Há quanto tempo não abraça alguém? Quando foi a última vez que se atreveu a dar um beijinho? A pandemia mudou os nossos hábitos, não só ficámos forçosamente mais caseiros, como nos habituámos ao uso contínuo de máscaras e de desinfetantes, e à distância física. Também os abraços, os beijos e os apertos de mão ficaram em stand by. Agora, chocamos cotovelo com cotovelo (curiosamente, “elbow bump” foi escolhida como “Palavra do Ano de 2006” pelo New Oxford American Dictionary), pé com pé, acenamos com a cabeça e gesticulamos de longe. Às vezes, mediante o peso da saudade, tentamos abraços estranhos, contorcidos, que nos emprestam uma réstia de conforto. A Covid-19, entre outras coisas, lembrou-nos da importância do toque, tanto que o anúncio de Natal da Bertrand, que conta a história de uma menina que procura uma forma segura de abraçar o pai, teve até reconhecimento internacional.
Desde que a linha de apoio psicológico do SNS24 arrancou, em abril do ano passado, recebeu 57 mil chamadas (das quais 5 mil foram de profissionais de saúde). Apesar de não ser possível discriminar o número exato, grande parte dos telefonemas focou-se num mesmo tema, a solidão. Miguel Ricou, presidente do conselho de especialidade de psicologia clínica e da saúde da Ordem dos Psicólogos Portugueses, e que até ao começo de janeiro era coordenador de supervisão da linha, não tem dúvidas: a falta de toque aumenta a sensação de solidão. “Todos nós queixamo-nos que falta o abraço, é um hábito que se quebra, é uma mudança perturbadora. O toque faz falta, muito mais a nós que somos do sul [da Europa].”
“Não nos tocamos, não damos beijos e abraços, mas não sinto uma distância muito grande dos meus clientes”, garante Andreia Mendes, cabeleireira que de há uns meses para cá tem optado por receber os clientes em casa — no máximo quatro por dia para ter tempo de fazer as devidas desinfeções. Andreia, que primeiro conversa e só depois corta o cabelo, admite que nos primeiros tempos após o confinamento havia estranheza no toque, sobretudo da parte de quem procurava os seus serviços, ao ponto de um cliente ter até trazido o dinheiro dentro de um saco de plástico. “Há sempre pessoas mais assustadas do que outras.” A verdade é que não deixámos apenas de tocar nos outros, mas também nas coisas.
Gustavo é osteopata há mais de cinco anos. Vive e trabalha para o toque, com as massagens terapêuticas a serem de corpo inteiro. No primeiro confinamento ficou parado e sentiu-se perdido. “Dependo muito do toque, não utilizo aparelhos e não posso fazer teletrabalho”, lamenta. Neste segundo lockdown já vai conseguir trabalhar, devido às exceções decretadas pelo Governo, mas antecipa à priori um menor volume de clientes. Do ponto de vista pessoal, admite que sente falta do toque das pessoas que lhe são mais próximas, sobretudo agora que vive sozinho. “Sei que a minha mãe deu-me um abraço no dia 22 de julho, no dia de anos dela. Não aguentou.”
O toque é comunicação direta e muitas vezes serve de sinalização. Uma pequena palmada nas costas pode reforçar um conselho, um aperto de mãos firme suscita segurança (com ou sem puxões à Donald Trump) e um abraço o derradeiro aconchego. Onde por vezes faltam as palavras há o toque — sobretudo nos momentos de luto, uma situação naturalmente dificultada pela Covid-19. “Cada vez mais sabemos que as festas, o carinho físico ou o abraço são a continuação da passagem das emoções. Tanto os olhos como o toque são muito mais honestos do que a boca”, lembra Carlos Góis professor e psiquiatra no Santa Maria, do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, fazendo referência aos chamados “sorrisos amarelos”. “Às vezes ficar ao lado de alguém sem dizer nada consegue ser mais eficaz.”
Carlos Góis é perentório quando diz que ficámos todos mais pobres e até menos humanos dada a privação do toque que tem marcado o panorama atual desde o início do ano passado. “Há formas de estar sem se dizer nada que deixam de existir. Apetece abraçar e beijar, nomeadamente as pessoas de idade”, continua para, depois, focar-se nos adolescentes, que são “os que mais sofrem” por estarem até numa fase de descoberta do corpo e da própria intimidade.
Não é discutível o porquê de agora evitarmos o contacto e assinalarmos a distância, uma vez que são medidas de combate à pandemia — tanto que Portugal está agora a atravessar um segundo confinamento geral. A falta de sociabilização é, no entanto, transversal a todas as faixas etárias. Exemplo disso é a história, ouvida por uma psicóloga em contexto de consultório, de uma menina em idade pré-escolar que não vai à escola desde março. Desde então, a sociabilização é quase exclusivamente com os pais, pelo que, certo dia, desenhou caras em balões. Quando um deles rebentou, a menina ficou em pânico: tinha perdido um amigo.
