Claro que é tudo relativo. Há sempre alguém que diz que “Roma” olha com condescendência para a classe trabalhadora mexicana onde os indígenas não são mais do que testemunhas da História, sofredores em silêncio das indignidades e condenados a limparem a merda de cão numa garagem estreita apenas para o fazerem de novo no dia seguinte. Ou que “A Favorita” é “Lanthimos Light”, com o seu absurdismo diluído para o consumo geral ou então o oposto, que o filme é demasiado estranho para um drama histórico e que há senhores respeitáveis confusos em salas de cinema porque a Abigail foi cedida a um alemão gordo com a pila pequena e isso não é coisa que se diga na corte da Rainha Anne.
Apropriando-me de novo do guião escrito por Deborah Davis e Tony McNamara, esses críticos não sabem de que é que estão a falar e uma pessoa pode (deve?) ser despida e açoitada por declarações dessas. Claro que “gostos não se discutem” mas só por tremenda má vontade é que se olha para “Roma” e “A Favorita” e não se reconhece as qualidades técnicas e artísticas de ambos os projetos, seja a dimensão dos planos-sequência de Alfonso Cuarón ou o isolamento a que as personagens de Yorgos Lanthimos são condenadas pela sua utilização da lente grande angular. Ou a interpretação contida de Yalitza Aparício que transforma todas as manifestações emocionais em momentos simultaneamente épicos e pessoais ou a inteligência ácida, corrosiva e verbosa de Olivia Colman, Emma Stone e Rachel Weisz, que oferece uma profunda tristeza e solidão a cada instante de silêncio.
[o trailer de “Roma”:]
https://www.youtube.com/watch?v=FkzidhAg45U
E, acima de tudo, isto: os Óscares são o que são e não costumam ser grande coisa. Estamos a falar da Academia Americana de Cinema, a mesma que preferiu o “Forrest Gump” a “Pulp Fiction”, o “Shakespeare in Love” ao “Thin Red Line”, que no ano de “Fight Club”, “Magnólia” e “Being John Malkovich” achou que o melhor filme era o “Beleza Americana”, que nem sequer nomeou “Do The Right Thing” quando deu uma estátua a “Driving Miss Daisy”. São os tipos — sim, porque a maioria dos membros sempre foram homens brancos e só agora é que se está a procurar algum equilíbrio na diversidade, o que explica alguns resultados – que olharam para “The King’s Speech” e pensaram ‘yep, não vi melhor este ano e vamos aproveitar para celebrar também o Tom Hooper, mesmo se ele não consegue manter a câmara direita”.
(O próximo projecto de Tom Hooper? Uma adaptação de “Cats” que deve estrear no final do ano. Mesmo a tempo dos Óscares. Taylor Swift faz de Bombalurina, James Corden de Bustopher Jones e eu só verei o filme se me pagarem).
Recordo tantas decisões infelizes nesta longa introdução porque contexto é tudo. Mesmo se objetos questionáveis e servidos como comida não temperada porque assim não se ofende o gosto de ninguém como “Green Book” ou “Bohemian Rapsody” continuam a ter presença nas escolhas da Academia Americana, é um bom dia quando os líderes nas nomeações são um filme mexicano sobre a empregada doméstica do realizador e um outro meio bizarro onde três mulheres dominam a corte inglesa e atrás da câmara está o autor Grego de “Canino”, “Alpes”, “A Lagosta” e “O Sacrifício de Um Cervo Sagrado”.
[o trailer de “A Favorita”:]
E é também interessante perceber que – apesar de serem projetos tão afastados em termos de tom, narrativa ou estilo – há algo que os une, um tema que lhes oferece contemporaneidade mesmo considerando que se tratam de filmes de época: são histórias no feminino onde os homens são figuras secundárias e em ambos os casos o destino das protagonistas é provocado pelas suas próprias decisões. “Estamos sozinhas. Não interessa o que te dizem, nós, as mulheres, estamos sempre sozinhas”, diz a Senhora Sofia a Cleo. Uma linha de diálogo que Lady Sarah podia ter utilizado quando estava mergulhada na banheira de lama com a Rainha Anne. A Empregada Mexicana nunca apanhará um daqueles aviões que sobrevoam a Cidade do México e a Monarca Inglesa está condenada ao quarto do seu palácio, rodeada por 17 coelhos, cada um um filho que não vive. Também aí, na memória daqueles que lhes morreram, elas se encontram, ultrapassando espaço, tempo e ficção. Sofia está errada. Elas não estão sozinhas.
