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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Sem água, luz ou rede, em Paiporta vive-se “o apocalipse”. “Nunca pensei entrar num supermercado e roubar”

Assaltos a supermercados, falta de água e, sobretudo, de ajuda. Como uma povoação nos subúrbios de Valência virou terra sem lei depois da tragédia.

“Não há luz, não há água, não há comida, não há telefone, não há carros. O que fazemos?” Ramon Gonzalez pergunta, mas não espera uma resposta. Os dedos cobertos de barro seco deslizam pelo ecrã do telemóvel para mostrar o armazém de ferramentas e construção (dois pisos e um projeto de uma vida) que foi consumido pelas cheias.

Tem a roupa tingida, o olhar cansado. “Perdi tudo”, diz ao Observador enquanto escoa as águas barrentas de casa dos sogros. “Entre as duas famílias perdemos oito carros.” A mulher acena, ao mesmo tempo que afasta a água escurecida para a rua.

Há um contraste entre o silêncio da noite e o ruído do dia na Comunidade Valenciana que continua a ver as cifras de mortos a aumentar a cada minuto à conta da DANA (sigla de Depresión Aislada en Niveles Altos), a tempestade que atingiu a região. As cheias em Espanha mataram já mais de 160 pessoas, e quase metade foi no município de Paiporta, na região de Valência.

Os sons misturam-se. Uma retroescavadora desbrava a lama e revela algo próximo do que foi em tempos o chão. Uma criança chapinha com as mãos na textura sedosa do material. Nas varandas e janelas, os vizinhos comentam os destroços que observam com vista privilegiada.

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“O que estão a ver está igual desde que a água chegou aqui há dois dias”, afirma Nuria Lajusticia, 38 anos. “Há aqui polícia às voltas, mas aparentemente só estão a fazer rondas. Não temos água, nem luz, nem cobertura…”, enumera. Em conjunto com o marido, assumem temer os próximos dias. “Tudo o que tínhamos apodreceu. O que tínhamos congelado descongelou-se porque não temos luz.” Não fazem ideia do que se diz ou escreve sobre o lugar onde vivem. “Não temos televisão, não temos internet, não temos nada.”  Grávida de 18 semanas, Lajusticia mostra-se preocupada, mas está impossibilitada de entrar em contacto com o médico que a acompanha.

Na mesma rua, uma mulher mais velha, de farta cabeleira branca, avança sobre a lama com uma vara de trekking. À pergunta “para onde vai?”, responde: “Para o fim do mundo.” Esboça um sorriso e desvenda o mistério: “Dizem-me que há água no polidesportivo.”

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Outros também se vão juntando à peregrinação informal até à dita rua, a uma centena de metros dali, onde há uma fila para encher garrafas e garrafões de um líquido turvo e acastanhado. Quem diria que uma casa destruída com uma garagem alagada poderia ser uma benção para os vizinhos? Com recurso a uma bomba retira-se toda a água que servirá muitas famílias. “Não é água potável, mas sempre dá para tirar o barro e para limpar, fazer descargas”, explica um jovem na fila.

[Já saiu o quinto e último episódio de “A Grande Provocadora”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de Vera Lagoa, a mulher que afrontou Salazar, desafiou os militares de Abril e ridicularizou os que se achavam donos do país. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio, aqui o segundo, aqui o terceiro e aqui o quarto episódio .]

A busca por água tornou-se uma prioridade nas últimas horas para grande parte da população da Comunidade Valenciana. Cerca de 366 mil pessoas continuam sem acesso a água potável em pelo menos 20 municípios da região, escreve o jornal local Las Provincias, citando dados da autarquia da Província de Valência. Se no centro de Valência já há supermercados sem água natural em stock, nas pequenas povoações onde não chegam repositores ou camiões diariamente o caso é ainda mais dramático. Em todo o leito do rio em Paiporta são muitos os que enchem baldes e bidões com água para tarefas várias que não a do consumo direto.

Por isso, a água tornou-se o bem mais procurado.

