Ryan Avent é jornalista, algo que nunca pensou ser. Depois de se formar em economia, com um master em História Económica na London Business School, trabalhou para o Governo norte-americano, em Washington, e em consultoria. “Não gostei de nenhuma delas”, admitiu a uma audiência composta por estudantes da Universidade Católica, para falar sobre a economia global depois da pandemia, no âmbito da nova licenciatura de Filosofia, Política e Economia da FCH-Católica.
Depois dessas duas experiências, decidiu, nos tempos livres, escrever num blog sobre assuntos de economia, até que em 2007 começou numa base de freelancer a escrever para a revista The Economist. Os tempos começaram a aguçar o gosto pelo jornalismo. Veio a crise financeira. E, como estava a escrever cada vez mais, em 2009 entrou para a revista britânica. Ryan Avent é norte-americano e vive nos Estados Unidos. O jornalismo deu-lhe a oportunidade para viajar pelo mundo e escrever muito sobre economia. Depois da crise financeira, chegou agora a duas crises seguidas: a pandémica e a guerra na Ucrânia. Globalização e economias emergentes são os temas a que atualmente mais se dedica. E foi o pretexto para falar com o Observador, depois de ter estado mais de uma hora à conversa com os estudantes.
A guerra na Ucrânia vai pôr um prego sobre a globalização? As relações comerciais antes da guerra já estavam a mudar, nomeadamente por causa da guerra comercial entre os Estados Unidos e a China.
Para mim é difícil imaginar uma melhoria das relações entre Estados Unidos e China sem que haja mudanças políticas grandes na China. Parece-me, pois, que vão continuar a afastar-se, o que implica necessariamente que haverá uma grande rutura transversalmente à economia global. Será muito diferente do passado. E poderemos, no final, chegar a uma economia global que até pode ser mais interligada do que vimos nos últimos 20 anos, mas poderá demorar até chegarmos a esse ponto.
Mas a guerra comercial entre EUA e China, e agora a guerra na Ucrânia, são dois momentos diferentes com impacto na globalização? Qual terá maiores efeitos?A guerra na Ucrânia?
Temos de ver isto como um processo evolutivo. Antes da pandemia, havia nos Estados Unidos, mas também na Europa e na China, quem considerasse que seria melhor se não dependêssemos tanto uns dos outros. Por isso, havia pressão política para um afastamento, o que ficou bem demonstrado com a guerra comercial. Se não tivéssemos tido a pandemia nem a guerra, podíamos até pensar que era apenas um episódio de curto prazo e ter um novo Presidente que levasse talvez a uma melhoria nas relações entre os EUA e a China. Seria apenas uma queda no comércio em vez deste movimento de separação. Mas, contudo, tivemos a pandemia e agora a guerra — e a guerra mostrou, mesmo, como a China se afastou politicamente de uma ligação ao Ocidente. É muito claro que estamos a ir em direções opostas. E o que começou por ser um pedaço de tecido com um pequeno rasgão e que podia ser consertado, agora parece mesmo que vai ser rasgado. Pelo menos em relação ao Ocidente e à China. Diria, assim, que a pandemia e a guerra foram a grande coisa, mas tiveram um efeito tão dramático porque já havia um movimento na direção contrária à da globalização.
Consegue imaginar o que pode acontecer se a China invadir Taiwan?
Seria tão mau… Mesmo tendo havido uma deterioração no relacionamento entre o Ocidente e a China, ainda há muitas interligações, ainda compramos muita coisa à China. Por isso, se a China invadir Taiwan haveria uma rutura nas ligações económicas, pelo menos no curto prazo, o que seria significativamente disruptivo. Os problemas na cadeia de abastecimento que tivemos recentemente pareceriam um piquenique e nós não estamos preparados para isso. Mas é uma possibilidade real e não ficaria surpreendido se acontecesse. O choque na economia global seria maior do que o choque com a guerra russa. Significaria, provavelmente, uma recessão a nível global. E é difícil prever o que aconteceria depois disso. Se os EUA e o Ocidente se encontrassem em guerra com a China, obviamente as coisas seriam muito mais terríveis do que podemos imaginar.
O Ocidente precisa mais da China do que da Rússia?
Definitivamente. Mas também penso que afetaria muito a China. A China tem um relacionamento económico maior com o Ocidente do que com a Rússia. A Rússia, basicamente, era vendedora de petróleo e recursos naturais. A China depende do Ocidente para um conjunto de produtos industriais e de matérias-primas para a produção. Dos dois lados, há um relacionamento muito maior.
