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Aqui
nesta planície de sol suado
dois homens desafiaram a morte, cara a cara,
em defesa do seu gado
de cornos e tetas.
Aqui
onde agora vejo crescer uma seara
de espigas pretas.
Quando os dois camponeses desceram às covas,
ante os punhos cerrados de todos nós,
chorei!
Sim, chorei
sentindo nos olhos a voz
do que há de mais profundo
nas raízes dos homens e das flores
a correrem-me em lágrimas na face.
Chorei pelos mortos e pelos matadores
– almas de frio fundo.
Digam-me lá:
para que serviria ser poeta
se não chorasse
publicamente
diante do mundo?
José Gomes Ferreira
27 de setembro de 1979. São Cristóvão, Montemor-o-Novo. De manhã, ainda cedo, a herdade Vale do Nobre seria entregue a Manuel António Padeira, o agrário que dela tinha sido proprietário durante anos. Setecentos e treze hectares que, até então, e desde 1975 e da Reforma Agrária, haviam sido retirados a Padeira e entregues à cooperativa Bento Gonçalves, que deles trataria de cultivar e cuidar. Com Padeira estavam doze agrários, outros tantos praças da GNR armados com G-3, Mauser e pistolas, técnicos do ministério da Agricultura e Pescas e do Centro da Reforma Agrária. Tudo estava calmo. Talvez demasiadamente calmo.
A cooperativa fora notificada pelo ministério três dias antes da devolução da herdade. Até então, um pouco por todo o Alentejo, e desde a entrada em vigor da Lei de Bases da Reforma Agrária, ou “Lei Barreto”, as entregas nunca foram pacíficas e as cooperativas mais próximas tendiam a apoiar-se mutuamente e protestar lado a lado contra a entrega das herdades aos antigos proprietários. Naquela manhã, àquela hora, não se avistava ninguém em Vale do Nobre, herdade a pouca distância da estação de comboio da Torre da Gadanha. Manuel António Padeira estranhara a ausência de protestos e de resistência por parte da cooperativa. E recordou à época, ao Correio da Manhã: “Quando lá chegámos às nove horas daquele dia, para se efetivar a entrega, com técnicos do Centro de Reforma Agrária e guardas da GNR, não encontrámos absolutamente ninguém, o que nos pareceu algo estranho. Passado algum tempo, começaram a chegar [por volta do meio-dia] homens e mulheres em tratores e roulottes, vindos da cooperativa Bento Gonçalves, a que pertencia a reserva, tendo chegado a cerca de um milhar.”
A manhã sangrenta em que “tiros para o ar” e “balas de borracha” mataram dois homens
Tudo se precipitou em minutos. A violência escalaria em Vale do Nobre. A causa foi, alegadamente, uma manada de vacas que, pertencente à cooperativa, seria entregue ao agrário pelos técnicos presentes no local. Os trabalhadores da Bento Gonçalves, apoiados por outros vindos da vizinha Unidade Coletiva de Produção do Escoural, quiseram impedir essa devolução. “Em Vale do Nobre, criava gado vacum especializado, com pedigree, que importavam muitas vezes de França. À data da ocupação encontravam-se lá noventa e nove cabeças de gado. Faz pois parte dos termos da entrega, para além do terreno, o gado que existia no momento da ocupação — não falando já no trator e outras alfaias. Entretanto, como não havia nenhum gado [pertencente a Manuel António Padeira] na herdade, os técnicos resolveram entregar-me setenta reses, que não são minhas nem me pertencem, pois são propriedade da cooperativa, mas que é um procedimento habitual neste caso, sendo mais tarde trocadas pelas que me pertencem”, explicaria o antigo proprietário, então já septuagenário.
E é aqui que a história, trágica, toma versões distintas: a de Padeira e da GNR, e a dos trabalhadores das cooperativas. Certo é que se registaram confrontos entre as duas partes e deles resultaram dois mortos: António Maria do Pomar Casquinha, 17 anos, e João Geraldo, ou “Caravela”, de 57 anos, ambos trabalhadores rurais. Os dois acabariam baleados mortalmente no peito pela GNR – que entretanto, e aquando da aproximação daquele aglomerado de quase mil trabalhadores, solicitara reforços a Vendas Novas e Montemor, elevando para perto de sessenta o número de praças presentes em Vale do Nobre. Florival António Carvalho, de 23 anos, foi também baleado numa perna e ficou gravemente ferido, tendo sido internado de urgência no Hospital de Évora, onde acabaria por ser operado, sobrevivendo.
