“Oficiais russos e soldados com experiência ridicularizam Sergei Shoigu pela sua liderança ineficaz e desviada da realidade.” Esta era a descrição que o Ministério da Defesa britânico fazia do ministro da Defesa russo na atualização diária que fez sobre a guerra na Ucrânia a 29 de agosto: “Shoigu tem lutado para superar a reputação de que tem falta de experiência militar, uma vez que passou a maior parte da carreira no setor de construção e no Ministério das Situações de Emergência.”
Sergei Shoigu tem sido, nos últimos anos, um dos principais braços direitos do Presidente russo, Vladimir Putin. No entanto, nem isso está a ser suficiente para conseguir livrar-se das críticas de que tem sido alvo nos últimos meses à frente do Ministério da Defesa, uma das pastas mais importantes atualmente, já que a Rússia está a desencadear uma ofensiva militar na Ucrânia.
Numa altura em que as tropas russas estão a ser derrotadas em Kharkiv — permitindo à Ucrânia recuperar o controlo de várias cidades —, é natural que as críticas ao Ministério da Defesa se adensem. “A derrota russa vai intensificar as críticas dirigidas a Shoigu”, indica o relatório do Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, em sigla inglês) publicado esta segunda-feira, que vai ainda mais longe e fala mesmo num cenário em que “pode haver mudanças de pessoal” na tutela.
O que está a correr mal à Rússia?
A situação no terreno desta segunda-feira continua a não trazer boas notícias para o Kremlin. “As forças ucranianas infligiram uma grande derrota operacional à Rússia”, o que permitiu “reconquistar praticamente todo o oblast de Kharkiv numa rápida contraofensiva”. Mas o território perdido não é a única coisa que Moscovo lamenta. A tomada da cidade de Izyum pelas tropas de Kiev foi uma grande perda estratégica — que terá influência nas próximas fases da invasão.
“A tomada pela Ucrânia de Izyum terminou com a perspetiva de a Rússia conseguir atingir os objetivos a que se propunha no oblast de Donetsk”, sublinha o relatório do ISW, que esclarece que Moscovo — após sair de Kiev em abril — “tinha como objetivo ocupar integralmente Donetsk e Lugansk”, onde, aliás, já foram proclamadas internamente duas repúblicas pró-russas.
Para conseguir ocupar integralmente o oblast de Donetsk, a Rússia tinha de conquistar cidades como Slovyansk, Bakhmut e Kramatorsk, sendo que a estratégia passava por preparar um ataque desde Izyum e Severodonetsk. Ora, com a primeira cidade a ser controlada pela Ucrânia, esse objetivo revela-se impossível. “A perda de Izyum deita por terra o plano inicial da ofensiva russa para esta fase de guerra”, declara o relatório do ISW.
No sul, a situação no terreno também parece não estar a correr mal a Kiev, apesar de os resultados estarem a demorar mais tempo a ser alcançados do que em Kharkiv. Ainda esta segunda-feira, o ministério da Defesa ucraniano anunciou ter conquistado 500 quilómetros quadrados de território nos arredores de Kherson. Além disso, segundo o documento do ISW, a Ucrânia “cortou duas pontes” e “continua a interferir com os esforços russos para manter as cadeias de abastecimento”.
“A pressão ucraniana em Kherson — combinada com a rápida contraofensiva em Kherson — coloca os russos diante de um terrível dilema”, analisa o documento do ISW, que acrescenta que a Moscovo “provavelmente lhe faltam forças de reserva suficientes para completar a formação de uma nova linha defensiva” no norte.
Shoigu como principal culpado pelos fracassos?
O cenário não é favorável, neste momento, para a Rússia e os primeiros sinais de insatisfação começam a surgir. Pelo menos 85 administradores regionais de cidades como Moscovo, São Petersburgo e Kolpino enviaram uma proposta ao Parlamento russo para “exigir a remoção de Vladimir Putin do cargo” — e para terminar a ofensiva na Ucrânia.
As críticas do líder checheno, Ramzan Kadyrov, que criticou a “estratégia” que a Rússia tem seguido na guerra e pediu “mudanças imediatas” no Ministério da Defesa, também servem para colocar pressão no Kremlin. E nos talk shows da televisão estatal, em que se discute a guerra diariamente, o tom das críticas contra a tutela está a aumentar.