Esta guerra pode trazer, no entanto, novas alianças geopolíticas e económicas a todo o mundo?
Penso que sim. O primeiro e maior efeito foi fazer da aliança já existente entre a Europa, os EUA e a NATO muito mais próxima — rejuvenesceu essa aliança. Mas penso que o que acontecerá é que a Europa e os EUA vão dar-se conta de que é importante cultivar as alianças com os mercados emergentes, que é como se estivessem numa cerca. É importante, por exemplo, termos boas relações com a Índia e impedirmos que a Índia se junte à Rússia e à China. Temos mesmo de encontrar formas de nos entendermos com a Índia e aprofundarmos o relacionamento. O mesmo com a América Latina. Seria inteligente para os EUA se aproveitassem esta oportunidade para aprofundar as relações comerciais com a América Latina e melhorarem essas relações. E reforçar as alianças no Ocidente, e desejavelmente isso vai acontecer.
Já começou a acontecer, a forma como os EUA tentaram novo relacionamento com a Venezuela. Não começou?
Já começou a acontecer, mas se me perguntasse há dois meses, acharia que nesta fase já teriam acontecido mais. Acharia que os EUA colocariam como prioridade ter acordos comerciais e investimentos em cima da mesa, e promover encontros com os líderes do México e do Brasil, etc. E para mim é um pouco surpreendente não ter havido mais.
A Rússia vai ficar de fora da globalização e dos circuitos comerciais para sempre ou é apenas uma situação temporária?
É tão difícil prever. Depende do resultado da guerra e se Putin se mantém líder na Rússia. Se se alcançar um acordo de paz ou se houver uma mudança de liderança na Rússia, aí poderia haver um caminho de regresso para a Rússia voltar a juntar-se à comunidade global. Mas se as coisas continuarem como até aqui, parece que a Rússia se vai aproximar cada vez mais da China e vão constituir uma nova esfera económica — não é uma boa direção. Mas penso que as pessoas vão reconhecer como a economia russa está a sofrer.
Está mesmo a sofrer?
Penso que sim. Eu sei que continuam a ganhar muito dinheiro da venda do petróleo e do gás. Mas o fim do relacionamento com companhias ocidentais e o número de pessoas qualificadas que saíram da Rússia e foram para o estrangeiro, isso vai destroçar o potencial de longo prazo da Rússia. As esperanças que tinham de se tornarem numa economia inovadora e próspera estão a deixar o país.
Por isso acredita que as sanções estão a ser eficazes?
Certamente têm sido eficazes, sim. Estão a ser tão eficazes como esperaríamos? Talvez não, mas penso que o problema é….
… a Europa?
Se fizerem algo demasiado doloroso para a Europa poderão começar a perder a unidade política europeia, e não podemos arriscar isso. Por isso, possivelmente é o que podemos agora fazer.
A Europa deveria banir a energia russa?
Para alguém que está nos EUA é fácil dizer que deviam, porque não somos nós que temos de arcar com as consequências. Uma coisa que é certa é que a Europa fez más escolhas nos 10 a 20 anos antes da guerra. Os sinais de aviso estavam lá e não foram levados a sério. Deviam ter reduzido a dependência face ao gás da Rússia. Não o fizeram e é um erro caro. A Europa deve andar o mais rapidamente que conseguir para reduzir a dependência face à Rússia. E os EUA devem fazer o possível para ajudar a Europa a investir nessas medidas. Mas não sei se a Europa pode avançar mais rapidamente sem ameaçar a unidade política.
E o bem-estar dos cidadãos… Neste momento, no entanto, os EUA estão a tornar-se um importante fornecedor de gás e petróleo da Europa. É meramente para ajudar?
Há muitos interesses empresariais no EUA, como o facto de conseguirmos exportar combustíveis fósseis e podermos aumentar a nossa capacidade para aumentar as exportações. Mas nem tudo é vantajoso para os EUA, já que quanto mais exportarmos mais os preços dentro dos EUA são elevados, o que afeta consumidores e contribui para a inflação. Mas, verdadeiramente, penso que a principal preocupação aqui dos EUA é ajudar a Europa. Penso que os EUA estão verdadeiramente empenhados em fazer o máximo que conseguirem para isolar a Rússia e ajudar a Europa a lidar com os custos da guerra.
E isto vai ter impacto no processo de descarbonização ou pode ser um incentivo?