Lino de Carvalho, então membro do Secretariado das Unidades Coletivas de Produção e Cooperativas Agrícolas e deputado comunista à Assembleia da República, recordava a 27 de setembro de 1979 ao Diário de Notícias o que na herdade se havia passado. “Tudo começa por esta entrega ser ilegal e um roubo. Não concordamos com as entregas feitas na base da ‘Lei Barreto’. Para além disso, esta entrega liquida praticamente a cooperativa Bento Gonçalves, pois é de importância fundamental para ela. Quanto aos acontecimentos, os agrários foram buscar uma vacada que não lhes pertencia, uma vacada aliás criada e selecionada por nós. E os trabalhadores não hesitaram em atirar pedras para impedir o seu roubo. Nesse momento, os agrários, que vinham já armados de cajados e com ares ameaçadores, provocaram os trabalhadores, atiraram-nos pedras, e a GNR, sem qualquer explicação, abriu fogo”, explicaria.
A GNR tinha uma explicação diferente da de Lino de Carvalho. Também ao Diário de Notícias, um oficial (não identificado; sabe-se, no entanto, que a devolução da reserva foi coordenada pelos pelos capitães Matias, Faria e sargento Maximino) garantia que os agrários, os praças e os técnicos presentes no local “foram alvo de um tiroteio intenso e pedradas, de onde resultaram ferimentos em oito praças e um impacto de uma bala numa viatura da corporação”. “A GNR foi obrigada a reagir e, para se defender, fez alguns tiros para o ar, os quais foram fazer alguns feridos entre os trabalhadores que se encontravam mais afastados, a cerca de cem metros”, acrescentou.
À então agência de notícias ANOP, fonte do hospital de Montemor-o-Novo negou que elementos da GNR tenham sido feridos nos incidentes, acrescentando que “os únicos mortos e feridos foram trabalhadores rurais”. A reportagem do Diário de Notícias escreveria, contudo, que “comprovou a existência de vestígios de um tiro na chapa de um dos jeeps da GNR, assim como sinais de apedrejamento”.
Manuel António Padeira, o agrário, corroborava a versão da GNR. “Fomos cercados por aqueles trabalhadores à frente e atrás, que começaram a atirar primeiro pedras para o gado. Este parou, e foi nesse momento que começaram a chover pedras sobre nós. Quando um dos jeeps da GNR viu a cena, aproximou-se rapidamente e atirou rajadas de balas de borracha. Foi então que eu vi, com os meus próprios olhos, surgirem pistolas nas mãos dos trabalhadores, tendo-se gerado um fogo de lado a lado, de que só me admira que tenham resultado dois mortos”, explicou então.
Sobre o tiroteio, Lino de Carvalho apenas acrescentou: “É mentira que os trabalhadores tenham atirado, pois nem estavam sequer armados. É necessário pôr termo à escalada de violência que se verifica no Alentejo contra o povo trabalhador.” Mais, afirmava o deputado do Partido Comunista, a entrega era ilegal e Manuel António Padeira não teria direito a ela. E explicou: “Antes da Reforma Agrária, a herdade Vale do Nobre estava completamente ao abandono, servindo unicamente como coutada. Por outro lado, o agrário tem na sua posse uma outra herdade, a Herdade das Pousadas, em Alcácer do Sal, com trezentos e um hectares. A própria ‘Lei Barreto’ afirma que das reservas atribuídas aos antigos proprietários deve ser deduzida área que estava abandonada antes da Reforma Agrária. Tal significa que, neste caso concreto, não tinha direito à reserva, seja pela aplicação do principio que se acaba de referir, seja pelo facto de ele ter na sua posse mais terras”, explica, descrevendo o que se passou em São Cristóvão como uma “retaliação” dos trabalhadores para “evitarem a consumação do ato ilegal”.
“Não há dor como esta. Mataram o meu filho como se estivessem a atirar a um coelho ou a uma lebre”
António Casquinha e João “Caravela” viviam em Santiago do Escoural e trabalhavam ambos na cooperativa agrícola daquela pequena freguesia (hoje mais desertificada do que em 1979) de Montemor-o-Novo. “Caravela” deixou mulher e filhos, mas só uma neta vive ainda no Escoural. Procurámo-la rua a rua, porta a porta, até que chegados à sua casa uma vizinha atira: “Ela sai de manhã para trabalhar e volta à noite, a esta hora [final da manhã] se quiserem conversar com alguém, procurem os pais do Casquinha, que vivem mais adiante, num monte”.
Logo à entrada do Escoural um monumento, altíssimo, de metal, num vermelho que o sol esbateu, em forma de cravo, não deixa esquecer o dia fatídico de 27 de setembro e homenageia os dois mortos da terra. Mais distante, por entre curvas e contracurvas, a custo se encontra, quando o alcatrão termina e a gravilha começa, uma casa térrea como quase todas no Escoural são, mas que ao contrário de quase todas as outras já não é caiada, envelheceu-se-lhe a traça, e em volta pouco há de vizinhança, apenas gado a pastar e sobreiros hoje “despidos” de cortiça. A porta está entreaberta, as tiras das cortinas de plástico chocalham ao vento, os estores estão corridos, campainha não há e dentro dela não responde ninguém ao “ó da casa”. Vindo das traseiras, e trazendo duas cebolas na mão que acabara de colher no quintal para o almoço, surge desconfiadamente por um pequeno portão de madeira José, pai de António Casquinha, um homem baixo, curvado, cambaleante, cego de uma vista e enlutado. Entra em casa, pousa as cebolas sobre a mesa da cozinha e explica à mulher que vêm conversar sobre o filho morto. Sugerem-nos que entremos.
