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A crítica porventura mais comum à CGTP remete-a para uma rigidez programática e de discurso que não é sensível a qualquer tipo de argumentação. Mas “isso é de quem não está a sentir na pele”, dispara Joana Marques, com quem o Observador falou à margem do congresso que elege os novos órgãos da central.
A administrativa e dirigente do STAL (o Sindicato Nacional dos Trabalhadores da Administração Local e Regional, Empresas Públicas, Concessionárias e Afins) dá o exemplo da proposta salarial deste Governo para trabalhadores do Estado: “É como esta história dos 0,3% que nos queriam dar — como é que se pode aceitar estarmos congelados ao fim de tantos anos e virem dar-nos uma esmola de cêntimos por dia?”
Fora do pavilhão do Independente Futebol Clube Torrense, onde se realiza o congresso da CGTP — e com um sol que não é de inverno —, o Observador falou com participantes na reunião magna da central. Como vêem os novos movimentos sindicais? O que pensam sobre a tão falada crise do sindicalismo? E o que significa o fim da “Geringonça” para a CGTP?
“Parece que estão a gozar com a nossa cara…”
A voz de Joana Marques treme ligeiramente: “É inaceitável…” a proposta do Governo para a função pública. “E mesmo esta história dos 7 euros para os [salários] mais baixos — que já nem é para todos, já seria para uma faixa, embora cada vez mais alargada — não é aceitável! Nós temos os nossos salários — somos da administração local —, nós temos os salários congelados desde 2009 e vêm-nos com uma proposta que parece que estão a gozar com a nossa cara…”
Por isso, acha “muito bem que sejam rígidos com aquilo que são os interesses dos trabalhadores”, porque “não podem simplesmente dar com uma mão e tirar com a outra”. “Vejo muito bem que quando têm que sair que saiam [da Concertação Social], porque estão a transmitir a nossa mensagem, dos trabalhadores”
Carla Garcia, assistente técnica na Câmara Municipal de Sintra, concorda: “A dificuldade torna-se cada vez maior e, por vezes, se não houver esta rigidez, e se não houver este termo, cederíamos por pouco e vamos perder a qualidade de vida que já é diminuta e que diminui cada vez mais”.
A rigidez da CGTP, ou “suposta rigidez”, tem, no entanto, outros nomes para Cristina Monteiro, operadora especializada — “pobre e mal paga”, nas suas próprias palavras — que está ao serviço da Sonae há três décadas e é dirigente do CESP (o sindicato do comércio e dos serviços de onde ascende agora Isabel Camarinha para a liderança da CGTP).
Rigidez? Qual rigidez? “Obviamente que para eles [os patrões e outros críticos] daria muito jeito que nós não tivéssemos essa suposta rigidez — que não é rigidez. É apenas e só a luta de classes”.
“E a luta de classes é isso mesmo — vai sempre opor-nos àqueles que tentam fazer com que a nossa vida seja praticamente um inferno dentro dos locais de trabalho, com baixos salários. A não conciliação da vida pessoal com a vida laboral… Se chamam a isto rigidez… Nós dizemos que o nosso patronato não tem vista larga, tem a vista muito curta”, atira Cristina Monteiro.
Orlando Gonçalves, outro dirigente do CESP — e que curiosamente tem como patrão um sindicato afeto à UGT (o Sindicato dos Bancários Sul e Ilhas) — dramatiza um pouco mais a questão: “Nós não temos rigidez quando lutamos por direitos, os patrões infelizmente é que são retrógrados e querem praticar leis quase do tempo da escravatura. Hoje, uma pessoa vai à casa de banho e é medido quanto tempo vai à casa de banho… é quase do tempo da escravatura”, lamenta.
O sindicalista, que carrega uma flor amarela na mão, tem ainda esta sexta-feira outros problemas mais prosaicos por resolver. “Ofereceram-me a flor para dar à minha mulher” no dia dos namorados. “Vou ver se ela aguenta. Ela pode ficar murcha, alguma coisa se há-de arranjar”.
Novos movimentos sindicais “não são ameaça à CGTP”
E agora uma questão sensível: o que acham dos novos movimentos sindicais, como os casos dos enfermeiros ou das matérias perigosas, que tanto deram que falar? Cristina Monteiro é rápida a responder com uma pergunta: “Onde estão? Onde estão?”, repete. “Este tipo de movimentos que não se sustentam de nada, apenas de opinião pública, aparecem e desaparecem… Resolveram os problemas? Não. De maneira nenhuma”.