É uma pergunta difícil. Preferencialmente, os países deviam dizer que esta é uma razão para ser muito má ideia depender muito dos combustíveis fósseis e para ser boa ideia fazer investimentos na energia verde. Mas aqui nos EUA podemos ver que mudou a perspetiva das pessoas em relação aos combustíveis fósseis, e tem sido difícil para as pessoas cuja prioridade é lidar com as alterações climáticas. Tem havido mais a sensação de que não podemos arcar com o não investimento em petróleo e gás e que temos de garantir que continuamos a produzi-los. Para mim não é seguro que o efeito será o de ajudar a descarbonização. Veremos. Até pode ser, mas penso que iremos consumir muito mais petróleo e gás em resultado da guerra.
Globalmente e mais do que o que consumimos agora?
Se olhar para a média de consumo americana não penso que vá subir, vai continuar a cair. Mas a nível global vai haver um esforço para manter os fornecimentos de petróleo e gás e ter essa capacidade e como os fornecimentos estão disponíveis acabaremos por consumir mais do que antes.
Portanto os preços vão continuar altos ainda por uns tempos?
Penso que sim. Penso que não está a aproximar-se o fim dos preços altos.
Na palestra que deu aos alunos da Universidade Católica admitiu que vão continuar altos nos próximos cinco a 10 anos…
Há várias coisas que continuam, e uma é que a procura por petróleo e gás tem continuado a aumentar. Nos anos 2010 pensámos que não ia continuar a subir, mas isso teve muito a ver com a debilidade económica de algumas partes do mundo. E na realidade, a economia da Índia está a crescer e vai consumir muito mais, por isso vem aí uma procura maior. É provável que por razões geopolíticas e outras coisas vamos continuar a assistir a problemas no fornecimento e não vamos voltar a um mercado normalizado nos tempos mais próximos. E essas duas forças conjuntamente vão fazer com que os preços continuem altos nos próximos 5 a 10 anos, no mínimo. O complicado é que muitas das companhias petrolíferas não querem investir em nova capacidade porque não não veem um futuro de longo prazo. Por isso estamos numa posição estranha, se não houver investimento os preços vão continuar altos, mas se houver investimento acabaremos por consumir muito mais. Até chegarmos ao ponto em que a energia verde forneça uma larga porção da nossa energia, os combustíveis fósseis vão ficar altos. E até pode ser 20 anos.
A inflação “não é” um papão
Esta guerra, e já antes a pandemia, trouxe inflação como já não se via desde os anos 70. Como acha que vai parar? E a inflação é mesmo o papão?
As pessoas viram a inflação e assumiram, no imediato, que era como se estivéssemos a voltar aos anos 1970.
E é muito diferente?
Acho que sim. A inflação que estamos a assistir deve-se a algumas mudanças: houve muito gasto dos governos devido à pandemia, tivemos imensas ruturas nas cadeias de abastecimento, houve um conjunto de mudanças extraordinárias que puxaram pelos preços. E essa subida de preços tem de entrar em circulação, e por isso, poderá haver um período de dois a três anos em que a inflação seja mais alta do que aquela a que nos habituámos. Mas as forças que mantinham a inflação baixa antes da pandemia não se alteraram assim tanto — nos EUA não temos sindicatos fortes; há forças tecnológicas que pesam sobre a inflação; e ainda temos coisas como a mudança demográfica que tem arrastado para baixo a inflação, com o envelhecimento da população. Por isso, penso que essas forças continuam a estar presentes. E foi errado ver a inflação como algo que ia subir, subir, subir. Posso estar errado, mas é o que penso.
Será temporária?
Penso que será temporária. E provavelmente chegaremos à conclusão que exagerámos na reação e como exagerámos é mais provável termos recessão nos EUA e na Europa, o que é lamentável.
Mas portanto não é um papão?
Posso estar errado, mas penso que não é o papão. Penso que houve até um pouco de pânico.
A inflação não foi promovida pela política monetária?
Não penso que a política monetária foi demasiado má. Talvez a Fed pudesse ter começado a apertar um pouco mais cedo, mas não penso que a política monetária foi assim tão má. Teve importância que os EUA tivessem um gasto elevado de despesa, com défice orçamental, isso teve importância e fez a diferença, mas isso acabou. O défice dos EUA e de muitos países está a diminuir. Não será algo que vá continuar a preocupar.
O BCE está a tomar passos mais curtos que a Fed. Está a ser demasiado lento?
Não sei… há muita gente a pensar que estão a ser lentos, mas na realidade a inflação na Europa parece um pouco diferente da dos EUA. Os salários na Europa não subiram tanto como nos EUA. O que penaliza [a Europa] são os preços da energia, que tem mais importância. Há menos problemas de inflação subjacente [excluindo produtos alimentares não transformados e energéticos] na Europa do que nos EUA. E penso que o BCE tem estado certo em ser paciente, porque têm um problema adicional com que se preocupar que é se o BCE for demasiado agressivo tem de se preocupar com os periféricos, e com o que acontece aos juros de Itália e noutros países…
… Portugal?