Na cozinha o almoço está preparado e repousa no tacho. A conversa faz-se ao lado, na sala, sentados em torno de uma mesa com flores artificiais no centro, toalha plástica e também florida, caixas e bulas de medicamentos em volta. “Sentem-se, sentem-se…”, propõe Maria Luísa, enlutada tal como José, olhando depois para um retrato do filho António pendurado na parede, um retrato que logo, e tantos anos depois da sua morte, a faz lacrimejar. E entre um suspiro diz: “Não estava lá, em Vale do Nobre. Não estava. O meu marido é que estava. Ninguém esperava. Não, não. Não… [chora] Foi muito complicado, muito. Ele tinha dezassete anos. Ninguém nos ajudou nadinha, nem o Estado, nem a GNR… [pausa] Nem os próprios camaradas do partido ajudaram nada. Ninguém. Se não tivéssemos o que comer, não comíamos. Comecei a trabalhar com doze anos, sabe? Sempre trabalhei de sol a sol para os meus filhos não passarem fome. Tive dois, só dois… [chora, agora mais compulsivamente, puxando de um lenço de papel que guarda no bolso do avental] E levaram-me um!”
José Casquinha esfrega as mãos depressa. Aperta-as uma contra a outra. Tosse, ofegante, enquanto ouve a mulher. Contém as lágrimas, volta a esfregar as mãos. E conta: “O malandro matou o meu filho e nessa noite fugiu! Se me tivessem dito onde esse malandro estava, eu era capaz de lá ir e de o matar. Fazer-lhe o mesmo que ele fez ao meu filho. O meu filho estava a trabalhar, não estava a roubar! Sabe: ouvi-os [GNR] dizer uns para os outros: ‘Ainda bem que já lhe acabámos com a raça!’” Tem hoje 86 anos. Maria menos seis. José, embora tivesse presenciado o que em Vale do Nobre aconteceu, pouco consegue lembrar do dia em que viu o filho morrer-lhe metros à frente. “A gente fomos daqui [Escoural] para uma herdade, que era Vale do Nobre, fomos lá ajudar a apanhar um milho a uma cooperativa [Bento Gonçalves]. E apareceu lá a GNR. Os homens [da cooperativa] tinham lá umas vacas e a GNR tentou levar as vacas para outro lado. E a gente meteu-se todos à frente. Quando a gente se meteu, foi quando os gajos começaram a fazer fogo, mataram o meu filho e mataram o ‘Caravela’. Isto podia ter-se evitado! O que é que aquele homem ganhou ao fazer aquilo?! Quem? O GNR! Quando me inteirei que mo tinham matado, desmaiei. E não me lembro de mais nada”, explica.
A mulher interrompe-o. “Sabe, eu fiquei muito mal da cabeça desde que aquilo me aconteceu. Não há dor como esta. Nunca me há-de passar. A doença [depressão] vai-me acompanhar para o resto da vida. O meu filho era das coisas que eu tinha a que mais gostava e mataram-mo”, conta. “Deixaram aqui uma desgraça na minha casa. [chora] Nunca mais tivemos alegria nenhuma, nunca mais fomos a lado nenhum. Às vezes convidam-nos, para casamentos, para festas, mas nunca mais daqui saímos e aqui estamos. Temos uma reformazita que mal chega para pagar os medicamentos… [choram ambos] O meu filho não fez mal a ninguém! Tudo por causa das vacas… O malandro do GNR abalou daqui, ficou bem e não sofreu nada. Abalou logo nessa noite para Lisboa”, explica José Casquinha.
O homem levanta-se, retira um retrato do filho António do armário em frente, segurando-o depois nas mãos trémulas. Maria pousa os olhos sobre a mesa e evita o retrato. “Ele nunca quis estudar — as nossas posses também não eram muitas –, queria era trabalhar na cooperativa, ajudar com a casa. A vida dele era trabalhar. Ele dizia-me: ‘Mãe, a senhora é doente e anda a trabalhar, então eu também quero ir trabalhar!’ Era muito bom rapaz. Não há aqui no Escoural quem lhe diga mal dele. Se disserem, mentem. Era muito, muito educado. Não tinham nada que fazer aquilo ao meu filho. O que tinham de fazer era falar. Não era assim, a matar, como se estivessem a atirar a um coelho ou a uma lebre. E isto é uma morte que me custou muito. [chora] Se o meu filho estivesse doente, se tivesse um desastre qualquer, eu encarava isto de outra maneira. Assim não aceito. Ele tinha dezassete anos. Dezassete!”
