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Sem corpo nem provas. Quando a justiça decide que um jovem de 24 anos morreu

Há mais de 10 anos que Fábio não dá sinais de vida. Família teve de pedir que fosse declarada morte presumida para poder dividir herança dos avós. Se algum dia aparecer, só terá direito ao que restar.

Fábio C. teria 36 anos, se estivesse vivo. Ou tem 36 anos, se estiver vivo. Órfão de pai, morou com a mãe na antiga freguesia da Brandoa, na Amadora, até aos 4 anos. Depois, em 1989, Anabela M. saiu do país e levou consigo o filho. A família que ficou em Portugal nunca soube ao certo para onde foram viver — França, desconfiam — e acabou por perder o contacto com eles. E nunca mais tiveram notícias de nenhum dos dois.

Vieram a saber mais tarde que, já com 19 anos, Fábio veio a Portugal para fazer o seu cartão de cidadão. Cartão de cidadão esse que acabou por perder validade cinco anos depois, em junho de 2009, sem nunca mais ter sido renovado. Nele, o jovem tinha indicado uma morada estrangeira, algures nos Estados Unidos da América.

Foi para esse endereço que a tia paterna mandou uma carta em 2017. É que a avó de Fábio tinha morrido e deixado uma herança que deveria ser dividida também com ele — já que o pai, um dos herdeiros, tinha morrido. Para isso, era preciso que sobrinho indicasse se concordava ou não com a forma como a partilha iria ser feita. “Uma vez que os restantes herdeiros estão de acordo em realizar a partilha, solicito que me informe qual é a sua posição perante a partilha da herança indivisa por óbito de João C. e Isabel V.. Aguardo resposta breve”, lia-se. Só que a carta foi devolvida, com a indicação de que o jovem já não se encontrava naquela morada:Not at this adress. Not known” (“Não está neste endereço. Não é conhecido”, em português).

Sem sinais de vida de Fábio, partilhar a herança tornava-se “impossível”. A solução que a tia encontrou foi pedir à justiça que declarasse a morte presumida do sobrinho — um mecanismo previsto no Código Civil português através do qual, mesmo sem corpo nem provas factuais, se presume que uma pessoa que não dá sinais de vida há dez anos morreu — comum em casos de pescadores que desaparecem no mar, mas cujos cadáveres e embarcações nunca apareceram. Desta forma, o jovem seria declarado morto e os herdeiros poderiam dividir os bens.

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O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa foi proferido em abril de 2022 (ANTÓNIO COTRIM/LUSA)

ANTÓNIO COTRIM/LUSA

Entre avanços e recuos do processo judicial, o Tribunal da Relação de Lisboa acabou por declarar a morte presumida de Fábio — em abril deste ano –, revertendo assim a decisão anterior do tribunal de 1.ª instância. Por isso, foi como se Fábio tivesse morrido fisicamente aos 24 anos — altura em que deveria ter renovado o cartão de cidadão e não fez: é por isso a data em que se pode afirmar que o jovem deixou de dar sinais de vida uma vez que seria de esperar que tivesse vindo renovar a sua identificação — já que “a declaração de morte presumida equipara-se à declaração de morte física, ou seja, equivale à certidão de óbito”, explica ao Observador a juíza Carla Oliveira.

Para todos os efeitos — quer esteja a viver noutro país, quer esteja em coma em qualquer lugar do mundo —, Fábio morreu para as autoridades portuguesas e está comprovado legalmente que está morto, exceto para o casamento. “Não há cadáver, ninguém sabe em concreto onde a pessoa está, pode nem saber-se em que circunstâncias é que desapareceu e não é necessário saber-se se a última vez que foi vista foi num navio que se estava a afundar, por exemplo. Basta estar 10 anos sem qualquer tipo de contacto para que se possa pedir a declaração de morte presumida. Com esse pedido, os bens passarão então para os herdeiros”, explica a magistrada que é também secretária-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP).

O que diz a lei sobre a morte presumida

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Artigo 114.º

  1. Decorridos dez anos sobre a data das últimas notícias, ou passados cinco anos, se entretanto o ausente houver completado oitenta anos de idade, podem os interessados a que se refere o artigo 100.º* requerer a declaração de morte presumida.
  2. A declaração de morte presumida não será proferida antes de haverem decorrido cinco anos sobre a data em que o ausente, se fosse vivo, atingiria a maioridade.
  3. A declaração de morte presumida do ausente não depende de prévia instalação da curadoria provisória ou definitiva e referir-se-á ao fim do dia das últimas notícias que dele houve.

* Artigo 100.º
São interessados na justificação da ausência o cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens, os herdeiros do ausente e todos os que tiverem sobre os bens do ausente direito dependente da condição da sua morte.

Código Civil

Neste caso, os bens que Fábio deveria herdar dos seus avós serão divididos pelos restantes herdeiros. Se é comum declarar-se a morte presumida de uma pessoa tão nova? Não existe, segundo explica a magistrada, qualquer outra alternativa no que diz respeito a heranças se não esta. Mesmo que esteja vivo e que um dia apareça. 