Cristina Monteiro rejeita que sejam uma ameaça à CGTP. “Não, porque não é consistente. A luta tem de ser consistente. O acompanhamento aos trabalhadores tem de ser consistente. E eles aparecem e logo desaparecem. E nós vemos onde estão esses enfermeiros…”
E onde estão, afinal? Orlando Gonçalves dá uma ajuda. “Não sou do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, mas um camarada meu, dirigente, disse-me: ‘Orlando, todos os que saíram há uns meses para o Sindicato dos Enfermeiros, que ia resolver os problemas todos, estão todos a pedir para se sindicalizarem. Estão todos a voltar atrás’. Tal como no caso das matérias perigosas, em que acabou por ser um sindicato da CGTP que acompanhou e conseguiu ganhos — e ganhos muito bons para os trabalhadores nessa matéria”, defende o sindicalista.
Joana Marques também concorda que estes movimentos “não são uma ameaça à CGTP”. “São uma ameaça até a eles próprios, porque não estão a juntar-se e a defender honestamente os interesses dos trabalhadores. E acho que cada trabalhador deve pensar naquilo que são efetivamente os ideais e não aquelas manobras políticas que alguns encontram, como esse que me estava agora a falar… e de dinheiros que nunca se percebe de onde aparecem…”
Qual? O sindicato das matérias perigosas? Ou dos enfermeiros? “Os dois!”, ri-se Joana Marques. “Uns de uma faceta, outros de outra. Uns, havia dinheiros que nunca se percebeu de onde vinham… e os outros, dos combustíveis, convenhamos… Aqui [na CGTP] há transparência, há clareza, há honestidade”.
O sindicalismo está em crise. Ou não?
A taxa de sindicalização em Portugal caiu de 60% em 1976 para 15% em 2016, o último ano em que há dados disponíveis. Os dados da OCDE, com base em informação administrativa e fornecida pelas centrais sindicais, têm limitações, mas são o suficiente para alimentar nos últimos anos algumas certezas sobre a crise do sindicalismo. Ou não? Crise? Qual crise?
Outros poderes. Por dentro da CGTP e das contas da central que faz 50 anos e tem de se renovar
— Os últimos anos têm sido difíceis para o sindicalismo, com perda de sindicalizados — lança o Observador para debate entre os camaradas.
— Não… ainda agora anunciaram não sei quantos sócios… — refuta Joana Marques, referindo-se ao anúncio de Arménio Carlos.
— 114 mil… 683 — ajuda Ismael Ferreira, assistente operacional dos Serviços Municipalizados em Sintra.
— Mas — ressalvamos — não foi dado o número de pessoas que eventualmente tenham saído…
— Nós não sentimos essa diferença [no STAL]… — diz Joana Garcia.
— Ao longo das últimas décadas, enfim… os números já foram mais fortes… — insistimos.
— Os números já foram mais fortes, mas que análise é que está a ser feita? Também não nos podemos esquecer que desde 2009, salvo erro, não houve contratações [na administração pública]. Essa análise também tem de ser feita. Estatisticamente, a gente não pode ver só os números. Então, se nós só temos 100 para sindicalizar e estão 100 sindicalizados, por exemplo, falando em números grossos, e não entrou mais ninguém… Aquilo que vemos no nosso sindicato [STAL] e que acabaram de nos dar [na CGTP] é que continua a aumentar.
Sem a “Geringonça”, “sentimo-nos um bocado assustados”
Afinal, a atual situação — em que o PS não tem maioria nem acordo à esquerda — não é favorável para os trabalhadores. É Joana Marques, dirigente do STAL, que o defende. “Nós, trabalhadores, sentimos alguma esperança quando foi a ‘Geringonça’. Recuperaram-se alguns… poucos, muito poucos… passinhos pequeninos, como uma criança que estava a começar a andar… sentimos um alívio”. Mas terminado o primeiro mandato de António Costa e com a recomposição do panorama político em Portugal, os sindicalistas esperam para ver, pessimistas. “Será que finalmente vamos conseguir ter algum aumento, alguma qualidade de vida? Agora sentimo-nos um bocado assustados. Estamos a ver, aliás, com estas propostas de aumentos salariais…“, defende Joana Marques.