Sobre a Reforma Agrária, cujo fim indiretamente foi também a causa da morte de António, nenhuma mágoa têm. Apenas a mágoa de ter terminado tão abruptamente. “A Reforma Agrária trouxe trabalho às pessoas. Trouxe isso e trouxe fartura, semeava-se tudo e agora não se semeia nada. Hoje os governos pagam subsídios aos agrários para não se semear nada. Naquela altura, aqui na cooperativa [Unidade Coletiva de Produção do Escoural], semeava-se tudo, semeava-se trigo, tomate, centeio, tudo. Havia fartura! Antes havia aí vacadas com cinquenta vacas se tanto; agora é às quatrocentas, quinhentas, só há vacas, não há mais nada no Escoural. E há vacas porque há subsídios para as ter”, lamenta-se José, encolhendo os ombros. A mulher, Maria Luísa, é também ela saudosista da Reforma Agrária e dos dias atarefados, mas felizes, que então viveu: “Era uma coisa boa, para a gente trabalhar, para se governar. Tínhamos que trabalhar de sol a sol para trazer alguma coisa para casa. Fazia-se o que se podia, de dia e de noite. Era tudo semeado a perder de vista. E havia camaradagem. Hoje não. A gente gostava é que isto melhorasse, sabe? Mas não melhora, não melhora”.
À despedida, cá fora, quando os dois se sentaram num banco, à sombra, uma derradeira pergunta há ainda a fazer: indemnizados pela morte de filho António, foram? “Nada! Nada, nada. Esteve aí a Polícia Judiciária na altura, falou com quem quis, não falou com quem não quis, e também meteu isto para trás das costas, também não quis saber de nós. Ninguém nos ajudou — e a gente também não tinha dinheiro para um advogado, não é? Ninguém nos ajudou”, explica José Casquinha. A mulher acena e confirma. Volta a procurar no bolso do avental o lenço de papel.
Da herdade Vale do Nobre… a São Bento. E uma investigação (nunca divulgada) que se perdeu em Évora
Aquando das mortes de Casquinha e “Caravela” em São Cristóvão, a então primeira-ministra Maria de Lurdes Pintassilgo encontrava-se de partida para Nova Iorque, onde discursaria na Assembleia Geral das Nações Unidas. Adiou a viagem ainda de manhã. E, nesse mesmo dia, o seu gabinete emitiria um comunicado a propósito das mortes em Montemor-o-Novo: o Governo dizia lamentar “profundamente” a morte dos trabalhadores e mandava instaurar “imediatamente” um inquérito. Lurdes Pintassilgo considerava, por outro lado, que a sua determinação “em criar um clima de acalmia e serenidade na vida portuguesa” havia sido “posta à prova” e declarava não poder deixar de “repudiar firmemente o clima de violência que, sob muitas e disfarçadas formas, a tais extremos conduz”.
Após a reunião de emergência entre a primeira-ministra e o ministro da Agricultura e Pescas, Joaquim Lourenço, a 27 de setembro, o Governo tomou a decisão de suspender as devoluções de reservas agendadas para esse mesmo dia, em Montemor-o-Novo e Avis, em Portalegre. Mas a “Lei Barreto” não cairia com as mortes em São Cristóvão. Dias depois, o ministro Joaquim Lourenço reunir-se-ia em Lisboa com Capoulas Santos, hoje ministro da Agricultura, Florestas e do Desenvolvimento Rural — mas à época diretor do Centro Regional da Reforma Agrária. Ao Expresso, fonte presente na reunião confidenciou que o ministro da Agricultura prometeu que “a entrega de terras vai continuar”. E continuou.
O caso tornara-se político, um contar de espingardas entre os defensores da “Lei Barreto” e aqueles que a ela se opunham.
Logo no dia em que Casquinha e “Caravela” foram mortos, Maria de Lurdes Pintassilgo recebeu Álvaro Cunhal em São Bento. À saída, o líder comunista afirmou: “Estou aqui devido aos acontecimentos que hoje tiveram lugar no país. Vim aqui, a meu pedido, para informar o Governo das preocupações do meu partido quanto aos acontecimentos, e chamar a atenção para a sua gravidade, quando implicam vidas humanas. Pensamos que há um grande perigo de continuar a política do Governo anterior [de Mota Pinto]. Não é com violência, nem com mortos, que se resolvem problemas políticos e sociais. É necessária a negociação, é necessário o diálogo, é necessário ouvir os trabalhadores. Têm direito à vida. Têm direito ao seu bem-estar, à sua segurança, à tranquilidade das suas famílias. É isto que nós pensamos que é essencial”. Nenhum outro líder político foi recebido por Maria de Lurdes Pintassilgo.