A idade de Fábio, o contexto banal em que saiu do país ou o que dizia a carta que recebeu. Os motivos para o primeiro tribunal recusar a morte presumida

27 de maio de 2004. Era esta a data que a tia de Fábio pedia que fosse considerada como a data da sua morte uma vez que fora esse o último dia em que deu sinais de vida, pelo menos que a família tivesse conhecimento: nomeadamente, o dia em que esteve em Portugal para renovar o cartão de cidadão. E foi essa a data que Antónia M. sugeria no pedido que fez ao tribunal.

"Não há cadáver, ninguém sabe em concreto onde a pessoa está, pode nem saber-se em que circunstâncias é que desapareceu e não é necessário saber-se se a última vez que foi vista foi num navio que se estava a afundar, por exemplo. Basta estar 10 anos sem qualquer tipo de contacto para que se possa pedir a declaração de morte presumida. Com esse pedido, os bens passarão então para os herdeiros"
Juíza Carla Oliveira, secretária-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses

O primeiro pedido que Antónia fez não chegou sequer a avançar, porque o magistrado considerou que a tia de Fábio não tinha legitimidade para o fazer. Antónia recorreu desta decisão para o Tribunal da Relação de Lisboa que, no final de setembro de 2018, acabaria por revertê-la: os juízes desembargadores ordenaram que o processo prosseguisse no tribunal onde Antónia tinha inicialmente apresentado o pedido de morte presumida do sobrinho e o caso acabou assim por ser analisado pela justiça.

De volta ao tribunal de primeira instância, o magistrado tentou esgotar mais algumas hipóteses de encontrar Fábio. Procuraram-no junto da Direção de Serviços de Administração e Proteção Consulares, da Segurança Social e da Autoridade Tributária — mas sem sucesso. Ainda assim, a ausência de respostas não foi suficiente para o juiz, que acabaria por recusar declarar a morte presumida de Fábio.

Desde logo, porque o momento em que Fábio saiu de Portugal com a mãe “não ocorreu em circunstâncias que fizessem presumir a sua morte”. “Era menor de quatro anos e estava órfão de pai e mudou-se com a mãe, que era quem assumia as responsabilidades parentais do menor”, argumenta o juiz na decisão. Depois, também não existiam “quaisquer interesses”, “bens” ou “situações jurídicas” para que nos anos seguintes Fábio fosse obrigado a vir a Portugal — até à data em que a avó morre e é preciso dividir a herança.

Outro dos argumentos usados diz respeito ao tipo de relação que Fábio tinha com os familiares. “Sendo tia paterna, seria normal que a cunhada tivesse dado conhecimento do seu paradeiro e do seu filho”, lê-se. No entanto, havendo uma “eventual má relação entre a família”, também era normal que não o fizesse. E, para este tribunal, o desaparecimento de alguém é constatado pelas pessoas mais chegadas do desaparecido — o que não é o caso: “Atrevemo-nos a dizer que aquela relação familiar não era próxima”. Até porque, quando Fábio veio a Portugal fazer o cartão de cidadão também “não houve qualquer tentativa de contacto do sobrinho com aquela tia”.

Numa primeira instância, o tribunal recusou declarar morte presumida de Fábio, mas a decisão foi revertida (JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR)

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Mais: a carta enviada para os EUA é “formal, assinada por um advogado” e não tem “quaisquer questões sobre o bem-estar” do sobrinho, “sobre a vida que tem tido e declarações afetivas próprias de relações familiares”. “O teor da carta não evidencia qualquer ansiedade ou emoção perante a possibilidade de reatar uma relação que foi cortada cerca de um quarto de século antes”, lê-se no acórdão.

O juiz remata a sua lista de argumentos para não declarar morte presumida de Fábio com o facto de a idade que teria atualmente, 36 anos, estar “muito abaixo da esperança média de vida em Portugal” e, por isso, não ser de esperar que tivesse morrido de velhice.

Nem idade, nem afastamento da família. Para o tribunal da Relação, probabilidade de Fábio ter morrido deve-se à falta de notícias — mas um juiz não concordou

Descontente com a decisão, Antónia recorreu novamente para o Tribunal da Relação de Lisboa. No recurso, argumentou que era “mais provável” que o sobrinho estivesse “morto, do que vivo”, tendo em conta “o tempo já decorrido – mais de 17 anos” e a “total ausência de contactos principalmente com a própria tia, tudo apontando para o falecimento de Fábio”. E, desta vez, Antónia viu o seu pedido ser materializado.

Os juízes desembargadores — pelo menos, dois dos três que avaliaram o caso — entenderam que não era o simples facto de a relação entre tia e sobrinho “não ser próxima” que justificava que não se soubesse do “paradeiro” de Fábio: teria de haver algo mais do que apenas um jovem que acabou por se afastar da família. “A probabilidade de ter morrido não resulta da sua idade, nem tão pouco da relação mantida com Antónia (ou outros familiares), mas apenas e tão só da invocada falta de notícias”, lê-se no acórdão.