“Sim, pode-se beber, é potável!” As palavras ecoam como cântico dos anjos para quem tem a sorte de estar na outra ponta de Paiporta. Um grupo de homens organiza duas filas para que todos possam aceder à água cristalina que sai de um ponto de água da rede de abastecimento. O passa a palavra mobiliza quase uma centena de pessoas em poucos minutos.

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Ao longo do dia, as ruas da povoação vão se tornando cada vez mais cheias e os desacatos com a polícia tornam-se frequentes. Primeiro é com uma família de quatro: um casal e dois filhos que decidem caminhar até Valência perante a falta de auxílio das autoridades. De mochila às costas, o pai, com uma criança nos braços, acaba a trocar acusações com um agente: “Onde está a ajuda? Onde está a ajuda?”, repete, visivelmente emocionado. Mais adiante, novo momento de tensão com a polícia: alguns agentes terão apanhado um jovem menor a roubar um supermercado, mas a população revoltou-se contra a detenção.

Nos últimos três dias, a polícia deteve dezenas de pessoas por furtos semelhantes em centros comerciais e lojas. Em Paiporta, nos mini mercados e supermercados, o cenário repete-se: prateleiras vazias, caixas vandalizadas, portas arrombadas. “É o apocalipse. Parece o Walking Dead. Vês coisas na televisão e dizes: pobre gente. Não imaginas nunca que te vai tocar a ti”, diz Maria José, à saída de um supermercado, também ela a segurar as compras que não pagou. “Nunca pensei entrar num supermercado e roubar. Jamais”, admite.

A subversão moral começa quando se tem a capacidade de questionar determinadas regras de conduta. E as regras parecem ter mudado para uma população descrente do apoio do governo — perante as dificuldades no terreno, o presidente do governo da Comunidade Valenciana pediu, esta tarde, ajuda ao exército espanhol para levar ajuda às populações afetadas pela DANA — dizendo que teme as fontes de subsistência de um futuro próximo.

“Há ananás, há ananás”, ouve-se gritar. Paletes com várias embalagens de ananás em lata voam em minutos, colhidas por pessoas que circundam o supermercado Mercadona. Fonte da empresa diz ao Observador que a loja está “arrasada”, mas que estão a disponibilizar à população o que conseguem “salvar do armazém”. Vários funcionários da cadeia de supermercados estão no local. A ajuda vai chegando assim.

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As ruas lamacentas estão desenhadas pelas rodas dos vários carrinhos de supermercado que atravessam a cidade. “Já viram o metro? Eu levo-vos lá.” Carme Lorente, 18 anos, chegou a pé de Torrent, um município em Valência. Veio ajudar uma amiga, que “com tudo o que se passou ficou sem casa”. Trouxe-lhe algumas coisas, como “roupa e um livro”. Perante a estupefação sobre o último item, responde: “Foi-me recomendado pelo meu psicólogo”, diz, seguido de uma gargalhada. Trata-se de Lo bueno de tener un mal dia (O bom de ter um mau dia, em tradução livre).

Para quase todos os que habitam a região, não é arriscado dizer que têm sido dias maus. É certo que a chuva começou a dar tréguas e alguma da lama está a ser removida, mas começa-se a fazer contas aos danos materiais — para já “incalculáveis” — e dão-se os primeiros rostos às vítimas mortais da tragédia que assola o sul e leste de Espanha.

Em Paiporta, esta quinta-feira, foi encontrado mais um homem, de 83 anos, que vivia sozinho com um cão, e que morreu quando a água entrou à força cozinha adentro. A lama dificultou a retirada do corpo e, como testemunhou o Observador no local, foi necessária a intervenção de vários elementos dos bombeiros.

Nas ruas pejadas de carros e entulho, também não é improvável que haja quem tenha de conviver com cadáveres em casas até à chegada das equipas de socorro. A imprensa espanhola relata que há equipas de emergência em busca de “dezenas e dezenas” de desaparecidos.

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