Portugal em certa medida. É apropriado para o BCE ter isso em mente e estar consciente disso, mas penso que seria má ideia que o BCE andasse mais rapidamente e de forma mais agressiva.
Como vê o impacto da inflação elevada nas tensões sociais a nível mundial? Vimos no Sri Lanka, por exemplo, estado de sítio. Pode ser um grande problema para os países mais pobres?
Os preços elevados da alimentação e da energia são um problema enorme para os países em desenvolvimento, que já têm lutado com os efeitos prolongados da pandemia e com uma espécie de ressaca do endividamento que tiveram com a pandemia e com o facto do comércio e o turismo não estarem a recuperar tanto quanto gostariam. E vamos ter países, como o Sri Lanka, que estão a ficar sem dinheiro para comprar alimentação e energia e vão ter problemas sérios de instabilidade social, o que pode tornar-se num problema sério e crescente de longo prazo, o que os países pobres não conseguem suportar. Estou muito preocupado. E gostaria que na Europa e nos EUA houvesse mais pensamento e conversa de como podemos ajudar os países pobres a gerir estas forças, porque se se tornar muito feio poderá tornar-se numa crise humanitária muito grande.
Temos os líderes certos para lidar com esta crise?
(Risos) Não sei. Nos EUA o problema não é necessariamente o de termos os líderes errados. O problema é que o sistema político, como um todo, não está a funcionar muito bem. Penso que Biden tem estado “ok”, mesmo se tivéssemos alguém muito melhor que Biden não sei como as coisas estariam, porque teriam, na mesma, de lidar com o sistema político que está muito estragado. E isso é um problema. A Europa tem estado “ok”, é sempre difícil construir consensos na Europa, é sempre duro tomar decisões difíceis dentro da Europa. Seria melhor se houvesse mais unidade e mais altruísmo, mas isso é algo difícil de pedir face ao que o mundo está a passar.
China, salários e Covid podem conduzir a maior automação?
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Ryan Avent admitiu ao Observador estar a escrever um livro, não revelando o tema. O seu primeiro livro — “The Wealth of Humans: Work, Power, and Status in the Twenty-first Century Hardcover”, em português “A Riqueza dos Humano” — foi escrito em 2016 e debate o tema do trabalho e da automação. À boleia desse tema, o Observador perguntou a Ryan Avent se a pandemia mudou o equilíbrio e a relação entre trabalhadores e patrões.
“Não tenho a certeza de saber a resposta”, começou por dizer Ryan Avent, que admite que no curto prazo terá aumentado o poder de negociação dos trabalhadores, porque “tinham apoios do governo e porque o trabalho remoto permitiu a alguns trabalhadores mais liberdade de mudarem de empregos e, por isso, conseguiram mais poder junto dos empregadores”.
Mas no longo prazo “não sei se conduzirá a grandes mudanças. Talvez não nos Estados Unidos. Houve um período muito bom para os trabalhadores mas vamos voltar ao que era. Temos visto mais energia nos movimentos sindicais nos EUA, o que pode levar a alguma coisa”. Mas a grandes questão, acrescenta, é se a tecnologia que utilizámos na pandemia vai ter efeitos duradouros. “Os trabalhadores puderem viver potencialmente onde quiserem pode potencialmente ser importante, trabalhos que tinham de ser feitos num país podem ser mudados para qualquer parte do mundo, o que pode mudar as regras, as pessoas não têm de estar fechadas em Londres, por exemplo, que é muito caro. Pode ser transformacional no longo prazo, mas não tenho a certeza que isso vá acontecer”.
Por outro lado, “tem havido um grande debate sobre a automação nos últimos 10 anos, mas se calhar não há tanta automação como se esperaria. Não vimos os robôs a ter assim tanto sucesso a roubar empregos, mas pode ser que a combinação de as pessoas quererem tirar a produção da China, os salários serem mais elevados ou até termos de liderar com com surtos recorrentes de Covid podem significar que há um novo foco no uso de robôs sempre que pudermos, o que poderá ser negativo para os trabalhadores”.
Daí que Ryan Avent diga que “vai ser fascinante ver o que acontecerá nos próximos 10 anos, poderá ser um grande tema, mas não tenho a certeza que será”, e assume que até pode voltar a ele num livro futuro.