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ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

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Rodrigo Guedes de Carvalho: "A televisão tem sido o bombo da festa de tudo o que é mau"

Vemo-lo todos os dias no Jornal da Noite da SIC, mas Rodrigo Guedes de Carvalho ainda tem surpresas. Uma entrevista sobre música, o disco que está a gravar, os livros, a televisão e o jornalismo.

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Segunda-feira de manhã. Rodrigo Guedes de Carvalho espera-nos à porta dos Nirvana Studios, onde ensaia. Estamos na Estrada Militar de Valejas, perto dos futuros-antigos estúdios da SIC. Tudo parece calmo, mas o conjunto de carros estacionados e o café a dar os primeiros sinais de vida dizem-nos que há uma energia permanente no recinto. Foi aqui que Rodrigo Guedes de Carvalho encontrou o espaço, a energia e a criatividade para se aventurar nos discos.

Começámos a ver a sua cara na RTP no final dos anos 1980. Em 1992 muda-se para a SIC e faz parte da fundação do projeto, onde até hoje se mantém como pivô do Jornal da Noite. Os portugueses habituaram-se aos seus jeitos, ao seu humor, há uma geração que cresceu com Rodrigo Guedes de Carvalho na televisão. Também é escritor de romances (seis), de argumentos de filmes (dois) e já assinou crónicas nas revistas Máxima e TV Mais.

A sua paixão pela música não é recente, mas só começou a surgir publicamente há uns anos. Foi o autor da letra e da música de “Cansada”, tema que escreveu para a APAV com a participação de oito vozes femininas (Aldina Duarte, Ana Bacalhau, Cuca Roseta, Gisela João, Manuela Azevedo, Marta Hugon, Rita Redshoes e Selma Uamusse). E ainda em 2018 anunciou que iria editar um álbum. Estivemos à conversa com Rodrigo Guedes de Carvalho sobre esta sua nova vida, ou melhor, este novo elemento na sua vida que são os Xave, o projeto musical que formou. Oportunidade, também, para falar das muitas vidas que cabem no dia-a-dia de um dos pivôs mais importantes da história da televisão portuguesa, dos seus livros, da sua profissão do outro lado do ecrã e de como vê o seu futuro, num momento em que a SIC muda os seus estúdios para Paço de Arcos e dá início a uma nova etapa.

As notas que recebi sobre este projeto revelam uma história que pouco se conhece sobre si. A música é uma paixão antiga?
Bem vistas as coisas, é a primeira paixão. Andava na escola primária e, como sou o neto mais velho, fui de certa forma o irmão mais novo dos meus tios, que apanharam toda aquela explosão dos anos 1960 e 1970 no que diz respeito à música. O Porto tem uma cena musical muito forte, uma tradição muito forte de música, e apareciam sempre em casa dos meus avós, onde viviam os meus tios, os LPs que tinham acabado de sair no Reino Unido. Eles ouviam aquilo de manhã à noite e eu, criança, cresci a ouvir aquilo. Fiz o caminho de me apaixonar por aquilo, tentar fazer o que faz qualquer miúdo, pôr-se em frente ao espelho a tentar fazer o playback. E nessa altura sonhei ser músico.

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Qual foi o instrumento de escolha?
Quis aprender guitarra. Estamos a falar de finais dos 1960, início dos anos 1970, havia muito pouca coisa no Porto. E não só se conseguiu arranjar uma guitarra clássica, como uma professora velhinha, que já era aposentada do Conservatório de Música do Porto. Só que aquilo era uma linha muito dura de guitarra clássica, de solfejo, de pauta, e eu até me estava a sair bem, só que ela era extremamente exigente, muito dura e as aulas começaram a tornar-se um martírio total. Houve uma altura em que eu não só desisti, como com uma grande raiva parti a guitarra e jurei que nunca mais tocaria. Depois, não voltei a tocar guitarra durante décadas e décadas, porque se meteu o resto da vida.

O que é que se ouvia no Porto nessa altura?
Quando olho para trás vejo que chegava basicamente tudo. Um dos grandes amigos do meu tio Miguel é o Rui Veloso. O Rui Veloso andou literalmente comigo ao colo, eu era criança quando conheci o Rui Veloso, ele fazia parte do grupo de amigos do meu tio. E eu sei que eles tinham acesso a tudo, Led Zeppelin, Beatles, Rolling Stones, Supertramp, Steppenwolf. Por via de amizades dos meus pais, havia muita gente nossa amiga que trabalhava na TAP, portanto, eram pessoas que iam a Londres muitas vezes. Um dos pedidos que se fazia era trazer para o Porto o que saía em vinil. Lembro-me que ouvi na altura todos estes discos que iam saindo.

"Houve uma altura em que eu não só desisti, como com uma grande raiva parti a guitarra e jurei que nunca mais tocaria. Depois, não voltei a tocar guitarra durante décadas e décadas, porque se meteu o resto da vida."

Salto para o presente: como renasceu o interesse pela música?
Tem a ver, de alguma forma, com esta bateria que está aqui. Tive o meu primeiro filho em 1991, tinha 27 anos, hoje tem ele 27 anos. O meu filho é extremamente inteligente, descontando o facto de eu ser o pai dele, mas é um tipo bestialmente inteligente e com grande sentido de humor. Mas na escola nunca teve o aproveitamento que poderia ter tido em relação àquilo que ele vale ou poderia valer. A certa altura, quando chegou o momento das grandes decisões, que curso é que ia tirar, ele anunciou-nos a mim e à mãe que queria ser baterista, só pensava em bateria, na música. Quando era adolescente tínhamos-lhe dado uma primeira bateria, uma digital. E isto forçou-me a uma viagem interior, ou seja, por um lado fiz o discurso normal do pai, que tens de ter um emprego sério, porque um tipo sabe que viver da música, sobretudo em Portugal, é complicado, mas perante a paixão que eu sentia nele, dei por mim a confessar-lhe que eu próprio, um dia, quis ser músico. E disse que percebia essa paixão e que, assim sendo, vou apoiá-la.