O Observador estende o debate a Carla Garcia e e Ismael Ferreira:
— Também vos assusta esta nova realidade política, sem “Geringonça”, como defendia aqui a Joana Marques?
— Sim, claro que sim, claro que nos assusta — diz Carla Garcia.
— Mas esta situação não devia dar mais poder à esquerda? — perguntamos.
— O PS dá poder à esquerda?! — ri-se Joana Marques.
— Não, não, o facto de não haver maioria — clarificamos.
— O PS, ao longo da História, só nos tem dado porrada, eu não me vou esquecer disso. As nossas carreiras foi em que altura?
— Mas o PS, com menos poder… — tentamos replicar.
— Não, o PS está com mais poder, está mais livre para fazer aquilo que sempre fez — responde Joana Marques.
— Está mais livre e acaba por, entre aspas, estar mais bloqueado à direita — acrescenta Clara Garcia — com a parceria da direita para eliminar exatamente o que quer que os trabalhadores possam vir a adquirir. Porque viu-se mesmo no Orçamento do Estado…
— Houve escolhas concretas — segue Joana Marques — eles continuam a dar aos bancos, houve uma opção política e não podemos branquear isto. Houve uma opção política do PS. O PS oferece… uma migalha aos trabalhadores, não nos valoriza. Depois para os bancos e afins há sempre milhões. E são números muito compridos para a gente os decorar. Porque os nossos salários são na ordem dos 635. Temos pessoal a ir agora para a reforma com o salário mínimo. Malta que recolhe o lixo todos os dias — exemplifica Joana Marques, a quem a voz volta a estremecer — Estão completamente estoirados. Não é justo, não é correto. E eles estão lá sentadinhos, às vezes esquecem-se. E quando digo eles… é o PS. Claramente.
Joana Marques lembra que os funcionários públicos tiveram os salários congelados durante uma década, a partir de 2009, mas que “a água, a luz, tudo aumenta”. A alternativa? “Temos de avançar com a luta, porque só a luta nos dá resposta. Não me interessa quem é que lá está, eu interessa-me aquilo que é nosso por direito”.
Ismael Ferreira dá ainda o exemplo das rendas de casa. “Subiram muito, acho que duplicaram ou triplicaram as rendas de casa. Agora vê: se um T1 ou um T0 custa à volta de 600 euros por mês… agora comparar essa renda de casa com o meu salário, vê que há aí uma impossibilidade. Não é possível. Não é possível…”, repete.
O que significa o fim da “Geringonça” não é, no entanto, consensual. Mas, antes, um reparo: “Essa palavra que usou, eu não gosto”, avisa Cristina Monteiro.
O que significa então o fim da parceria do PS com Bloco de Esquerda e PCP? “Neste momento — e mais uma vez graças ao povo português — a correlação de forças na Assembleia da República não deu maioria, e eles [PS] são obrigados a negociar, quer queiram quer não. Agora, nós sabemos que o PS está ali numa linha que não é de todo para resolver as questões mais prementes dos trabalhadores, nomeadamente a retirada das matérias gravosas do mercado de trabalho”.
O camarada Orlando Gonçalves — que não se acanha a usar a palavra cunhada por Vasco Pulido Valente e adaptada de forma pejorativa por Paulo Portas — reforça que “a CGTP apoiará todas as decisões que a “Geringonça” decidiu que fosse a favor dos trabalhadores e esteve sempre contra aquilo que foi contra os trabalhadores”.
Isabel Camarinha — garante Orlando Gonçalves — será uma linha de continuidade, “com ou sem ‘Geringonça’”.
“O excedente? Eu não como com o excedente”
O pavilhão do Independente Futebol Clube Torrense está irreconhecível, pouco habituado a estas andanças da CGTP — com um palco gigante, dezenas de mesas corridas e forrado com mensagens que deixam bem claro aos mais de 700 delegados as ideias-chave para os próximos tempos, umas mais novas do que outras: “35 horas para todos”, “contratação coletiva com direitos, revogar a caducidade”; “SMN (salário mínimo) 850 euros”; “aumento geral dos salários 90 euros para todos”; e, claro, o “fim da precariedade”.
Mas nenhuma destas mensagens têm o alcance do discurso de Arménio Carlos, que, na despedida de secretário-geral da intersindical, apontou baterias ao Governo. Em particular, à obsessão pelo défice. Perdão, pelo excedente.