“Nós já estávamos a ir na direção da privação do toque”
Os efeitos benéficos do toque, tanto físicos como psicológicos, têm sido alvo de estudo há vários anos — na falta de contacto humano, o Serviço Florestal da Islândia recomendou, em abril de 2020, que as pessoas abraçassem árvores durante 5 minutos. Ao Observador, Tiffany Field, diretora do Instituto de Investigação sobre o Toque (tradução livre), na Faculdade de Medicina Miller da Universidade de Miami, aborda o impacto deste na gestão do stress. “Quando tocamos na pele estamos a estimular recetores de pressão [recetores táteis] e isso desacelera o sistema nervoso”, diz. Nesse contexto, o ritmo cardíaco e a pressão arterial também desaceleram, o que se traduz na diminuição de cortisol, conhecida hormona do stress. “Queremos que o cortisol seja baixo para que as células exterminadoras naturais [“natural killers cells”, em inglês] possam sobreviver — elas matam bactérias e vírus.” Estudos assinalam resultados semelhantes tendo em conta a intimidade entre casais.
Não deixa de ser irónico, constata a investigadora norte-americana há cerca de quatro décadas dedicada ao tema, que um contributo tão importante como o toque, considerando os tempos que correm, esteja vedado pela própria pandemia — ainda que tal seja compreensível. Mas antes da Covid-19 nos trancar em casa já Tiffany Field falava na sua privação e consequências.
“A solidão é muito prevalente nesta pandemia, mas nós já estávamos a ir na direção da privação do toque, ainda antes da Covid-19”, aponta Field, recordando um estudo feito nas portas de embarque dos aeroportos. Das observações feitas, descobriu que 68% das vezes as pessoas estavam ligadas aos smartphones e às redes sociais; só em 4% do tempo se tocavam. Atualmente, diz, citando um inquérito recente, apenas 33% das pessoas inquiridas admitem tocar muito nos parceiros, enquanto 21% afiançam tocar muito nas crianças. Field argumenta ainda que o toque tem efeitos benéficos no sono o que, por si só, é interessante, dado que uma boa higiene do sono contribui para uma menor incidência da depressão e da ansiedade.
Um outro estudo que sugere uma relação entre toque e sistema imunitário, datado de 2014, descobriu que abraçar pode diminuir a suscetibilidade de uma pessoa ficar infetada com um vírus que causa os sintomas de uma constipação comum. A investigação da Universidade Carnegie Mellon teve por base uma amostra de mais de 400 adultos que foram acompanhados durante 14 dias. Depois de analisados os níveis de apoio emocional que cada um recebia, e de os participantes serem pulverizados com o vírus, a equipa de investigadores determinou que mais stress e menos apoio estavam relacionados com um risco maior de os participantes adoecerem.
Também o professor de psicologia alemão Martin Grunwald, que lidera o Laboratório de Investigação Tátil (tradução livre) no Instituto Paul Flechsig da Universidade de Leipzig, garante ao Observador que o toque humano pode aliviar o stress e a solidão. Certo que cada pessoa tem diferentes necessidades de tocar ou ser tocada, mas em casos mais extremos a sua privação pode provocar “doença física e mental moderada a muito forte”.“O toque social (na altura certa, na parte certa do corpo e pela pessoa certa) reduz o stress, a dor e a ansiedade. Costumo dizer: o toque social é o melhor remédio para o nosso corpo e não tem efeitos secundários.”
A afirmação de Grunwald serve de referência para uma altura, não há tanto tempo quanto isso, em que uma sombra pairava sobre o ato de tocar. Depois do movimento #MeToo explodir no final de 2017, levantou-se uma barreira de inibições. “Estávamos a notar que as pessoas estavam a pausar antes de se aproximarem umas das outras, até para darem um aperto de mãos”, comenta Tiffany Field. Ainda antes de ser o presidente eleito dos Estados Unidos da América, já os abraços de Joe Biden davam que falar, com algumas mulheres a relataram situações de incómodo. Nesse sentido, a pandemia tornou algumas coisas mais fáceis e suavizou interações sociais, isto porque o toque também pode ser sinónimo de desconforto e até de ansiedade social. É por isso que o psiquiatra Carlos Góis refere que não é necessariamente mau o facto de as pessoas terem uniformizado a forma como se relacionam nos tempos que correm. “Há pessoas com muita dificuldade em sociabilizar. Considerando quem tem algum medo social, as videoconferências ou as teleconsultas, por exemplo, facilitam o acesso à comunicação.” Ainda assim, Góis afiança que “sermos tocados é fundamental”.