O bichinho começou a crescer, imagino.
Isso levou-me a uma viagem interior, no meio desta confusão toda que foi a minha vida, ainda tenho isto da música mal resolvido. Neste processo, tentei regressar ao meu instrumento de origem, a guitarra, só que aconteceu uma coisa terrível: perdi a destreza, a memória muscular. Olho para uma guitarra e sei perfeitamente onde vou buscar o dó sustenido e o si bemol, sei isso tudo, só que perdi a destreza e não conseguia tocar. Fiquei com uma certa frustração nesse regresso à guitarra. Paralelamente, acontece uma coisa engraçada: há uma piano em minha casa, um daqueles digitais da Roland, que está lá porque a minha filha a dada altura quis aprender piano e falar francês. Quando se verificou que ela desistiu de aprender piano e que eu ia ficar com um mono em casa, eu e a minha mulher pensámos: vamos vender o piano, não está aqui a fazer nada. Por duas ocasiões pus o piano à venda, creio que no OLX. Tive interessados no piano, o piano esteve vendido, esteve combinado um dia para o comprador ir buscar o piano e, por duas vezes, no dia em que era suposto irem buscar, roeram-me a corda. O negócio foi por água abaixo.

Sendo figura pública, não é estranho para si vender objetos no OLX?
Sou figura pública, mas também sou um cidadão normal. No OLX punha o meu número de telefone e Rodrigo Carvalho, não era necessariamente eu o Rodrigo Guedes Carvalho. Só tentei vender o piano e vendi antes disso uma prancha de surf. Posso dizer que o negócio correu bem, combinámos um encontro, nas Amoreiras, e só no momento em que estou a entregar a prancha de surf é que o comprador reparou que eu sou da televisão. E foi tranquilo. Isso não tem de ser um peso na minha vida, faço questão de fazer uma vida de cidadão normal. Este piano foi engraçado, porque parecia que queria ficar lá em casa.

E decidiu experimentar o piano?
Lembro-me perfeitamente, foi num fim de semana, a minha mulher estava a trabalhar, eu estava em casa, a ver um qualquer jogo de futebol na televisão. Olhei para o piano e reparei que nunca tinha pensado no piano. E pensei numa das malhas da minha infância, o “Let It Be”, dos Beatles. Sabendo eu os acordes daquilo na guitarra, dó, sol, lá menor, fá. Sentei-me ao piano, não sabia nada aquilo, mas tentei ir buscar as notas que eu conheço da guitarra. Onde é que está o mi, lá, ré, sol, si, mi, aqui no piano? Assim que as encontrei no piano, se está aqui, a quarta está aqui, a quinta aqui, comecei tropegamente a tocar no piano. Tornei-me num autodidata do piano, não se pode dizer que toque piano, mas consigo animar um serão de amigos.

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Foi muito tempo sem tocar instrumentos.
Foram trinta e tal anos, quase quarenta.

E ainda se lembrava de tudo?
Há coisas que nos acontecem na infância, adolescência, costumo dizer isto a alunos de comunicação social que dizem que só se aprende teoria, aquilo não serve para nada. São coisas que ficam entranhadas em nós e que um dia à frente na vida fazem sentido. Acho que o curso de comunicação social, o que eu tive, era muito teórico, não tive nada de prático, mas tive uma entrada no mundo da filosofia contemporânea, que na altura me parecia uma seca, mas veio a verificar-se que é um excelente exercício mental para a forma como analisamos a vida e as coisas. Há coisas que não percebemos na altura, mas que ficam em nós. Em relação à música, reparei que tudo o que tinha aprendido de teoria musical tinha ficado cá dentro. Quando ataco o piano, sem saber tocar piano, quando começo a experimentar, é a lógica do que eu sabia que me ajudou.

Qual o seu papel nos Xave?
O meu papel nos Xave é primordial. Comecei a arranjar piano, a ter prazer com dois amigos meus que tocam guitarra, a fazer umas jam sessions e depois com o meu filho na bateria. Começámos por fazer covers, AC/DC, Supertramp, Deep Purple, só pelo prazer de tocar. Um dia levanto-me — eu levanto-me muito cedo — fui para o piano, ia trabalhar uma malha qualquer, não me lembro qual, mas vinha com uma melodia qualquer, ocorreu-me durante o sono. Tento reproduzir o que tinha na cabeça no piano e lá me foi saindo. À medida que toco sai-me um murmúrio de voz e com isso vem uma letra. E do nada tinha composto uma canção. Fiquei entusiasmadíssimo. Nunca me tinha visto como compositor, mas comecei a tocar este material original com os meus amigos.

Isto foi quando?
Foi pouco antes dos meus 50 anos, há uns cinco anos. Há uma coisa que percebi desde cedo: eu não tenho voz para cantar. Sei cantar, sei dar uma ideia do que vocalizo, mas não tenho a capacidade técnica para cantar profissionalmente. E pensei que uma coisa engraçada era ter alguém a cantar. Desafiei uma colega nossa, a Débora Henriques, que trabalha em política na SIC, porque sabia que ela cantava. Desafiei-a, ela veio, cheia de entusiasmo. Ela canta muito bem, mas desde cedo todos entendemos que para um nível profissional seria muito complicado. E nessa altura percebi que tinha dois caminhos: ou fazia um canal de YouTube com uns vídeos engraçados, da banda; ou teria de chegar ao nível dos músicos profissionais. Seguiu-se um processo em que experimentei mais duas vozes, mas era a mesma coisa da Débora, cantavam bem mas não chegavam ao nível do espectáculo, do concerto. Cheguei a desistir dessa ideia, porque não tinha nenhuma voz. Houve uma altura que me sugeriram convidar cantores convidados para cantar as tuas músicas, é um conceito de disco, chamas a Rita Redshoes, a Ana Bacalhau, a Manuela Azevedo, o Samuel Úria…

"Sou figura pública, mas também sou um cidadão normal. No OLX punha o meu número de telefone e Rodrigo Carvalho, não era necessariamente eu o Rodrigo Guedes Carvalho. Só tentei vender o piano e vendi antes disso uma prancha de surf. Posso dizer que o negócio correu bem, combinámos um encontro, nas Amoreiras, e só no momento em que estou a entregar a prancha de surf é que o comprador reparou que eu sou da televisão. E foi tranquilo."

