O debate sobre o Serviço Militar Obrigatório (SMO) regressou em força a Portugal nos últimos dias depois de os chefes do Estado-Maior do Exército e da Armada, o general Rui Duarte Ferrão e o almirante Gouveia e Melo, terem aberto a porta à sua eventual reintrodução. Desde então, multiplicam-se vozes a favor e contra a medida e têm sido vários os alertas de que esta não é forma de resolver os desafios — nomeadamente, de gestão de efetivos — sentidos nas Forças Armadas.
O reacendimento da discussão tem sido, em parte, relacionado com o regresso da guerra à Europa. “Se [o Presidente russo] Putin conseguir mobilizar um Exército de 500 mil militares adicionais rapidamente e a Europa não conseguir fazer o mesmo, pode criar-se um desequilíbrio perigoso e tentador”, avisava Gouveia e Melo num artigo de opinião publicado recentemente no Expresso.
O almirante sublinhava a importância de aumentar os gastos em defesa e defendia que “reequacionar o serviço militar obrigatório, ou outra variante mais adequada, poderá ser uma medida necessária” para “equilibrar o rácio despesa/resultados” e “gerar uma maior disponibilidade da população para a Defesa”. A posição é partilhada por Eduardo Ferrão, que, em declarações ao mesmo jornal, disse que uma reintrodução do serviço militar obrigatório “justifica-se ser estudada e avaliada sob várias perspetivas”.
Militares ouvidos pelo Observador denunciam as quebras de investimento no setor da Defesa nas últimas décadas e o baixo número de entradas nos diferentes ramos das Forças Armadas. Segundo dados do chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas divulgados em novembro, há 23.425 militares e efetivos, um número “drasticamente abaixo do autorizado” — o exército, ramo tradicionalmente com maior número de militares, é o ramo com mais efetivos (10.969), seguido da Marinha (6.793) e Força Aérea (5.663). Sobre um eventual regresso do SMO, as opiniões dividem-se e não há consenso entre modelo a implementar e o nível de preparação no setor para lidar com um processo de recrutamento desta natureza.
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Serviço Militar Obrigatório “não resolve” os problemas das Forças Armadas
Entre os que defendem o regresso do Serviço Militar Obrigatório e os que rejeitam a hipótese parece existir um ponto em comum: este pode ser um tema a debater, sem quaisquer tabus, mas não é uma solução para os problemas que as Forças Armadas enfrentam nos dias de hoje (e que se vem agravando nas últimas décadas, com avisos relativamente frequentes de figuras com diferentes níveis de responsabilidade no setor da Defesa). Isso mesmo defendeu o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA), chefiado pelo general Nunes da Fonseca. Em comunicado, o organismo refere que uma eventual reintrodução do SMO em Portugal é uma matéria “que não deverá ser vista numa lógica redutora de solucionamento de carência de efetivos, mas através de uma abordagem abrangente de criação de uma prestação de serviço nacional e universal de natureza cívica, destinado à totalidade dos cidadãos”.
Começando por salientar que a Associação de Oficiais das Forças Armadas (AOFA) não tem uma posição fechada sobre a questão, o presidente da instituição explica ao Observador que é maioritária a posição contra o regresso do Serviço Militar Obrigatório. António Mota considera, inclusivamente, que questões como a guerra na Ucrânia e os problemas nas Forças Armadas estão a ser usados como pretexto para reacender esta discussão. “Os chefes militares vieram com essa ideia, muito legítima e que eu compreendo, mas só a compreendo à luz de terem aguentado a situação e ter deixado chegar as Forças Armadas ao ponto que chegaram“, refere.
Favorável ao regresso do SMO, descrevendo como um “erro” a decisão que lhe pôs fim, o general Formeiro Monteiro, membro do Grupo de Reflexão Estratégica Independente (um conselho de análise militar), concorda que a sua reintrodução não é solução para os problemas nas Forças Armadas. E são muitos, diz ao Observador. Desde logo, a revisão profunda das tabelas salariais, há muito reclamada pelos militares, mas também os desafios no recrutamento e a retenção de efetivos. O general sublinha que o SMO não resolve em nada os problemas da atratividade na carreira, mas que é necessária uma “política pública de serviço militar para garantir a defesa e soberania do território nacional”.