A receção da primeira-ministra a Cunhal não caiu bem na oposição. E não só. Em comunicado, a Confederação dos Agricultores de Portugal — mais próxima dos agrários do que das cooperativas e, portanto, do Partido Comunista – responsabilizava a “fraqueza” do Governo e a “tática política” de Cunhal pelas mortes em Montemor-o-Novo: “Sacrificaram-se duas vidas humanas, há cinco feridos graves, agravou-se o clima social, reavivaram-se conflitos como reflexo de um Governo fraco, tímido, atemorizado com slogans, capaz de tudo comprometer por cedências ao Partido Comunista”. Para a confederação, Lurdes Pintassilgo havia perdido “toda a autoridade”, acusando esta também o Partido Comunista de “se atrever a levar a sua manipulação sobre os sacrificados trabalhadores alentejanos ao extremo da confrontação armada com a GNR, quando esta atuava no cumprimento da sua missão de respeito pela legalidade democrática”.
O Partido Socialista, em comunicado, foi duro com Pintassilgo. Aproximavam-se as eleições legislativas de dezembro de 1979 – que resultariam na eleição de Sá Carneiro como primeiro-ministro. “O clima de violência que se tem vindo a instalar no Alentejo após a queda do último Governo socialista só aproveita às forças radicais de ambos os lados. Nem as forças da segurança nem os trabalhadores se devem deixar instrumentalizar pelos extremistas que procuram o confronto a fim de melhor imporem os seus objetivos”, acusava o PS. Por sua vez, António Ramos, presidente da comissão política distrital de Évora do PSD, afirmava à ANOP ser “de lamentar que existam, ainda, alguns trabalhadores mal informados em relação ao cumprimento das leis que foram aprovadas democraticamente na Assembleia, e que se deixem cair em situações destas que levam a perdas irreparáveis”. Todos concordavam, socialistas e sociais-democratas: as devoluções de reservas aos antigos proprietários deviam continuar.
Marcelo Rebelo de Sousa, então cronista do Expresso, escrevia na sua coluna de opinião: “A questão que se encontra subjacente a estes incidentes (…) traduz-se num confronto aberto e aparentemente irremovível acerca do conteúdo e, consequentemente, da execução da lei de Bases da Reforma Agrária. Duas posições frontalmente opostas separam aqueles que entendem que a lei deve ser executada, sem demora, e com maior ou menos firmeza, e aqueles que desde sempre contestaram o conteúdo da lei e têm preconizado a sua revisão ou alteração.” E questionava, o agora Presidente da República: “Será que a nossa Democracia se pode considerar estabilizada quando persistem confrontos desta gravidade em matéria de aplicação de uma lei fundamental do nosso regime económico? Será que alguém, na esquerda como na direita, pensará, um destes dias, a sério nos dramas dos trabalhadores alentejanos, dos quais o desemprego é talvez o maior?”
Por ter resultado em duas mortes – causadas por militares da GNR –, o incidente de Montemor-o-Novo foi entregue à Polícia Judiciária Militar. Uma investigação que foi desde o primeiro dia, de forma mais ou menos declarada, alvo de pressões. E não somente as políticas. O então Conselho da Revolução escrevia em ata a 29 de outubro de 1979, quase um mês após as mortes: “O Major Vasco Lourenço, tendo tido conhecimento que o processo referente aos acontecimentos de Montemor transitara para a Polícia Judiciária Militar, levantou o problema, anteriormente debatido, da não aplicação do Código de Justiça Militar às forças de segurança, propondo que o assunto fosse estudado com urgência, uma vez que, em seu entender, considera estarem a ser praticadas ilegalidades.”
Pouco a pouco, o caso das mortes na herdade Vale do Nobre esbatera-se na opinião pública. A conclusão da investigação da Polícia Judiciária nunca foi divulgada. O Observador tentou ter acesso ao processo. E contactou a Polícia Judiciária, que responderia: “A PJ não dispõe da documentação pretendida. Foram consultados livros de registos e relatórios anuais da Diretoria de Lisboa; todas estas pesquisas iniciais resultaram infrutíferas.”
Talvez a investigação tivesse sido enviada para a Torre do Tombo, sugeriram-nos. Não foi. De volta ao contacto com a Polícia Judiciária, surgem então mais informações sobre o rasto da investigação. O processo foi registado na Diretoria de Lisboa da Polícia Judiciária a 25 de junho de 1980 – quase um ano após as mortes de Casquinha e “Caravela” –, tendo por base um processo (n.º 119/80) do Tribunal de Évora. Este recebeu na Diretoria de Lisboa da Polícia Judiciária o n.º 13104/80 e foi distribuído à 3.ª Secção.
“Aparentemente, a resposta da 3.ª Secção foi no sentido da devolução à comarca de Montemor-o-Novo, com ‘a proposta de ulterior remessa à Polícia Judiciária Militar’. O processo foi remetido, em 22 de janeiro de 1981, para o Tribunal de Montemor-o-Novo, pelo nosso ofício n.º 2330 (numeração da Secretaria da Diretoria de Lisboa da Polícia Judiciária) e não há indicação/averbamento de ter regressado aqui”, explicou a Polícia Judiciária. Contactado pelo Observador, e ao fim de várias semanas de pedidos, a resposta que chega por telefone da Unidade Central da Procuradoria de Montemor-o-Novo é vaga: “Vai ser muito difícil encontrar isso… Se é que existe ainda!” O relatório da investigação, a existir, perdeu-se. As suas conclusões são um mistério até hoje, sendo certo que nenhum militar da GNR foi acusado de homicídio em Vale do Nobre.