Porque é que não foi para a frente com essa ideia?
Acho que iria tirar alguma identidade ao projeto. O cantor, com toda a sua boa vontade, ia à sua vida, à sua carreira e eu, no fundo, não ficaria com uma coisa minha. Um belo dia, era o aniversário da minha sogra, ela adora fado, mas eu e a Teresa [Dimas, também jornalista na SIC] apercebemo-nos de que ela nunca tinha ido a uma casa de fados. E pensámos que seria uma prenda ideal. Como não sabíamos onde ir, recorremos a uma colega da SIC, a Joana Costa de Sousa, tínhamos ouvido dizer que a irmã dela cantava fado. A irmã arranjou-nos uma mesa numa casa de fados e ela iria cantar nessa noite. Estava um bocadinho fatigado, isto foi a seguir ao “Jornal da Noite”, estava com um bocadinho de falta de atenção. E quando a Isabelinha [Isabel Costa de Sousa] começou a cantar houve um clique. Eu não componho fado e ela estava a cantar fado, mas houve qualquer coisa na voz dela que me fascinou: “Isto é muito o que eu imagino nas minhas músicas”. Vim-me embora e fiquei a pensar naquilo.

Foi aí que encontrou a sua voz?
Troquei umas mensagens com a Isabelinha, perguntei-lhe se ela queria ouvir uns originais. E tivemos um primeiro encontro onde houve um clique imediato. Ela começa a ouvir as músicas, a adorar as letras, as melodias. E viemos para este estúdio tentar compor novo material.

Já tinha encontrado os restantes músicos?
Não. Tinha de arranjar músicos profissionais para pegarem na música que escrevi e tocarem-na. Foi assim que chegámos ao Ruben Alves. Eu conhecia-o de nome, mas não tinha bem a noção de que ele tocava com o Rui Veloso, a Carminho, e fiquei constrangido, o que é que o Ruben Alves vai dizer da minha música? E deu-se o segundo clique, que foi ter uma pessoa profissional, que toca com toda a gente, a dizer que o que tenho aqui é muito bom. Disse que gostava de entrar connosco nesta aventura, de produzir, fazer os arranjos, encontrar os músicos. E, de repente, ficámos com uma banda.

E discos?
Um primeiro single será o anúncio do álbum que virá no final do Março. Até lá, como não temos obrigação com nenhuma editora, a nossa ideia é lançar mais singles, mais dois ou três, para reforçar a comunicação do projeto.

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E vão dar concertos ao vivo?
Sim. Queria criar um conceito em que não estou no palco, fisicamente não faço parte do espectáculo. Estou a tentar criar um conceito de espectáculo em que eu esteja presente através de voz-off ou através de pequenos vídeos. Gostaria de criar um live concept, que tivesse algumas respirações, em que a música pára, em que se ouve a minha voz, a explicar como vem aquela música que vem a seguir, ou uma ambiência poética através do vídeo e que fosse tudo interligado.

“Não tenho aquela visão poética do escritor ou do músico que funciona às quatro da manhã”

Há pouco falou na sua rotina diária. Como é que a música tem espaço? Por exemplo, estamos aqui no estúdio, porque é que estamos aqui hoje?
Esta é a toca do lobo. Também cheguei aqui através do meu filho. A certa altura, eu e os meus amigos queríamos fazer umas gravações melhorzinhas e começámos a ir para estúdio, a alugar estúdios. Fomos ao Upbeat em Campo de Ourique, ao Crossover, em Linda-a-Velha. Os estúdios têm um problema, é preciso ter marcação, nem toda a gente pode no dia em que o estúdio pode. E depois é preciso transportar os instrumentos. Ainda assim, fomos fazendo as coisas, mas sonhávamos em ter um espaço nosso. O meu filho, que queria ter a sua bateria acústica, vive com a mãe e chegaram à conclusão de que não seria possível ter uma bateria acústica numa casa no centro de Lisboa. Ele começou a informar-se sobre estúdios e descobriu os Nirvana Studios. Reparei que era perto da SIC e vim cá espreitar. Entrei aqui e comecei a perceber o que era isto, isto é uma comunidade musical cheia de estúdios. Na altura falei com a responsável, falei no meu filho, mas também comecei a pensar se haveria uma sala maior onde pudesse ter guitarras, piano. Havia esta sala disponível, falei com os meus amigos e ficaram entusiasmados: é algo que está disponível 365 dias por ano. Para mim é o ideal. Foi aqui que comecei a trabalhar com a serenidade de que este espaço está sempre disponível para mim, é uma segunda casa, um refúgio.

Vem para aqui regularmente?
Sempre que posso. Quando foi a época de maior trabalho com a Isabelinha, vínhamos para aqui todos os dias. Trabalhámos muito aqui.