Para António Lima Coelho, presidente da Associação Nacional de Sargentos, importa, antes de partir para qualquer discussão, perceber qual o serviço militar a implementar. “O de quatro meses e o que estava em vigor na guerra colonial é um disparate. Agora, se é um serviço que traga a noção de servir o país, acho que faz sentido”, refere. Lima Coelho deixa também a mesma ressalva de que a discussão sobre este tema não deve desviar atenção da resolução dos problemas nas Forças Armadas. “Não deve servir para tapar o sol com a peneira.”
Os responsáveis militares ouvidos pelo Observador defendem que só uma aposta na defesa e na revalorização de carreiras pode ajudar a resolver os problemas nas Forças Armadas. O coronel António Mota dá como exemplo o facto de o Estatuto dos Militares das Forças Armadas não ter sido atualizado desde 2015. “Foi feito nos tempos da troika e não foi mexido daí para cá. Para nós, militares, a troika ainda está em Portugal. Pode não estar para a generalidade dos portugueses, felizmente, mas para nós ainda está”, afirma.
O presidente da AOFA defende que, para, pelo menos, estancar a “sangria enorme” que se tem verificado nos últimos anos, com uma quebra quase contínua do número de efetivos nas Forças Armadas, é preciso garantir um estatuto remuneratório minimamente aceitável. “Não é possível que um soldado ou grumete ganhe o salário mínimo, porque se sabe que não há horários, que há horas extraordinárias, que pode ser colocado a centenas de quilómetros de casa de um dia para o outro e depois não tem dinheiro para transportes e para vir a casa”, refere, acrescentando que “qualquer modelo falha com uma base remuneratória como esta”.
O coronel diz ainda que a questão da atratividade não se esgota na questão salarial e lembra as atuais condições que considera inadequadas no apoio na doença. “Descontamos duas vezes, uma pelo IRS e depois 3,5% para ter apoio na doença para nós e para os nossos familiares, quando a Lei de Bases gerais do estatuto da condição militar diz que cabe ao Estado assegurar a assistência sanitária aos militares e à sua família”, aponta.
Despesas, recuperar estruturas de recrutamento e instalações. Que dificuldades no regresso do Serviço Militar Obrigatório?
Não existe um consenso sobre o modelo de Serviço Militar Obrigatório a implementar em Portugal. Em declarações ao Observador, Formeiro Monteiro defende que um período de entre “seis meses e um ano é perfeitamente razoável”. “Não precisa de ser nem deve ser muito longo. As pessoas têm a sua vida e não podem estar afastadas da sua atividade”, refere. O general do Grupo de Reflexão Estratégica Independente — grupo que ainda em janeiro deixava um claro alerta sobre a insustentável situação dos militares das Forças Armadas — refere que uma prestação destas “prepara a população para aspetos de consciência, de disciplina, organização, técnicas de defesa pessoal”.
A nível de dificuldades de implementação, Formeiro Monteiro destaca três que, não obstante, considera serem “transponíveis”. Por um lado, voltar a pôr de pé uma estrutura de recrutamento parada há 20 anos e que era composta por centros de recrutamento, juntas médicas e de inspeção. Por outro lado, recuperar o próprio sistema de mobilização. “Antes, as pessoas passavam à reserva e, se necessário, eram chamadas para determinadas tarefas. Havia uma base de dados, com nomes, especialidades, etc.”, recorda. Acrescenta que também seria necessário recuperar instalações das Forças Armadas, algumas porque foram alienadas, outras porque estão simplesmente abandonadas.
Contra o regresso do SMO, António Mota refere que as unidades militares não estão de todo preparadas para o tipo de enchente que se veria com a reposição do serviço militar obrigatório. Começa por destacar que não há instrutores suficientes para formar o número de jovens que seriam convocados. “Em vez de termos 400 ou 500 instrutores, teríamos de passar a ter cinco ou seis mil. E, para quem ainda não percebeu, nós não temos efetivos. Se temos de dedicar um conjunto de dez ou 12 vezes maior de pessoas à formação, não sei onde as vamos buscar”, reconhece. Além disso, prevê que estaria em causa um “custo avassalador” para incorporar anualmente um grupo desta dimensão — a nível de fardamento, alimentação, transporte.
Acrescenta também que, para ser minimamente rentável, no primeiro ano depois da recruta teria de haver uma especialização. “Não estamos a falar de pessoas para pintar paredes, são operacionais”, ressalva. “Não vamos formá-los e depois pô-los na rua. Estaríamos a falar de um Serviço Militar Obrigatório de dois ou três ou quatro anos para funcionar“, antecipa, apontando que isso poderia ser percecionado pelas pessoas como uma perda de tempo e um entrave no caminho para os seus estudos ou início de carreira.