Por tudo isso, “Roma” e “A Favorita” devem ser celebrados. E é apenas para isso que este artigo serve. Inventamos outras seis categorias aleatórias onde os projetos se enfrentam e não interessa quem ganha porque o cinema não é uma corrida de cavalos e, mesmo que o fosse, há muito que ambos os filmes atravessaram a meta.
(Fica a aviso: o que se segue é escrito sem qualquer preocupação em evitar spoilers. Na verdade, o que foi escrito anteriormente também. O melhor é mesmo assistirem a “Roma” e “A Favorita” antes de continuarem. Roma está mesmo aí ao lado, na Netflix, e “A Favorita” está em exibição nas nossas salas)
Melhor Tentativa de Sedução Desastrada
Como escolher entre Masham (Joe Alwyn) a entrar maquilhado, na sua melhor roupa e com uma impressionante peruca dentro do quarto de Abigail (Emma Stone) ou Fermín (Jorge Antonio Guerrero) todo nu a praticar golpes de Karaté com a vara da cortina da banheira enquanto, na cama, Cleo o observa? Confesso que não tenho o discernimento necessário para avaliar a eficácia dessas aproximações, por isso o melhor é escolher o vencedor de acordo com a reacção das vítimas das bizarras seduções. Abigail olha para a figura de Masham e pergunta-lhe se ele está ali para a seduzir ou violar. “Sou um cavalheiro”, responde o rapaz, ao que ela exclama “ah, violação, portanto”. Já Cleo olha para Fermín com uma mistura encantadora de espanto e excitação, querendo talvez rir-se mas gostando demasiado do rapaz para alguma vez o fazer.
Parece-me evidente: ponto para Roma e Fermín. Só é pena ele ter-se revelado um sacana mais tarde. Mas, por outro lado, o que é que se poderia esperar de um homem que pratica karaté todo nu com a vara da banheira? Um compromisso a longo prazo é que não era de certeza.
Melhor Momento de Expressão Corporal
Mas voltando ao homem que pratica karaté todo nu com a vara da banheira: haverá momento mais bizarro e hipnótico no cinema este ano? Atrevo-me a dizer que não. Abigail a auto-agredir-se com um livro para depois ir chorar para a porta do quarto da rainha como uma criança a quem roubaram uma mão cheia de rebuçados também merece pontos. E a dança entre Marsham e Lady Sarah que mistura alguns movimentos clássicos com toques contemporâneos e outros muito ridículos é algo que deveria ser repetido em pistas por este mundo fora, transformado, por fim, as discotecas em locais suportáveis. Mas quem merece o prémio é o Professor Zovek, em Roma, interpretado por “Latin Lover”.
(não estou a brincar, podem ir ao IMDB confirmar: nome do ator que interpreta o Professor Zovek é mesmo “Amante Latino”).
O Professor Zovek não só consegue puxar um carro usando apenas os dentes como, vestido apenas com collants, licra e um capa, fecha os olhos, eleva os braços acima da cabeça juntando as palmas das mãos e dobra o joelho direito encostando o pé contra a perna contrária. Tentem lá fazer isso em casa. Não é nada fácil.
Melhor Ameaça — física ou verbal
Fermín, que está inesperadamente a tornar-se num dos protagonistas deste artigo – e peço desculpas antecipadas por isso, considerando que há tantas mulheres que merecem todo o destaque em “Roma” e “A Favorita”, mas vou já corrigir esta questão daqui a pouco, prometo – avisa Cleo que ela não o deve voltar a procurar e simula que lhe dá um pontapé na cabeça antes de desatar a correr dali para fora.
(Pergunta: que tipo de homem é que faz uma coisa horrível como essa? Resposta: um homem que pratica karaté todo nu com a vara da banheira, claro)
(Peço também desculpas antecipadas a todos os homens que praticam karaté todos nus com as varas da banheira. A observação anterior foi apenas uma generalização utilizada para fins humorísticos e não corresponde necessariamente à realidade. Estou certo que muitos homens que praticam karaté todos nus com as varas da banheira são na verdade boas pessoas.)