Isso exige muita disciplina.
Para mim a disciplina é uma coisa muito simples: eu tenho de ver, amanhã, que horas tenho de dar à SIC por obrigação profissional. Geralmente é sempre o mesmo horário, da uma até ao final do “Jornal da Noite”. Felizmente, nesta altura já tenho um estatuto que me permite não ter de cumprir horários ao minuto. Ou seja, é a parte da tarde, uma vez que à noite não funciono. Sobra a manhã. Como sempre fui um tipo muito matinal, é uma questão de rentabilizar a manhã. Isto não começou agora com a música, todos os meus livros foram escritos assim.

Quando é que começam as manhãs?
Seis e meia, sete, por aí. Há quinze anos que tenho cães e eles também obrigam a essa disciplina: são um pretexto para sair da cama e começar o dia. Sou muito matinal, funciono muito de manhã. Não tenho aquela visão poética do escritor ou do músico que funciona às quatro da manhã. Não, isso para mim não funciona. Escrevi os meus livros todos entre as sete da manhã e o meio-dia, cinco horas por dia. E na música foi a mesma coisa. Por vezes a Isabelinha não poderia vir e eu vinha para cá afinar melhor uma música. É uma questão de disciplina, mas que eu cumpro com o maior prazer.

"Vivi os anos 1980 todos em Lisboa, o Frágil, o Bairro Alto, o boom musical dos Heróis do Mar… tudo estava a acontecer em Lisboa. Foram anos absolutamente loucos, que passaram a correr, numa festa constante de copos, amigos, música, convívio."

Há a disciplina, certo. Escreve de manhã, compõe música de manhã, mas há um limite. Há um momento em que tem de terminar e vai para o seu trabalho. Como é que lida com isso?
Lido bem, porque faz parte do processo. Partindo do princípio de que em momento nenhum escreverei um romance inteiro entre as sete e o meio-dia, a partir daí relaxo, sei sempre que terá de haver outro dia, outro dia e outro dia. Isso é bom, porque chegamos todos os dias de forma diferente. Há dias em que me sento às sete da manhã e produzo dez páginas que me saem muito bem e vou relê-las e nem lhes mexo. E outros em que faço uma página, está uma bosta e acabo por deitar para o lixo. A produção é sempre desigual. Agora, como vários escritores defenderam, quando a musa chegar, tens de estar a trabalhar, tens de estar lá no sítio, tens de estar lá sentado.

Acaba, vai para o seu trabalho, diz que à noite não faz nada. Mas nunca faz nada? Imagine que teve uma ideia qualquer, guarda para a manhã seguinte?
Sim, tenho esta invenção maravilhosa que é o iPhone, claro que já tive ideias, quer para os livros, quer para as músicas… até durante o dia na SIC. O que faço é dizer, gravar no dictafone qual é a ideia. Porque já me aconteceu não gravar, pensar que me vou lembrar, e esqueço-me. Ou até melodias. Agora não as trabalho nesse momento. Pensei que a pergunta era sobre a mudança de chip…

Isso eu acho que é treino.
É treino. É um treino cerebral. É uma coisa que acho inata em mim. Que se vê nas mais pequenas coisas, eu consigo estar… imagina, a entrevistar uma pessoa e a receber ordens da régie no auricular. E consigo perceber as duas coisas. A minha manhã é desbunda total, não há limites, é criatividade, fantasia, o que eu quiser. A parte da tarde da SIC é o mundo real, das notícias, do que realmente aconteceu, os meus deveres de jornalista. Mas eu consigo perfeitamente tirar uma pen e meter outra. Felizmente tenho essa facilidade.

Quando disse treino não quis que soasse a algo mecânico, mas natural.
É o tempo. A idade. Costuma dizer-se que o diabo não é esperto porque é muito inteligente, é esperto porque é velho. E, de facto, a idade traz, além de constrangimentos físicos chatos, uma enorme serenidade e uma enorme experiência. Por exemplo, eu dou formação a jovens pivôs, quando estão a começar, e há uma parte que é frustrante para eles, que é, OK, já te ensinei isto, ensinei-te aqueloutro, agora há uma parte que não te posso ensinar, que é o tempo, o tempo que vai passar por ti, a experiência que vai passar por ti: repetição, repetição, repetição. É isso que te vai tornar forte, mas isso não te posso dar, vais ter de ser tu a viver. Já estou aqui há muitos anos e habituei-me a compartimentar muito bem a minha cabeça.

A criatividade, fantasia das manhãs, nunca é interrompida pelo mundo real? Ou seja, pelo trabalho…
Claro.

Porque não controla as notícias.
Em tantos anos, já aconteceu estar a escrever um livro, ligarem-me da SIC, era preciso ir para lá porque aconteceu isto ou aqueloutro. Isso felizmente é a exceção. Na minha vida, a SIC é absolutamente prioritária.

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Queria completar a pergunta com isto: na manhã está concentrado a escrever ou com um olho no que se está a passar?
Estou concentrado a escrever. Se acontecer alguma coisa no mundo exterior que vai pedir a minha atenção, alguém vai ter de me ligar. Isso aí já é muito complicado, eu estar a escrever uma cena dramática qualquer, enquanto estou a ver no Facebook se o Marcelo Rebelo de Sousa fez não sei o quê, isso não dá. Fecho-me do mundo, mergulho completamente, dedico-me só à página, se estou aqui dedico-me só às teclas. Mas estou com o telemóvel ligado, como é óbvio, se o mundo exterior precisar de ter a minha opção.