Para António Lima Coelho, da Associação Nacional de Sargentos, mais do que as Forças Armadas não estarem preparadas, é a população que não está “minimamente desperta para esta questão”. Na sua ótica, é importante que os cidadãos não vejam esta etapa como um castigo ou uma interferência. “A grande vantagem é trazer à consciência dos cidadãos a noção de serviço nacional a prestar à pátria, mas é algo que está desviado da mentalidade do cidadão”, admite.
Do “não” ao Serviço Militar Obrigatório à hipótese de estudar a questão. O que pensam os partidos?
Ainda nem todos os partidos se pronunciaram sobre esta questão, mas a maior parte parece inclinar-se para um “não”. O Bloco de Esquerda foi o primeiro a pronunciar-se, com a coordenadora do partido a afastar a possibilidade do regresso do Serviço Militar Obrigatório. Na segunda-feira, Mariana Mortágua sublinhou que o assunto não foi abordado durante a recente campanha eleitoral e não lhe pareceu “que exista, da maior parte dos partidos, qualquer vontade para reinstituir o serviço militar obrigatório em Portugal“.
Já o líder do Chega afirmou que esta é “uma questão que merece ser estudada” pelo impacto que terá nas Forças Armadas e em articulação com a juventude, uma vez que os jovens estão, necessariamente, entre os grupos etários “mais afetados”. Em declarações aos jornalistas também na segunda-feira, André Ventura disse que é preciso assegurar um “grande consenso nacional” sobre esta matéria, acrescentando que pensa que os jovens compreendem que o contexto internacional mudou e que o país não pode viver sem Forças Armadas “auto-suficientes e firmes”.
A Iniciativa Liberal já respondeu com um “não” ao Serviço Militar Obrigatório. Numa publicação na rede social X (antigo Twitter), o partido refere que é “inaceitável que o Estado interrompa à força a vida dos jovens para os mandar à tropa”. “Em 2024, numa democracia consolidada como a portuguesa, é eticamente inaceitável que por meio da coerção estatal se obrigue a que jovens abdiquem da sua autonomia e liberdade individual para servir o Estado nas condições e valores que esse mesmo Estado entenda como as adequadas”, sublinha.
O PCP ainda não se pronunciou sobre a questão, mas o deputado António Filipe lembrou que, na revisão constitucional de 1997, defendeu, em nome do partido, “que não era boa a ideia do PS e do PSD de extinguir o serviço militar obrigatório”. “Agora que nos meios belicistas da NATO e da UE se defende, por diferentes e más razões, a reintrodução do Serviço Militar Obrigatório, aguardo, sentado no sofá, para saber duas coisas: se o PS e/ou o PSD se vão atrever a propor a reintrodução daquilo que extinguiram; se tal proposta virá acompanhada de um pedido de desculpas ao PCP pela injustiça das críticas que lhe fizeram”, escreveu esta segunda-feira numa publicação nas redes sociais.
O presidente do PSD e agora primeiro-ministro indigitado chegou a afirmar, ainda durante a campanha eleitoral, que o partido não punha “em cima da mesa o regresso do SMO”. No debate da rádio que juntou os partidos com representação parlamentar Luís Montenegro defendeu antes “um sistema de incentivos” ao recrutamento. Na mesma linha, o secretário-geral do PS, Pedro Nuno Santos, rejeitou o regresso do SMO e destacou a necessidade de garantir a atratividade da carreira militar.
Este não é, ainda assim, um debate que se faça de forma isolada em Portugal. A propósito do atual contexto europeu — e com a guerra de regresso ao continente desde a invasão de larga escala da Rússia na Ucrânia, em fevereiro de 2022 —, foi ganhando força em vários países a ideia de que, 80 anos depois do fim da Segunda Guerra Mundial, é tempo de voltar a olhar para o investimento na Defesa, se não como uma prioridade, pelo menos como uma necessidade. Ao Observador, ainda em fevereiro, Christos Katsioulis, diretor da ONG alemã Friedrich-Ebert-Stiftung, dizia ao Observador que “muitos países europeus, a Alemanha entre eles, vão enfrentar em breve um debate a que podemos chamar ‘Armas ou Manteiga’. Ou seja: em tempos de pouca riqueza, ou se financia mais a Defesa ou as áreas sociais. Estes avisos são um instrumento para aumentar os gastos na Defesa, sugerindo que um ataque russo pode estar iminente.”