“As informações visuais e auditivas não sustentam a pergunta ‘Estou vivo?'”
A importância do toque para o ser humano remete para a fase in utero, mas também imediatamente após o nascimento de uma criança. “O toque ativa reflexos, como a sucção, e permite a amamentação do bebé”, começa por dizer João Cadima, terapeuta ocupacional no CADIn, IPSS que trabalha com jovens e adultos com alterações do neurodesenvolvimento, problemas comportamentais ou emocionais. Não é por acaso que o tato é um dos primeiros sentidos que são desenvolvidos ainda no útero. O sistema tátil é, aliás, aquele que amadurece mais rapidamente, sendo importantíssimo para a aquisição das primeiras competências motoras nas primeiras horas de vida.
Cadima esclarece que a pele é “a nossa fronteira”, tanto permite ao bebé conhecer o seu próprio corpo no contacto que tem contra as paredes do útero da mãe, como ficar ciente do mundo externo, através da manipulação de objetos e aprendizagem das respetivas texturas. “O toque é a base para a nossa perceção visual. Sabemos que o vidro é frio e liso porque já lhe tocámos.” É tido como uma ferramenta de autoconhecimento essencial também na interação com o outro. A própria vinculação entre criança e cuidador passa pela experiência tátil, a qual ajuda na regulação dos mais novos.
Os impulsos de toque social após o nascimento estimulam processos de crescimento de células neuronais e corporais, promovem a relação social entre pais e filhos, bem como o relaxamento e o conhecimento sobre o nosso próprio corpo de uma forma tridimensional, lembra ainda o alemão Martin Grunwald. Aliás, o sistema táctil permite ao ser humano saber que está vivo. “As informações visuais e auditivas não podem sustentar a pergunta principal: Estou vivo?”
A título de curiosidade, um estudo publicado no arranque de 2020 na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, a cargo de investigadores de diferentes universidades britânicas e uma alemã, mostrou que a negligência severa (onde se incluem a falta de afetos e também de estímulos) nos primeiros anos de vida está relacionada com alterações permanentes na estrutura do cérebro.
Falta de abraços, de empatia e do exterior. Como vai crescer esta “geração Covid”?
A psicóloga clínica Vera Lisa Barroso não tem dúvidas: as consequências seriam muitas se a atual privação de toque estivesse a acontecer de forma tão rígida com as crianças como acontece com os adultos. O toque é uma forma não só de comunicarem entre si, mas também de despertar afetos e conhecer o mundo. “As crianças não têm estado privadas do toque porque o mantêm em casa e na escola. Escolas abertas são um fator protetor para o seu desenvolvimento“, garante — as próximas duas semanas, até 5 de fevereiro, vão ser de férias para os alunos portugueses, enquanto o resto do país se mantém em confinamento total.
Ainda assim, não raras vezes João Cadima ouve em contexto de trabalho os mais novos desabafar que a Covid-19 nunca mais se vai embora para poderem voltar a abraçar os avós. O terapeuta ocupacional lembra ainda que os adultos precisam de ter cuidado para não passar em demasia a inibição e o constrangimento do toque. “É quase como se estivéssemos num estado de desconfiança permanente em relação ao outro. E as crianças também estão a beber deste stress, desta ansiedade.” Já a investigadora norte-americana Tiffany Filed salienta que a privação do toque faz com que as pessoas fiquem agressivas. “Temos vários estudos que mostram que as crianças e os adolescentes que recebem menos afetos físicos ficam mais agressivos, verbal e fisicamente”, diz. “Imagino que grande parte da agressão vista agora no nosso país [EUA] esteja relacionada com isso.”
Numa altura em que ainda não há fim à vista para a pandemia, e a distância física continua a ser norma, Tiffany Field recomenda a prática de exercício físico, tido como “um grande amortecedor para a privação do toque“, seja em casa ou na rua, e Grunwald aconselha ao desabafo com os amigos próximos ou familiares caso a ausência tátil esteja a dar de si: “Não assuma que está sozinho nesse sentimento”.
Apesar da capacidade extraordinária do ser humano em adaptar-se às circunstâncias, o psiquiatra Carlos Góis adivinha que, finda a pandemia, será preciso mudar alguns hábitos, dada a maior noção de risco ao fim de tanto tempo de distanciamento social. Ainda assim, “temos de voltar aos abraços e aos beijos”. “Provavelmente vamos ter mais cuidado, mas vamos ter de o fazer. O ser humano é um ser sociável. As pessoas não vivem naturalmente sozinhas.”