"A probabilidade de ter morrido não resulta da sua idade, nem tão pouco da relação mantida com Antónia (ou outros familiares), mas apenas e tão só da invocada falta de notícias"
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa

Os juízes lembram que, em 2004, Fábio deu sinais de vida, ao vir a Portugal fazer o cartão de cidadão, mas “não há qualquer outra ocorrência que permita concluir por nova demonstração dessa presença” nos anos que se seguiram. “Desapareceu dos registos das autoridades nacionais”, afirmam mesmo, concluindo: “Assim, e porque está provado que há mais de 10 anos, contados da última vez que houve notícia do local onde se encontrava, não há conhecimento do lugar onde se encontra, tendo desaparecido daquele que era conhecido e não havendo outras notícias do mesmo, há que declarar a sua morte presumida”.

Dos três juízes responsáveis pelo processo, um deles não concordou com a decisão final e, por isso, escreveu uma declaração de voto. “A declaração de morte presumida constitui o patamar mais elevado da ausência, implicando os mesmos efeitos que a morte“, começa por argumentar Carlos Castelo Branco, mostrando-se contra a decisão dos juízes António Moreira e Orlando Nascimento.

Para o magistrado, para se declarar a morte presumida de alguém não basta que não se saiba do paradeiro dessa pessoa: tem de existir também uma “ignorância generalizada do local onde a pessoa se encontra”. “Ora é precisamente quanto a este último aspeto que julgo não se poder afirmar tal ignorância”, escreve. O juiz considerou que não foi feito tudo o que se podia para encontrar Fábio. A busca resumiu-se a uma “consulta na base de dados dos serviços de identificação civil e na da segurança social”.

Podia ter-se feito mais para tentar encontrar Fábio. Por exemplo, detalha o magistrado na sua declarações de voto, obter o número de identificação fiscal, fazer uma consulta da base de dados da Autoridade Tributária ou do Instituto da Mobilidade e dos Transportes ou ainda procurar informações junto da autoridade policial. Era “indispensável”, “viável”, “proporcional e adequado” neste caso, defende. Mais: procurar “mais elementos” na certidão de assento de nascimento de Fábio ou até “dados conhecidos dos pais” que pudessem depois levar até ele — “O que também não se realizou”, remata.

E se Fábio aparecer vivo?

Se Fábio tivesse direito a herdar um terreno que entretanto seja vendido e o dinheiro da venda gasto, não terá direito a nada caso venha a aparecer e a decisão da sua morte revertida. Se tivesse direito a herdar 50 mil euros e já só sobrarem cinco mil, terá direito a esses cinco mil. Se tivesse direito a herdar uma casa que já esteja em ruínas, tem direito a essa mesma casa, em ruínas. “O que houver da herança é necessariamente devolvido ao desaparecido. Se não existir nada, a pessoa não tem direito a nada”, esclarece ao Observador a juíza Carla Oliveira.

A lei prevê que, se o ausente regressar, seja devolvido o património no estado em que se encontrar

Getty Images/iStockphoto

Também é preciso informar o tribunal que, afinal, está vivo para poder voltar a ter documentação como cartão de cidadão, número de utente ou identificação fiscal. “Reaparecida, a pessoa terá que ir ao processo onde foi declarada a morte presumida, pedir que esta seja dada sem efeito e que seja verificada a sua identidade”, adianta a magistrada. A identidade pode ser confirmada através de “testemunhas, documentos — como cartões de identidade antigos ou de passaportes de outros países onde está ou esteve —, fotografias, testes ADN e comparação destes com o dos ADN dos herdeiros”. Depois, a pessoa que pediu declaração de morte presumida é notificada pelo tribunal para contestar esse pedido. “Com a contestação, o juiz analisa as provas e decide”, acrescenta ainda.

Se não aparecer, a vida prossegue como se a pessoa tivesse morrido fisicamente — exceto no casamento. Ou seja, a pessoa com quem estava casada, não passa a divorciada ou viúva: continua casada, mas pode casar uma segunda vez. Se a pessoa a quem a morte presumida já foi declarada aparecer, o segundo casamento não se dissolve, mas considera-se o primeiro matrimónio dissolvido por divórcio à data da declaração de morte presumida. “Aí, passa a considerar-se que já estava divorciada quando casou pela segunda vez”, exemplifica a secretária-geral da ASJP.

Não existe outro mecanismo em casos de heranças como este: a lei é antiga — de 1977. “A razão de ser deste regime é porque era muito frequente pessoas que emigravam nunca mais serem vistas ou haver pessoas das antigas colónias que desapareciam. E era necessário resolver questões de partilhas”, detalha a mesma magistrada, defendendo que é necessário um “regime que estabeleça isto: as pessoas precisam de resolver as situações”. A família de Fábio resolveu a sua. A estar vivo, terá 36 anos. E se um dia aparecer terá “direito a reaver a herança, mas no estado em que estiver”.

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