Ao pensar em Satyajit Ray torna-se natural falar na “Trilogia de Apu”, um acontecimento não planeado que começa com “O Lamento da Vereda”, de 1955, também o primeiro filme do realizador indiano. O início da história de Apu introduziu ao mundo um realizador influenciado pelo neorrealismo italiano, que filmava o mundo que conhecia com uma naturalidade inebriante, um misto de tom frenético e poesia. O reconhecimento internacional foi inesperado. Com o passar do tempo, o primeiro filme protagonizado por Apu afirmou-se como uma brilhante história sobre a infância, a vontade de descoberta e a necessidade de quebrar laços para causar diferença. O sucesso foi tal que, no ano seguinte, o realizador voltava à personagem. Não planeava contar a sua história, mas a internacionalização convidava a isso. Assim surgiu “O Invicto” (1956), filme que ganhou os três principais prémios da edição desse ano do Festival de Veneza.
Este segundo capítulo, apesar de estar editado em DVD em Portugal (foi lançada uma caixa com a trilogia há cerca de uma década), nunca conheceu a estreia comercial por cá. Essa falha será finalmente resolvida com a estreia desta cópia restaurada no Cinema Medeia Nimas, em Lisboa. “O Invicto” é o mais importante – e talvez o melhor – dos três filmes. Não é o clássico fascínio do segundo título de uma trilogia, mas se “O Lamento da Vereda” é (bem) contaminado pela falta de apreensão, se guarda o arrojo de uma primeira obra (onde se diz muito com pouco e se abrem portas que não se fecham), “O Invicto” dá um passo marcante na vida de Apu e no cinema de Ray, colocando uma série de marcas que iriam estar presentes nos filmes mais imponentes da sua carreira, seja a transição de um país para o pós-colonialismo, sejam as relações familiares que começam a mudar com os movimentos evolutivos na sociedade e na economia.
[o trailer de “O Invicto”:]
O filme é marcado pela morte do pai de Apu e, em simultâneo, pela passagem da infância para adolescência, até haver um pé na idade adulta. Nesse caminho, Apu percebe que não tem de seguir o caminho do pai, como pregador, e que pode estudar. Ao fazê-lo, chega à conclusão que é bom aluno e isso encaminha-o para Calcutá e leva-o a afastar-se da mãe. Há um choque permanente entre a tradição e o desejo de modernidade. Se no primeiro filme da trilogia isso já existia, aqui ganha forma como contexto e matéria que irá estar presente em muitos dos futuros filmes de Satyajit Ray.
Esta é a única peça da “Trilogia de Apu” a chegar à sala. As boas notícias é que não precisa de ver o primeiro para desfrutar de “O Invicto”. Apesar de fazer parte do caminho de uma personagem, há no filme uma força de mudança que resiste ao que vem antes e até ao que surge depois. Ou seja, vive bem sozinho. As outras boas notícias é que há outro Satyajit Ray a estrear em simultâneo, “O Salão de Música” (1958), uma das obras-primas da cinematografia do realizador.
Com Chhabi Biswas no principal papel, Ray conta a história de um aristocrata caído em desgraça. Começa no presente, onde uma cena faz denotar um forte tom de superioridade e de controlo. Rapidamente faz um flashback para contar a história do fracasso da personagem. Não começa por uma origem ou um começo, mas por um momento significativo que cria toda uma narrativa sobre a gestão do dinheiro de família e a sua relação com as aparências, o trato, os códigos sociais. Como símbolo de tudo, está o salão de música no seu palácio à beira-rio, onde faz festas de opulência para firmar, de certa forma, a superioridade classista e alimentar o seu vício: a música.
As cenas musicais de “O Salão de Música” são uma preciosidade (especialmente as duas mais marcantes do filme), com alguns dos melhores músicos daquele tempo a participarem no filme. São também um manifesto da importância da música na obra de Satyajit Ray, com uma presença sempre imponente e músicos de peso a trabalharem nas bandas-sonoras, como Ravi Shankar, Vilayat Khan ou Ali Akbar Khan. Voltando ao início do texto, se por um lado é natural lembrar “A Trilogia de Apu” quando se fala de Satyajit Ray, começa a ser cada vez mais comum procurar os seus outros filmes, sobretudo quando surgem oportunidades como esta e é possível entrar noutra filmografia do realizador através destas cópias restauradas que encontram lugar para estrear comercialmente. Há uma primeira vez para tudo e é uma maravilha que estes dois filmes conheçam – mesmo com várias décadas de atraso – uma estreia comercial.