“Fui engolido por uma máquina, por uma profissão, que acaba por me escolher”

Já publica romances desde o início da década de 1990 [Daqui a Nada, Contexto, 1992]. De onde veio o desejo de escrever romances?
A música começou e acabou muito cedo para mim. Este período em que aprendi guitarra, parti a guitarra e jurei que nunca mais tocava a guitarra, foi ali qualquer coisa entre os sete e os doze anos. Entre os sete e os doze anos não estava nem aí, nos livros. Mas o meu avô lia muito, tinha uma ótima biblioteca e foi através de mexer nos livros dele que comecei a chegar à literatura. Ocorreu-me uma coisa muito simples, que foi perceber o impacto que aquilo tinha em mim. Lembro-me que o livro que mais me impactou… caramba, isto são só palavras escritas num papel, como é que provocam tantas sensações? Porque o cinema e a música têm outras armas. A escrita só tem as letrinhas no papel. Li o Servidão Humana, do Somerset Maugham, e dei por mim a sentir um asco enorme por aquela mulher, pelas tropelias que ela fazia ao médico e a maldade dela. E pensei: um tipo ser capaz de provocar estas sensações, só pelo acto de contar uma história… Fui lendo coisas mais densas, que me diziam mais. Na adolescência comecei a arriscar uns poemas, mas umas coisas incipientes.

Quando é que se aventura no romance?
Aos dezanove anos, aconteceu o que me aconteceu com a música, que é querer fazer parte desse mundo. O primeiro exercício que fiz foi pensar se conseguia montar um romance, se teria a respiração de um romance. A poesia percebi que iria ser sempre uma coisinha pequenina e medíocre; o conto não me interessava muito; e o romance, como era o que lia mais, pensei, porque é que não escrevo um romance? E comecei a montar uma história, com vinte anos, que se chamou “Daqui a Nada”.

E o que o motivou a mostrar a um editor?
Nesta altura ainda vivia no Porto, imediatamente a seguir venho para Lisboa. E em Lisboa inicio aquilo a que eu chamo os anos loucos, vivi em Lisboa um grande boom da noite lisboeta, os 1980s, vivi os anos 1980 todos em Lisboa, o Frágil, o Bairro Alto, o boom musical dos Heróis do Mar… tudo estava a acontecer em Lisboa. Foram anos absolutamente loucos, que passaram a correr, numa festa constante de copos, amigos, música, convívio. Eu venho para Comunicação Social mas não pensava em ser jornalista, vim para Comunicação Social percebendo que aquilo daria saída para publicidade, que era o que eu queria fazer. Eu queria jogar com a criatividade, imaginação, o papel em branco.

"Queria brincar com as palavras, queria ser copywriter de publicidade. Concorri a estágios em duas majors e não obtive resposta. Ao mesmo tempo, li num placard na faculdade que estavam abertas as inscrições para um centro de formação da RTP."

Ambas as atividades impactam as pessoas pela escrita.
Eu acredito nisso. Há quem menorize a publicidade, eu acho que a publicidade é uma arte, não tem a ver com o produto que se está a vender, mas com a forma de levar as pessoas a esse produto. Queria brincar com as palavras, queria ser copywriter de publicidade. Concorri a estágios em duas majors e não obtive resposta. Ao mesmo tempo, li num placard na faculdade que estavam abertas as inscrições para um centro de formação da RTP. Um tipo está a acabar o curso e vai a todas, tentas todos os caminhos. A questão da RTP, eu fui para lá, fui fazer o curso enquanto esperava por outras respostas, e fui engolido pela televisão. Porque me saí bem nesse curso que fiz com a Cândida Pinto, foi aí que a conheci. Recebi um convite para ficar a recibos verdes na RTP. Quando comecei a trabalhar na RTP, ainda como repórter, passados uns meses já estava no ecrã. Fui engolido por uma máquina, por uma profissão, que acaba por me escolher, quando eu nem estava nem aí.

Porque acha que isso aconteceu?
Não me interrogo muito porque é que as coisas aconteceram, as coisas tiveram que acontecer.

Mas como é que convenceu as pessoas de que era muito bom a fazer aquilo?
Eu não era muito bom a fazer aquilo. Agora, estamos a falar de 1986, não havia a quantidade de candidatos de comunicação social que há hoje, mas as redações já começavam a pensar num certo refrescamento. Eu fui para a RTP, mas estamos a falar do período do Independente, do Expresso com uma força brutal. Os anos 1980, do Cavaquismo, quando há aquele tipo de poder, é normal que a comunicação social se fortaleça. Acho que dei nas vistas porque faço bem televisão. Reparei que tinha skills para aquilo. É como quando não estás a pensar jogar golfe, um dia vais com um amigo por piada e descobres que tens jeito para o golfe. E foi o que me aconteceu com a televisão. Comecei a dar logo nas vistas pela qualidade do texto da reportagem. Alguém percebeu que eu tinha jeito e potencial para aquilo.

E o romance?
Continuava sentado em casa. Mas estava em Lisboa, conheço as pessoas, já saí do mundo do Porto, onde só conhecia amigos e família, tinha de dar isto a um profissional. Nem que ele me diga que isto é uma grande bosta. Tinha escrito o livro com vinte anos, mas só em 1992, quase com trinta…

Quando ia para a SIC?
Ainda estava na RTP quando entreguei o romance. Mas uma coisa não tem a ver com a outra. Eu é que precisava de dar o livro a um profissional. Vivia na altura na Estefânia, foi das primeiras casas que tive, uma casa pequenina. Fui às Páginas Amarelas, reparei que havia uma editora na rua, que era a Contexto. Nunca tinha ouvido falar e fiz o normal, deixei o meu manuscrito na receção, com o meu telefone. Passado um mês, dois meses, fui contactado pelo Manuel de Brito a dizer que queria editar o meu romance, era muito bom. O romance foi editado com exposição zero, não teve qualquer relevância o seu lançamento, ainda não havia os grandes espaços comerciais que há hoje, que apostam nas imagens e nos posters. O livro lá foi para as livrarias onde fez uma carreira muito medíocre de vendas e impacto, mas teve duas boas críticas nos jornais.