Arménio Carlos acusa Governo de ser “sementeira para a evolução do populismo”
“Um governo que prioriza o saldo orçamental em detrimento da justiça social é a sementeira para a evolução do populismo e o ressurgimento da extrema-direita, que se alimenta destas contradições, que as usa como elemento de atração, que procura dividir e criar falsos antagonismos entre os explorados, para que prossiga a acumulação dos exploradores”.
As contas públicas são tema inevitável cá fora também. “Agora dizem-nos que há margem… mas o que nos interessa essa margem se as pessoas continuam na pobreza? Existe excedente… eu não como com o excedente, nós não vamos trabalhar com o excedente…”, lamenta Joana Marques. “Se há excedente é para utilizar, está lá o dinheiro. Há escolhas. E esse dinheiro deve ser utilizado”.
“Eu todos os dias apanho o comboio — sou da linha de Sintra — e todos os dias há comboios atrasados, não há comboios, são suprimidos ou agora têm a bela teoria de dar uma nova hora. Nós vamos sardinhas em lata. Quer dizer, isto não é qualidade”, continua, dando ainda o exemplo da saúde. “Eu vivo num concelho que nem um hospital público como deve ser tem — temos o Amadora-Sintra e não há este investimento”.
“O caso é simples”, complementa Carla Garcia. “Basta o facto de eles não investirem em bancos tóxicos, como foi o caso do Novo Banco e afins. E, se calhar, se esses milhões fossem investidos nos trabalhadores e em certas qualidades a nível de saúde, infraestruturas para a população, daria caminho para outra viabilidade para nós cidadãos como em termos governativos”.
Cristina Monteiro — que critica o Governo anterior, por considerar que Passos Coelho foi “além da troika” em prol “de meia dúzia de poderosos e dos detentores do poder económico” — lamenta também as decisões do executivo de António Costa.
“Isto é uma opção. Em vez de canalizar para a saúde, para a educação, para tudo o que é bem estar do povo português, não… estamos a salvar bancos… e foram eles próprios que geriram a própria desgraça. Porque não foi o povo português, não fui eu… fomos completamente enrolados por quem se aproveitou — e de que maneira — da banca. É fraude, paraísos fiscais, não foi o povo português. E o que faz este Governo? Injeta dinheiro em bancos privados tudo aquilo que eu pago de impostos”.
Coronavirus, Palestina e… a tendência socialista
As contas públicas, bem como as relações laborais, acabariam por ser tema transversal nos diversos discursos do Congresso que elegeu esta sexta-feira Isabel Camarinha como nova secretária-geral da CGTP.
Antes, ao longo da manhã, houve momentos musicais, poemas e um vídeo com os rostos e as mensagens da luta. No Pavilhão da Torre da Marinha entraram em cena tambores e dezenas de voluntários a segurar bandeiras, com o mote “CGTP, unidade sindical” em pano de fundo. Os delegados abraçaram-se e bascularam ao som da música ou registaram o momento no telemóvel.
Os trabalhos seriam então iniciados, com a eleição da mesa do Congresso e a saudação às dezenas de delegações internacionais presentes. Só que os parceiros chineses não estão — o sindicato teve de anular a vinda por causa do coronavirus. “Manifestamos a nossa solidariedade ao sindicato e ao povo chinês”, disseram na mesa do Congresso. Uma salva de palmas. Maior só no discurso de Arménio Carlos; quando a palavra Palestina foi mencionada — várias vezes — ao longo do dia; e, sobretudo, quando se anunciou o resultado da votação para o Conselho Nacional.
Antes de almoço, Arménio Carlos faria então o discurso da despedida, ao longo de 40 minutos, com a voz a ir cedendo à rouquidão, enquanto disparava em direção ao PS, à União Europeia e ao “grande capital”. À tarde foram discutidas as orientações para a atividade sindical dos próximos quatro anos.
Tudo decorreu com normalidade a caminho da inevitável eleição de Isabel Camarinha ao final da noite. Mas antes, uma surpresa: os sindicalistas socialistas da CGTP decidiram apresentar um candidato próprio a secretário-geral, Fernando Gomes, por quererem independência sindical face aos partidos. A militância comunista de Isabel Camarinha gerou na corrente socialista “sérias preocupações”.
Os delegados ao congresso, no entanto, não partilharam da inquietação desta tendência. Isabel Camarinha torna-se, por isso, aos 59 anos, a nova secretária-geral da CGTP — a primeira mulher a liderar a organização em 50 anos de existência.