Se acontecer paixão (certamente acontecerá), a partir de dia 8 serão exibidos no Cinema Medeia Filmes seis filmes que em 2014 estrearam em Portugal com cópias restauradas. Entre eles estão os muito recomendados “Charulata” (1964), “O Cobarde” (1965) e “O Santo (1965), obras que em conjunto com “O Salão de Música” abordam de um modo muito natural diversos aspetos de uma sociedade em rápida mudança, quase num registo de continuidade: há um país em transformação e Satyajit Ray filmou-o com diferentes histórias, perspetivas, coragens. Além destes, estarão também em exibição “A Grande Cidade” (1963), “O Herói” (1966) e “O Deus Elefante” (1979), este já a cores.
O cinema, a Índia e o mundo de Satyajit Ray
A cinematografia de Satyajit Ray, sobretudo aquela que fez até finais de 1960, por ser tão irrequieta e com vontade de ser transformadora, tem o dom de criar um magnetismo raro e imediato. Um filme — ou até uma cena — pode ser suficiente para causar uma sensação duradoura. Cineasta que marca? Sim. Fruto das suas influências, mas por introduzir essas influências na sua realidade, criou o seu próprio cinema. Consegue ter um pé no arthouse, como no cinema popular (ou comercial), as histórias são dramas, comédias, aventuras da vida real. O impacto é particularmente forte porque os seus filmes parecem comunicar aquela realidade, ainda hoje, como se fosse o presente.
Não é que a Índia não tenha mudado. Mas tornou aquelas histórias, de um clima de mudança, de uma sociedade a reformular-se, universais. Ainda hoje vemos essas lutas entre pais e filhos, ou os confrontos no ambiente de trabalho. Talvez não haja tantas crianças a brincar na rua, mas a alegria disso existir – ou ter existido – permanece. Nasceu em 1921 (Calcutá), o restauro recente de algumas das suas obras prende-se com celebrações em volta do centenário do seu nascimento (culpe-se o atraso pela pandemia), numa família progressista e bem-educada.
A sua educação permitiu-o passar uma temporada em Londres antes de chegar aos trinta. Essa viagem transformou-o. Teve acesso a cinema que nunca tinha visto e, diz-se, viu muitos filmes durante os poucos meses que escreve na capital britânica. Conheceu o neorrealismo italiano, mas também Jean Renoir, e isso viria a transformar a sua obra. Há qualquer coisa de “O Ladrão de Bicicletas”, de Vittorio De Sica, no seu primeiro filme, “O Lamento da Vereda” (1955), mas fica-se por aí, nessa qualquer coisa. A força do primeiro filme da “Trilogia de Apu” é tremenda e foi capaz de criar uma linguagem de modernidade para o cinema indiano.
O sucesso internacional foi inesperado – um prémio no Festival de Cannes deu-lhe alguma visibilidade – e continuou a fazer filmes com uma velocidade estonteante. Admirável a sua produção, tendo em conta que, com um espírito bem independente, o realizador tomava conta de quase todos os elementos que envolvem a produção de um filme. Ter esse tipo de controlo sobre a obra permitiu-lhe uma carreira coesa – sobretudo no período ao qual grande parte destes filmes que chegam/regressam ao cinema pertencem – e criar uma linguagem em sintonia com as mudanças na Índia mas também com as convulsões do mundo.
Ou seja, os anos 1960 também passam pelos seus filmes. Ao vê-los hoje, apesar da identidade, encontramos formas narrativas de algum cinema norte-americano daquela altura e os temas, salvo algumas distâncias, são semelhantes. Contrariam a ideia de imagem postal da Índia, mas há imensos elementos que tornam a sociedade que retrata reconhecível, sobretudo através da música, no início da carreira, quando trabalha com músicos que levam a tradição indiana para dentro dos seus filmes. Mais tarde na sua carreira, é o próprio que começa a trabalhar as bandas-sonoras, num de muitos exercícios de autodidatismo que protagonizou.
À exceção de “O Deus Elefante”, os filmes deste ciclo mostram apenas um lado de Satyajit Ray, aquele que filma um país ex-colónia que se está a adaptar a uma nova realidade, entre uma certa decadência das velhas instituições, a oportunidade e a vontade de mudar tudo em segundos. Por isso, os filmes, apesar de completos – mesmo os da “Trilogia de Apu” – parece que se complementam, num discurso contínuo sobre um processo em curso. Essa, contudo, é a fase mais popular no mundo ocidental, aquela que melhor se relaciona com a internacionalização. Normal. Depois, o realizador entrou em algum cinema de género – até experimentou o musical – e fez várias experiências no campo do filme, sempre com uma insaciável vontade de aprender, de mudar. De comunicar a realidade como a via.
Morreu em 1992, com 70 anos. Pouco antes da sua morte, teve honras de ser o primeiro indiano a receber um Óscar Honorário da Academia de Hollywood. Aquelas coisas que ficam bem na prateleira. O mesmo não se pode dizer dos seus filmes – a não ser que os tenha em formato físico, em casa. Estas obras que agora se estreiam e são repostas em sala continuam atuais e com uma juventude rara. Ver os seus filmes permanece como experiência transformadora.