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E dá-se o início da SIC.
Foi uma altura brutal, em que estávamos a lutar pela nossa sobrevivência. O Rangel disse-nos isso, lembro-me de sair da RTP com tipos da RTP a dizer “daqui a seis meses isso já faliu, estavas aqui tão bem na RTP”. Tivemos de batalhar muito, afirmarmo-nos no mercado, e isso implicou um tempo e uma dedicação absolutamente exclusivas. No primeiro ano todo só tínhamos uma folga por semana. Entrei nessa vertigem, no pleno da minha energia, com a ideia do jornalismo e da diferença. E quando dás por ti, passaram-se dez anos, dez anos em que não escrevi. E houve uma altura em que comecei a ter saudades. A realidade não me chegava, precisava de criar a minha própria realidade. E voltei a criar. Escolhi o dia, como sempre escolho o dia que começo a escrever, e a partir daí escrevo todos os dias. E é aí que nasce, treze anos depois, A Casa Quieta [Dom Quixote, 2005]. A paixão da escrita vem em força e faço três livros em três anos: A Casa Quieta, Mulher Em Branco [Dom Quixote, 2006] e Canário [Dom Quixote, 2007].

E segue-se mais uma paragem de dez anos nos romances.
Fui convidado para a direção de informação da SIC. A direção de um órgão da comunicação social, com o peso da SIC, é uma coisa brutal em termos de trabalho. As pessoas continuaram a ver-me no ecrã, mas com tudo o que acontecia fora do ecrã, deixei de ter tempo. Tens de estar disponível 24 horas para ser diretor, tomar decisões. Até que saí da direção e voltei aos livros, mais uma vez cheio de saudades, com o Pianista de Hotel [Dom Quixote, 2017] e o Jogos de Raiva [Dom Quixote, 2018]. Agora não quero estar tanto tempo parado, mas neste ano quero concentrar-me na aventura da música. Se me perguntares pelo plano ideal, o ideal era um ano um livro, um ano um CD.

O cinema não entra aí?
O cinema foi das maiores frustrações da minha vida. Na literatura estou sozinho com o meu computador, faço send para a minha editora e está feito. A música é uma máquina trituradora brutal, em que preciso de muita gente, é muito desgastante. O cinema em Portugal tem outro problema. Há dois argumentos meus que foram feitos [“Coisa Ruim” e “Entre Os Dedos”], mas tenho outros três feitos, que foram escritos, que existem e andaram por aí, estão em gavetas de concursos. Toda essa dificuldade de se fazer cinema em Portugal levou-me a um certo cansaço.

“Continuo deontologicamente inatacável”

Falando agora da “vida real”. É pivô de televisão há três décadas. O que sente que tem mudado no seu trabalho, na televisão e no modo como faz televisão?
Só posso falar do meu trabalho, ao fim de trinta e tal anos acho que vou tendo idade e estatuto para ser mais uma personalidade do que um jornalista. E não pensei nisto de forma racional ou estratégica. Personalidade neste sentido: que a minha personalidade possa transparecer mais no ecrã sem que isso de alguma forma belisque os deveres a que estou obrigado pela minha profissão de jornalista. Sem nunca cruzar linhas vermelhas de falta de objetividade, acho que fui adquirindo uma pose que vai dando às pessoas mais noção da pessoa que sou, do cidadão que sou, mais do que um mero robô mecânico que está ali a ler notícias. Perante isso, já me expus a mais situações em que se notou que eu condenava de alguma forma o que acabou de ser visto, como se notou que eu me ria, ou era sarcástico com algo. Nunca passei nenhuma linha vermelha, claro que há momentos de que as pessoas gostaram mais e outras menos, mas continuo deontologicamente inatacável. Agora vou começar uma carreira musical e a Isabelinha viu-me toda a sua vida no ecrã…

"Lanças no Observador uma primeira mão, o Correio da Manhã mete, a TSF mete, o Público mete, a SIC mete. E achas sinceramente que hoje a malta está muito interessada, ao ver aquilo uma hora depois, em saber se o Observador deu a notícia um minuto antes do Público? Estão-se a marimbar."

Há pouco estava a pensar nisso, quando falava quando começou na RTP. Vejo-o na televisão desde que me lembro de ver televisão.
Muitos de vocês cresceram comigo e eu cresci convosco. Faço parte da família. As pessoas já me vão permitindo, com os anos que este tipo tem, de vez em quando tem o seu desabafo. Acho que isso de alguma forma me humaniza.

E talvez o público também precise disso.
Uma identidade, precisamos de sentir uma identidade com o que estamos a ver. Muitas vezes é isso, sentir que eu e o espectador estamos a sentir a mesma coisa. E há um outro respeito, que é o respeito pelo que ambos acabámos de ver. Uma das coisas que me enerva muito nos pivôs, que é no fim de uma peça de teor X ele estar com uma cara completamente diferente. Acho isso um desrespeito.

Pegando na sua posição como pivô, com um horário fixo, alguma vez sentiu o seu trabalho mudar com a presença de tantos canais de notícias de 24 horas, até sendo um deles da SIC? A importância do seu papel mantém-se, aquele horário ainda é o mais importante para dar notícias?
Não senti mudar por isto: esse espaço entre as oito e as nove e meia será sempre o prime time. A questão dos canais de notícias de 24 horas, que no fundo é uma espécie de rádio em televisão, não belisca o Jornal da Noite se continuarmos a pensá-lo, e bem, não como uma edição das oito da SIC Notícias, mas como um programa de informação. Se vires a SIC Notícias, às cinco há uma notícias, às seis há o desenvolvimento da notícia, às sete atualiza a das seis. O Jornal da Noite iria para o ar e seria a atualização das sete. Não é isso. Tem a missão de programa de informação do dia, ou das últimas 24 horas, desde que terminou o do dia anterior até ao início daquele Jornal, temos a obrigação de dar a súmula de informação de um dia inteiro. Há pessoas que só chegam à informação às oito, e sentam-se em frente ao Jornal da Noite e querem saber o que aconteceu neste dia no país e no mundo. Vamos dar-vos o que mais de relevante aconteceu durante o dia. Essa missão de um jornal de prime time, de dar as notícias do dia e não da hora, isso mantém-se, e acho que as pessoas gostam disso.