Mas, nesta categoria, o prémio vai mesmo para os geniais duelos verbais entre as protagonistas de “A Favorita”, em particular as observações de Lady Sarah, interpretada por Rachel Weisz. Ficam aqui apenas três exemplos:
“Sonhei que te esfaqueei num olho”.
“Pareces um texugo”.
“Tenho o súbito desejo de ver o teu nariz partido”
Digno de uma Rainha.
Melhor Criada – Cleo ou Abigail
Cleo sabe o que é que os miúdos gostam de lanchar e vai com eles ao cinema, limpa merda de cão dia após dia, atura a depressão da patroa e nem sequer diz ao António para ele ir dar uma volta quando o homem se arma em Senhor Preocupação e Empatia no elevador do hospital.
Abigail sabe que ervas é que são ideais para aliviar as dores nas pernas da Rainha Anne e, citando a própria monarca, “gosto quando ela coloca a língua dentro de mim”. Mas mente quando lhe é conveniente (e são muitos os momentos em que é), bebe demais tendo oportunidade e pode acabar por pisar um ou outro coelho só por desprezo a todas as coisas vivas – e às memórias dos mortos.
Vencedora: Cleo. Garante menos orgasmos mas pode contar-se com ela para tudo o resto.
Melhor Patroa — Senhora Sofia ou Rainha Anne
A Rainha Anne é temperamental. Mas há atenuantes: não é fácil lidar com a pressão de ser responsável pelos destinos de uma nação em guerra, ainda mais quando se sofre de tremendas dores provocadas pela gota e se carregam ainda outras “feridas que não saram. Uma pessoa anda por aí com elas e por vezes sente que se enchem de sangue”. Mas tem momentos de generosidade, promovendo a ascensão social daqueles que trabalham para ela – e lhe dão orgasmos, preferencialmente. É obrigatório cumprimentar os seus 17 coelhos e, quando despede alguém, o mais provável é serem forçados a sair do país.
A Senhora Sofia também atravessa uma fase menos boa. O marido saiu de casa, deixando-a sozinha com os filhos, e há uma readaptação à realidade que ela ainda não teve força de enfrentar. Por isso, é possível que descarregue as suas frustrações e angústias nas pessoas que a ajudam. E que chegue uma ou outra vez com os copos a casa e não seja capaz de estacionar o carro sem arrancar pedaços da parede da garagem.
Vencedora: Senhora Sofia. As recompensas são menores e a ascensão social nem sequer é uma possibilidade. Mas há uma maior segurança no trabalho e menos momentos de insanidade na rotina diária.
Melhor Final (GRANDE SPOILER)
A cena final de “A Favorita” é extraordinária. A Rainha Anne, cada vez mais doente, deitada na cama. Abigail, vencedora das intrigas palacianas, a ler um livro qualquer junto da janela enquanto 17 coelhos brincam e andam pelo chão. Há um deles que se aproxima do seu pé e Abigail aproveita para o esmagar um bocadinho, só para o ver sofrer. Anne repara e tenta levantar-se. Cai. Levanta-se de novo. Ordena a Abigail que lhe esfregue as pernas, para que a dor alivie. O que ela faz. Baixa-se, mesmo se contrariada, começa a esfregar-lhe a perna, “devia deitar-se”, diz à sua Rainha, que a manda calar-se, “falas apenas quando eu falar contigo, sinto-me tonta, preciso de me agarrar a algo” e coloca a mão na cabeça de Abigail enquanto esta lhe continua a passar a mão pelas feridas e sente o seu cabelo a ser agarrado e puxado e Lathimos sobrepõem ambos os rostos na mesma imagem à qual se juntam agora os coelhos que se multiplicam e a banda sonora ganha dimensão e as duas mulheres ficam ali presas e condenadas uma à outra.
Em “Roma”, o melhor final acontece antes do filme terminar. Cleo, a enfrentar as ondas para salvar as crianças, aquele abraço tão bem enquadrado e a confissão que nunca desejou o filho nado-morto. O resto é o sentimento de que a vida continua, imperturbável mesmo perante as tragédias pessoais e os eventos históricos.
Eu avisei que iriam existir spoilers. Mas sabem o que é a melhor maneira de evitar ler spoilers? Ver os filmes. Valem a pena.
Tiago R. Santos é argumentista