escrever um texto humorístico para outra pessoa interpretar preferia António Costa, que é mais poupado no léxico, ou Passos Coelho, que até tem dotes de barítono?
Preferia o Costa. Devo dizer que nunca tive qualquer contacto com Passos Coelho porque, lá está, ele recusou o nosso convite para ir ao programa. Há bocadinho esqueci-me de dizer: o programa é tão poderoso e faz tanto pelos candidatos que lá vão, e obviamente interfere nas eleições, que há gente que recusa, como é o caso do Passos Coelho. António Costa é capaz de ser mais, apesar de ele me comer as palavras. “Conxional” [Constitucional] e tal.