Mas não tem medo que o excesso de notícias ou dessas atualizações belisque o papel do prime time?
Não, porque continua a haver muitas pessoas que continuam a escolher as oito para se informarem. Ou sabem que às oito vão ouvir um assunto que já ouviram falar, mas querem saber como vai ser tratado no Jornal da Noite. A conversa da “primeira mão” era importante quando havia jornais nas bancas, quando a televisão estava em silêncio até às oito da noite, quando a tua primeira mão, ou exclusivo, tinha um enorme tempo de respiração, era o tempo que lhes dava a sua importância. Neste momento a tua primeira mão dura dois minutos. Lanças no Observador uma primeira mão, o Correio da Manhã mete, a TSF mete, o Público mete, a SIC mete. E achas sinceramente que hoje a malta está muito interessada, ao ver aquilo uma hora depois, em saber se o Observador deu a notícia um minuto antes do Público? Estão-se a marimbar. Isso não condiciona o Jornal da Noite. Essa conversa da primeira mão, da manchete, o “última hora” torna-se um “última hora” de toda a gente.

A SIC inclui reportagens e trabalhos de investigação. Não vê espaço em Portugal para isso sair do espaço do jornal diário?
Não vejo que isso seja um problema. Uma Grande Reportagem ser emitida no Jornal da Noite, vejo que está a ser emitida na sua casa natural, não vejo o que se ganharia em autonomizá-la. Para mim, o que é importante é que ela chegue aos espectadores. Acho é que deveria haver mais reportagens, mais cuidadas e com mais tempo. Como sabes, os constrangimentos das redações, nesta altura, por questões financeiras, o que fazem é que as pessoas com mais experiência para fazer grandes reportagens começam a ser poucas e não se cria um grande repórter para fazer grandes reportagens em um ou dois anos.

ANDRÉ DIAS NOBRE / OBSERVADOR

Voltando aos canais de notícias 24 horas. Pegando na manifestação dos coletes amarelos há umas semanas. Aquilo não teve relevância alguma, mas as televisões estiveram lá todas a cobrir. Não acha que a importância que as televisões dão a isso para ter conteúdo, ou pela questão da concorrência…
Há duas coisas que a mim me fazem confusão. Essa lógica de que vamos fazer porque os outros estão a fazer, eu nunca a entendi. É uma lógica que revela medo, medo de apostar numa coisa diferente. E estou perfeitamente à vontade para falar disto, porque toda a gente na SIC conhece a minha opinião. Claro que cada caso é um caso. Claro que a concorrência pode estar com uma coisa que nos escapou completamente e nós temos de entrar no comboio. Agora a lógica simples, não sei muito bem o que fazer, vejo o que a TVI está a fazer e vou atrás… Isso revela medo. Neste momento, os programadores não querem correr o risco. Se estão lá os três concorrentes e as pessoas preferem aquilo, já perdemos. Isso revela indecisão e medo. E há outra coisa que me faz muita confusão em toda a comunicação social, na televisão e não só.

Falaste nos coletes amarelos e não é por acaso. A televisão é atraída pela ideia do potencial conflito. Um sítio onde haja manifestantes e polícia é um sítio de potencial conflito. No limite diria isto, a televisão não se move para aí por causa das reclamações dos impostos dos coletes amarelos, desloca-se para aí porque sabe que em algum momento pode estar em direto e os gajos desatarem à porrada. E a porrada é apetecível. O espectador é assim, o ser humano é assim. Essa decisão de não perder um potencial conflito, um risco de conflito, nós vamos para lá, isso é absolutamente maquiavélico. Isso é a maior crítica à televisão hoje em dia. Há um lado vampiresco que não é o do vampiro que está a ver sangue e vai para lá, mas do vampiro que ainda não está a ver sangue, mas que já lá está para o caso de haver. E é assim porque o público está lá. Quando nós transmitimos isso, no dia seguinte vamos ver que fizemos boas audiências. Isto é uma empresa. O jornalismo não vive do ar. Um dos grandes “culpados”, entre aspas, é o público. A procura. Não culpem só a oferta.

Não tem algum receio que os programas da manhã sejam confundidos pela maior parte das pessoas como jornalismo? Por exemplo, o caso recente do Mário Machado, que o público olhe para aquilo como se fosse uma entrevista num telejornal?
Tenho esse receio. Mas não só em relação a isso. Tenho esse receio em relação às redes sociais, tens muitas redes sociais mascaradas de jornalismo e são tão ou mais perigosas que os programas da manhã. Acho que a televisão tem sido o bombo da festa de tudo o que é mau. Neste momento, vejo alarvidades nas redes sociais e muitas delas vêm mascaradas de jornalismo, pseudojornalismo, de pseudoverdade. Os média tradicionais mentem, eu é que tenho a verdade. Porque é que és tu que tens a verdade e não a SIC ou a TVI? A questão dos programas da manhã, vais ter sempre de confiar, sempre, na inteligência do público. Não há nada a fazer. Enquanto houver uma pessoa que ache que estar a ver o Mário Machado a ser entrevistado ali é a mesma coisa que estar a ver o Jornal das 8 da TVI, não podes fazer nada. Há um momento em que não há nada a fazer. Dou-te um exemplo: há uns tempos pus no Instagram uma foto com uma legenda que era a coisa mais explicativa do mundo, “momento de melancolia, hoje estou a fazer o meu último Natal neste edifício. Em breve mudamo-nos para novas instalações”. Entendimento de algumas pessoas? “Ai vai sair da SIC, que pena, gostava tanto do seu trabalho”. Cristalizaram o “meu último Natal neste edifício” e perderam o resto todo. Vais ter sempre pessoas dessas.