A última informação a que o Observador teve acesso é de 15 de dezembro de 1980, mais de um ano após as duas mortes em São Cristóvão. Escreveu o “agente Guerreiro”, responsável na Polícia Judiciária pela investigação, ao então Procurador Geral da República Eduardo Arala Chaves: “Informo V. Exª. de que nos encontramos a analisar um processo de inquérito referente aos mesmos factos e realizado por um magistrado judicial, e que logo que possível penso devolver o processo-crime à comarca de Montemor-o-Novo com proposta de ulterior remessa à Polícia Judiciária Militar, por ser esta a entidade competente para a investigação.”
“O Barreto foi o devassador do Alentejo! A Reforma Agrária não era um sonho, era legal”
– “Não estiveste lá, tu?”
– “Não, não.”
– “António? O António creio que esteve?…”
– “Só depois, só depois é que lá cheguei. Não vi nada.”
– “Então quem é que esteve na herdade?!”
– “Epá, quem esteve em Vale do Nobre foi o Parreira, ele é que esteve.”
Hoje, e quase quatro décadas depois, na Associação de Reformados do Escoural, mesmo no centro da freguesia, em frente ao largo da igreja, poucos são os que querem falar sobre o que se passou em 1979. Após o almoço, a associação reabriu e está repleta de gente. José Luís Parreira, 73 anos, é o presidente. Enquanto outros bebem “copos de três”, jogam competitivamente (com direito a amuos e praguejo) à bisca ou tão simplesmente cirandam pela associação, atiram um “boas tardes” e saem, Parreira está sentado numa poltrona ao canto, afastado do corrupio, com ar circunspecto, em silêncio. “Falaram com os pais do Casquinha, foi? Eles disseram o quê? Mas falar mais disto para quê?! São coisas que já passaram. Só tivemos foi prejuízo”, começa por atirar.
A custo, e sussurrando quase impercetivelmente (o ruído em volta não “contribuía” para a perceção, diga-se) no começo, acaba por recordar o dia da morte de Casquinha e “Caravela”. “Pronto, começaram a entregar as terras aos agrários, depois aconteceu isso. Eles [Governo] queriam acabar com a Reforma Agrária e acabaram. Ninguém estava à espera do que aconteceu naquele dia. A GNR estava lá no monte, depois vinham os outros [técnicos do ministério da Agricultura e do Centro da Reforma Agrária] a acompanhar as vacas quando se deu aquilo. Até estou convencido de que a maior parte deles nem eram da GNR: eram agrários vestidos com fardas da GNR. Era a entrega das vacas, pronto. Mas isso era contra aquilo que os trabalhadores queriam, porque a maior parte das vacas eram dos trabalhadores, não é? Não eram do agrário coisa nenhuma. Por causa disso é que se deu o que se deu”, lamenta, recostando-se na poltrona em seguida.
Parreira era delegado sindical à época. E volta a revolver na memória — agora numa toada mais vigorosa: “Isto foi em 1979. A Reforma Agrária ainda durou mais uns quinze anos, não acabou logo. Mas para nós acabou naquele dia. Não era a mesma coisa. Todos os dias havia problemas com a GNR. Infelizmente, o único sítio onde fizeram fogo foi connosco. As pessoas revoltaram-se, a GNR dizia que não tinham sido eles, mas nós vimos: foi a GNR! Mataram dois e ainda acertaram na perna de outro. Eu é que andei com ele [o ferido mais grave, Florival António Carvalho] às costas quase dois quilómetros. Curiosamente, esse que levou o tiro ainda acabou por ser um lacaio dos agrários, andou aí a trabalhar para eles. É por isso que um gajo não gosta de falar disto, está a perceber? Foi o que foi. Eu ia ‘rebentando’ com ele às costas e depois virou um lacaio.”
A culpa? O presidente da Associação de Reformados do Escoural encontra vários culpados, uns políticos, outros militares, nunca os trabalhadores. “A GNR começou aos tiros. Eles é que tinham a força nessa altura. Têm tido sempre a força. Quem foi? Não sabemos. A Polícia Judiciária Militar esteve aí, nós dizíamos o que se passou e eles [GNR] diziam outra, desmentiam. Eles é que sabiam… Por isso é que não deu em nada. Agora aquilo [herdade Vale do Nobre] está ao abandono, foi vendido a um gajo qualquer lá do norte. A gente chegámos a ser novecentas e tal pessoas na cooperativa. Só daqui do Escoural. Todos com trabalho. Todos pagos a tempo e horas. Agora não há aí nem cinquenta, nem cinquenta! A gente comprou duas herdades, nossas, pagas por nós, tínhamos lá de tudo, mas aqueles malandros lá do PPD só queriam era a Reforma Agrária destruída”, recorda.