Sinalizando que as “pessoas que convenceram Putin de que a operação especial seria rápida e eficaz” e “que não se atacaria a população civil” estavam erradas, o ex-deputado da Duma, Boris Nadezhdin, disse no canal estatal russo que “é absolutamente impossível derrotar a Ucrânia usando os recursos e os métodos de guerra colonial que a Rússia está a usar”, sugerindo mesmo um “acordo de paz para terminar com a guerra”.
Life comes at you fast: pundits on Russian TV realize that their military is failing and their country is in trouble. They are starting to play the blame game. Some of them finally understand that their genocidal denial of the Ukrainian identity isn't working in Russia's favor. pic.twitter.com/jNNn5xifI5
— Julia Davis (@JuliaDavisNews) September 11, 2022
Por sua vez, Sergei Mironov, deputado da Duma, voltou a defender o exército russo e o Kremlin, descartando por completo negociações com o “regime nazi” do Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky. Mas foi rapidamente criticado por Viktor Ianukovytch, um analista político e próximo do círculo de Putin: “Diz-se que tudo está de acordo com o plano, mas ninguém há seis meses pensaria que o plano seria a retirada.”
No meio disto tudo, segundo o Instituto para a Guerra, os “dirigentes russos e bloggers estão a culpar o ministério da Defesa pelos falhanços russos”. Em causa está a “falta de consciência” da escala das derrotas, assim como a preocupação da tutela em “manter a fachada de uma invasão bem sucedida”.
Muitos bloggers ainda vão mais longe e pedem a substituição de Sergei Shoigu, para que haja uma gestão de alguém capaz de fazer face à burocracia militar. E isso, por muito paradoxal que possa ser, interessa ao chefe de Estado russo. “A intensificação de ataques a Shoigu e ao Ministério da Defesa russo protegem Vladimir Putin da responsabilidade de estabelecer metas inatingíveis para a invasão”, clarifica o relatório.
“Putin pode aceitar e até apoiar esses ataques” à reputação de Shoigu, uma vez que “desviam a culpa” do Presidente russo no que concerne aos atuais falhanços da invasão.
Publicamente, a presidência russa nunca culpabilizou diretamente o Ministério da Defesa. Ainda esta segunda-feira, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, garantiu que Vladimir Putin está em “comunicação constante” com Sergei Shoigu e “com todos os líderes militares”: “Pode dizer-se que é durante as 24 horas do dia. É claro que não podia ser de outra forma no decorrer de uma operação militar especial.”
Ainda assim, o porta-voz do Kremlin anunciou que Vladimir Putin adiou “todas as suas reuniões com a liderança do Ministério da Defesa russo e os representantes das indústrias de Defesa em Sochi”. Para o Instituto para o Estudo da Guerra, esta decisão é “bizarra”, tendo em conta a atual “operação militar e a crise industrial que a Rússia enfrenta”. “A contraofensiva em Kharkiv está já a danificar as relações do Kremlin com o Ministério da Defesa”, conclui o documento.
O ataque cardíaco e o desaparecimento (que nunca foi explicado) de Sergei Shoigu
O nome do ministro da Defesa russo esteve envolto, no final de março — numa altura que coincidiu com a retirada das tropas em Kiev —, numa controvérsia que nunca foi completamente clarificada. O antigo ministro-adjunto do Interior ucraniano, Anton Gerashchenko, avançou que Sergei Shoigu teria sofrido um ataque cardíaco, após ouvir uma descompostura do Presidente russo.
“O ataque cardíaco surgiu após ouvir duras acusações de Vladimir Putin” pelo “fracasso total da invasão da Ucrânia”, afirmou Anton Gerashchenko, que referiu que o ministro terá sido hospitalizado na sequência deste episódio — mas terá adotado um nome falso para escondê-lo.
Quinze dias depois de ter estado desaparecido, Sergei Shoigu surgiu num vídeo publicado a presidir a uma reunião de altas patentes militares e a discutir o abastecimento de armas às tropas russas na Ucrânia. Apesar de o vídeo ter demonstrado que o ministro aparentava estar bem, o Kremlin nunca negou categoricamente a informação veiculada pela Ucrânia. E, tal como nesse momento o verdadeiro estado de saúde de Shoigu nunca foi esclarecido, também agora Putin deixa transparecer sinais poucos claros sobre o futuro de um dos membros mais destacados do seu núcleo de poder.