Essa questão de haver riscos disso ser confundido: claro que há. E então? O que podemos dizer é: os programas da manhã, o que estão a fazer, isso não é de agora, antigamente tinham os seus ingredientes, a sua beterraba e o seu tomilho, agora querem ingredientes que são da informação. Normalmente, uma entrevista do Mário Machado, a existir, seria no terreno da informação. As vítimas da APAV estariam numa reportagem de informação. O que se passa, como por exemplo, com a Página Criminal, é que os programas da manhã estão a ir buscar ingredientes à informação. Mas que diabo! A informação, SIC e Observador incluídos, também está a ir buscar ingredientes aos programas. Sabes onde? Nas culinárias, restaurantes, viagens, lazer. O que isso tem a ver com informação? E, contudo, está lá. Todos os dias vejo isso no “Jornal da Noite”, no reputado do Observador. Não é? Mais do que nunca, a gestão do teu nome e da tua figura está nas tuas mãos. Ou seja, eu não ser confundido, o meu trabalho de jornalismo continuar a ser respeitado, numa época de tantos cruzamentos, de inputs e de realidades, está muito nas minhas mãos. Nem todas as vezes me revejo nos conteúdos que estou a apresentar.

"Quero cabelos brancos e experiência do outro lado do ecrã. Gosto desse conforto. E se eu puder ser esse conforto para muitas pessoas, continuar a acompanhá-las durante os seus percursos de vida, pessoas que cresceram comigo, que têm filhos que me vão vendo, gosto disso. Continuo a achar que tenho uma certa missão no jornalismo a cumprir. Portanto, quero continuar."

Pegando na deixa do novo edifício: está na SIC desde o início, vê-se a mudar de estação?
Já não. No tempo da minha carreira, tive o convite para ir para a SIC, estava na RTP, mas isso foi uma coisa particular, foi um grupo de jovens que se juntou todo para ir formar uma televisão. No meu tempo de SIC já tive dois convites para sair, para mudar, que não aceitei. E nesta altura, ponto 1, não me vejo a ser convidado e, ponto 2, não me vejo a sair.

Não vamos pensar no contexto atual. Imaginando que aparece um canal novo de notícias e pedem-lhe para ser diretor de informação. Gostava de ter esse desafio?
Não tenho nenhuma ambição de ser diretor. Tenho a ambição de ter bons diretores. Não tenho essa ambição pessoal do poder, o poder a mim não me diz nada, não me seduz. O que estás a dizer, um projeto novo… quando digo que não me vejo de momento a sair da SIC, com o panorama atual, não me estou a ver a sair para a TVI ou RTP, os outros canais não me interessam. Um projeto que não tivesse a ver com televisão, iria sentir falta da televisão. É o meu meio, onde me sinto um peixe na água. Um projeto novo, que fosse aliciante, não necessariamente para ser diretor, mas para ter uma palavra ativa, se fosse algo aliciante para mim… Não estou interessado em reformar-me muito cedo. Não sou daqueles que ambiciona: já falta pouco para a reforma, para descansar. Os casos de pessoas que vi, extremamente ativas na sua vida, que vão para as pantufas cedo, envelhecem décadas numa questão de semanas. Quero manter-me ativo, tenho 55 anos, estou recetivo a novos desafios. Pelo menos ouviria e pensaria.

Pergunto-lhe isto porque há pouco quando estava a falar na instrução dos novos pivôs, ou os mais jovens, pareceu-me entender no seu discurso que gostava de fazer isso.
Gosto muito de dar formação. É um lado que nunca pensei, de professor/mestre, não costumo olhar para mim dessa forma, mas gosto muito. Gosto de pessoas, independentemente da idade, não tenho o discurso “nós é que somos bons, os putos são todos uns estúpidos”. Acho que há estúpidos na nossa geração e na geração dos jovens também. Mas quando me cruzo com miúdos em que vejo potencial, gosto muito de ensinar, de lhes dar as minhas dicas, conselhos e sentir que de alguma forma marco a vida deles. Que eles retiram do convívio comigo coisas que os vão ajudar. Tocar a vida das pessoas e dos mais jovens. Isso via-me a fazer, sim.

Para terminar: se a música, os romances, lhe dessem conforto financeiro e o realizassem totalmente…
Mas realizado…

No sentido em que não precisava mais do jornalismo. Não precisava do jornalismo para se sentir completo.
Estou numa situação privilegiada porque consigo encaixar na minha vida o jornalismo, a escrita e a música. De alguma forma, não é verdade, porque eu neste ano não tenho livro porque estive com o CD. Afinal não é verdade que eu tenho tempo para as três coisas, para fazer uma tive de abdicar da outra. Numa situação ideal, quero manter as três coisas. Já tive… quando fiz cinquenta anos, tive uma crise de identidade e quase uma vontade de sair do jornalismo, quando comecei a ver o estado das coisas, o cansaço… e aí nem entrava a questão financeira, isso um gajo arranja-se, um gajo tem dois braços e duas pernas e há-de trabalhar. Mas havia um cansaço do jornalismo. Hoje em dia estou pacificado com isso e quero continuar. E quero fazer uma coisa da qual preciso como espectador: quero cabelos brancos e experiência do outro lado do ecrã. Gosto desse conforto. E se eu puder ser esse conforto para muitas pessoas, continuar a acompanhá-las durante os seus percursos de vida, pessoas que cresceram comigo, que têm filhos que me vão vendo, gosto disso. Continuo a achar que tenho uma certa missão no jornalismo a cumprir. Portanto, quero continuar.

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