À saída da associação, Parreira atira: “Isso quem lhe sabe explicar bem é o Chico Carvalheira, um senhor já de idade que está acolá no lar do Escoural. Ele tem tudo apontado, tudo apontado. Ele trabalhava aí no campo com a gente, mas apontava tudo”.
Por ser um dos poucos na cooperativa que à época sabia ler e escrever, Carvalheira fora escolhido para ser secretário. Tem hoje 90 anos. No lar, a enfermeira dirige-se à sala e avisa-o da visita, este aproxima-se vagarosamente, sempre apoiado sobre a bengala, e começa por dizer, antes até da pergunta: “Querem saber o que é que aconteceu, é? Não quero ir por aí além, porque não assisti. Nunca fui lá às entregas da propriedade — no caso, eles queriam era as vacas — ao agrário. Eles [Governo] andavam a expropriar as cooperativas nessa altura e deu-se essa coisada toda. O Joaquim Guindaça era o chefe aqui desta cooperativa [Unidade Coletiva de Produção do Escoural]. Ele é que pode adiantar muito. Há muitas falsidades que se contam. Está a perceber? Cada um puxa para o seu lado.”
— “Se forem lá sem mim ele nem a porta vos abre…”
Segue connosco até à casa de Guindaça, a poucos quarteirões de distância, mas longe do centro da freguesia. O antigo chefe da cooperativa do Escoural era “da confiança do Álvaro [Cunhal]”, explica-nos Carvalheira. “Estiveram os dois no funeral, lado a lado.” Guindaça está sentado com a mulher à soleira da garagem. Assim que o carro se aproxima e avista Carvalheira no interior, aproxima-se do vidro e pausadamente diz: “Querem falar da Reforma Agrária, é? Se estivesse a vigorar, o que era de Portugal, o que era do Alentejo! Só nesta cooperativa trabalhavam seiscentas e noventa e cinco pessoas. A Lei Barreto revoltou-nos muito, o [António] Barreto foi o pior. Esse homem foi o devassador do Alentejo! Tshiiiii, Jesus!”
O Observador tentou contactar António Barreto para esta reportagem, sem sucesso. Barreto foi ministro da Agricultura do I Governo Constitucional, entre 1976 e 1978. É dele a autoria da lei de Bases da Reforma Agrária, lei que poria fim às ocupações das cooperativas. “Foi o gesto político de que mais me orgulho e que mais me honra”, confidenciou em entrevista ao Jornal de Negócios, em meados de 2010.
Na altura da “Lei Barreto”, as terras ocupadas produziam mais do que antes da Reforma Agrária? Barreto nega na mesma entrevista: “Os ocupantes, em geral, quiseram demonstrar a sua superioridade, por isso semearam o mais possível — mesmo com riscos de não fazer os pousios adequados, o que causou problemas. De qualquer maneira, a ideia de que no Alentejo havia milhares e milhares de hectares não cultivados era um mito ou uma mentira. Havia alguns casos, mas nada que se pareça com o que se dizia. E ainda diz…”. Sobre as duas mortes (ou, pelo menos, a violência) durante as entregas de reservas, António Barreto é parco em declarações. Mas explica: “No meu tempo de Governo, foram devolvidas poucas terras e poucas herdades. Era o início. Foi preciso muita força. Foi preciso intimidar, a fim de evitar uma guerra civil. Foi preciso usar alguma violência controlada, pois era indispensável não causar feridos e mortos — o que, no meu tempo, se conseguiu.” Deixaria o ministério a 22 de janeiro de 1978.
“Efeitos importantes e duráveis da reforma agrária? Nenhuns”, lembrava o antigo ministro da Agricultura ao Negócios. E prosseguia: “A não ser que dividiu a população, abriu feridas e criou conflitos. (…) Toda a minha juventude tinha sonhado [António Barreto foi militante do Partido Comunista entre 1963 e 1970] com a Reforma Agrária, isto é, a distribuição de terras das grandes propriedades por agricultores e camponeses sem terra. De repente, dou comigo a devolver a terra aos antigos proprietários, que tinham sido ilegalmente esbulhados. Sem que sequer se tenha distinguido entre bons e maus lavradores, entre empresários e absentistas! Os erros e os princípios políticos da primeira Reforma Agrária (…) destruíram qualquer hipótese de levar a cabo uma Reforma Agrária verdadeira.”
Voltamos ao Escoural.
– “Se querem conversar comigo, vamos sentar-nos. Como vêm com o Chico Carvalheira, atendo-vos.”
Sentamo-nos à entrada da garagem. Guindaça vai agitando o molho de chaves que segura na mão esquerda. Quando o tema é incómodo ou o entristece, agita-as vertiginosamente. A “Lei Barreto” é incómoda. “O fim da Reforma Agrária? A Pintassilgo foi a que teve menos culpa disto. Primeiro foi a ‘Lei Barreto’. A seguir, foi esse vigarista do Cavaco Silva [o então primeiro-ministro chegou a afirmar, à época, que só retomaria a construção da barragem do Alqueva depois de ver resolvido o problema da propriedade agrária no Alentejo], foi ele que deu a facada final nisto tudo. Pagavam — e pagam — aos proprietários para não semear. Aqui, no Escoural, o Partido [Comunista] tinha duas herdades com condições para tudo. Para a pecuária, para semearem, para colherem, para tudo. Não estou a mentir nada. Teve estufas, teve um hectare ou dois de morangos, tomate — havia uma estufa de tomate que dava quinze mil quilos –, pepino, azeite, havia três meses durante o ano em que era impossível dar conta de tanto trabalho. Impossível! E a gente fazia contratos para vender. Foi fora-de-série. Vendia-se tudo a tempo e horas. Isto é tão verdade como a gente estar aqui os três sentados”, conta de enfiada. E continua: “Hoje é uma tristeza ver ao que isto chegou. Hoje está tudo escavacado. Até me sinto mal. Eram as herdades dos meus encantos. Quando a cooperativa as comprou o que mais havia era mato. E fizemos daquilo um ‘brinquinho’. Há quem diga que nós roubámos as terras. É mentira: eles [Governo] é que roubaram a vida que as pessoas tinham, o bem-estar. A Reforma Agrária não era um sonho, era legal. As pessoas queriam trabalhar, só isso.”
– “Você teve sorte de ter ido nesse dia a Évora e não ter ir a Vale do Nobre, oh Chico!” – atira Guindaça para Carvalheira, sentado a seu lado, mas sempre em silêncio.
Mas o que é que aconteceu ao certo na herdade em São Cristóvão? Suspira e responde: “As árvores por cima de mim ficaram todas cortadas. Todas cortadinhas! As vacas estavam por baixo de um sobreiro, a correr, eu estava lá, e a rama ficou toda cortada pelas balas. Rajadas e rajadas de metralhadora. Não ficaram lá mais porque não calhou. A morte estava lá programada para o pai [José Casquinha] e para o filho [António]. Toda a gente diz o mesmo.”
Como assim “programada”? “Ninguém soube de nada, ninguém recebeu indemnização nenhuma, porque foi tudo abafado. Nessa noite houve logo transferências de guardas aqui do Escoural, ninguém sabe para onde é que eles foram. Foi um sofrimento e a culpa morre sempre solteira. Há quem diga que aquilo foi uma morte programada, uma encomenda, pronto… (longa pausa) Havia acolá um salão no Escoural — e todos os fins-de-semana se faziam espetáculos. E acho que o pai e o filho [Casquinha] houve uma vez que se pegaram com um guarda ou dois [da GNR]. Pronto, os tipos ficaram logo com eles ‘marcados’. Como na altura eles faziam o que queriam, pronto… A Polícia Judiciária só falou com quem não havia de falar. Comigo ninguém falou. Acha que eles queriam falar com alguém da cooperativa? Claro que não… Eles só falaram lá com a GNR, com os gajos dos serviços e com o agrário, ou seja, com quem não haviam de falar. Nunca mais lá fui [Vale do Nobre] nem quero ir. Quem passa por isto fica com marcas, marcas para a vida. Estive vinte e tal anos na cooperativa e nunca tive um dia como aquele.”
— “Achas que foi por causa de um rebanho de vacas que eles dispararam, Guindaça?”
— “Eles queriam acabar connosco, Chico. As vacas, depois disso, andaram mais de um mês sem ser levadas da herdade. Eles morreram por causa do bem-estar dos pobres. Fazia espécie a muita gente… A GNR havia um tempo em que nem podia ver a gente à frente, ficavam bravos connosco!”
Durante o V Governo Provisório (em funções nos meses de agosto e setembro de 1975), era primeiro-ministro Vasco Gonçalves, e Fernando Oliveira Baptista ministro da Agricultura, foram expropriados 280.000 hectares. Durante o VI Governo Provisório do primeiro-ministro Pinheiro de Azevedo, e com Lopes Cardoso ministro da Agricultura, foram expropriados 680.000 hectares. Aquela que ficou conhecida como “Zona de Intervenção da Reforma Agrária” abrangia uma área com 3.200.000 hectares. Deste total, o máximo de terra que chegou a estar na posse dos trabalhadores foi de 1.140.000 hectares, ou seja, 35,6% da área total. Segundo informação do Instituto Nacional de Estatística, em 1979 trabalhavam nas herdades ocupadas pelas cooperativas cerca de quarenta e quatro mil trabalhadores a tempo inteiro e vinte e oito mil em regime de tempo parcial. Em conjunto representavam cerca de 43% dos assalariados do sector primário no Alentejo.
A 22 de julho de 1977 foi aprovada a “Lei Barreto”, que obrigou as cooperativas a devolver aos antigos proprietários herdades acima dos quinhentos hectares de sequeiro e cinquenta hectares de regadio. Casquinha, 17 anos, e “Caravela”, 57, foram os únicos dois trabalhadores mortos durante este período.