Foi uma visita “muito importante” com um “forte valor simbólico” e que também mandou um aviso claro ao Kremlin. O encontro de seis horas em Kiev entre o Presidente dos Estados Unidos da América (EUA), Joe Biden, com o seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky, serviu como mais uma ocasião para mostrar que Washington continua ao lado da Ucrânia, num momento em que se completa o primeiro ano de guerra em solo ucraniano. “Estamos unidos para ajudar a Ucrânia a defender-se”, garantiu o Chefe de Estado norte-americano.
Apesar de ter sido a primeira visita do Presidente norte-americano desde o início do conflito, esta não foi, contudo, a primeira visita de um dirigente dos EUA a Kiev. O secretário de Defesa, Lloyd Austin, e também o chefe da diplomacia norte-americana, Antony Blinken, já tinham ido à Ucrânia depois do dia 24 de fevereiro de 2022. Mas nada se compara à presença do “líder do mundo livre” na capital ucraniana. “Esta visita é, claramente, muito importante. Outros dirigentes dos EUA estiveram no país no último ano, mas a presença do Presidente é diferente”, defende, em declarações ao Observador, Volodymyr Dubovyk, diretor e professor do departamento de Relações Internacionais da Universidade Nacional de Odessa.
O facto de Joe Biden — enquanto Presidente daquele que tem sido o país que mais tem apoiado a Ucrânia desde o início da guerra — ter ido à Ucrânia possui um “simbolismo inquestionável”, prossegue o docente universitário. “O líder do mundo livre veio à capital de um país aliado que está no meio de uma guerra destrutiva.”
A proximidade do primeiro aniversário desde o início da guerra dá ainda mais relevo à visita, mas não é o único fator que levou o Presidente ucraniano a defini-la, durante a conferência de imprensa ao lado de Joe Biden, como o “mais importante encontro em toda a história das relações ucranianas e norte-americanas”.
Isto porque, como explica ao Observador Olexiy Haran, professor de Política Comparada na Universidade de Kyiv-Mohyla, esta é a primeira visita de um Chefe de Estado norte-americano a Kiev “desde 2008” — ainda George W. Bush estava na Casa Branca. O especialista recorda que a Ucrânia pediu aos longos dos anos — desde o início da guerra no leste do país e a anexação da Crimeia em 2014 — que o líder político norte-americano se deslocasse ao país, como sinal claro de apoio, mas isso não tinha acontecido até esta segunda-feira.
“Na altura, nem o vencedor do Prémio Nobel da Paz [Barack] Obama veio”, atira Olexiy Haran, descrevendo a atitude do ex-Presidente norte-americano como tendo sido “demasiado cautelosa”. “Agora, Biden finalmente fê-lo”, elogia.
O que pode a Ucrânia ganhar com esta visita?
Assim que Joe Biden chegou de comboio à Ucrânia, proveniente da Polónia, a Casa Branca publicou um comunicado no qual divulgava um novo pacote de sanções contra a Rússia. As empresas que contribuem para a máquina de guerra e que até agora estão conseguiram contornar as mesmas serão sancionadas, assim como as elites próximas do Kremlin. Os EUA vão ainda canalizar mais 500 milhões de dólares para a Ucrânia.
Já no âmbito militar, os EUA anunciaram outra “entrega de armamento crítico” à Ucrânia , incluindo munições, sistemas de antiblindagem e radares de vigilância aérea. O objetivo é “ajudar o povo ucraniano [a proteger-se] dos ataques russos”. No entanto, houve uma questão que ficou por responder: Joe Biden nunca deixou claro se Washington dará luz verde ao envio de caças, um dos principais pedidos de Kiev nas últimas semanas.
Não obstante, Volodymyr Zelensky parecia satisfeito durante a conferência de imprensa ao lado do homólogo. As negociações com o líder norte-americano foram adjetivadas como “frutíferas e cruciais”, sendo que o resultado desta conversa terá “efeitos no campo de batalha”, assegurou o Presidente ucraniano. Um dos tópicos passou mesmo por discutir o envio “armas de longo alcance” para território ucraniano para que o “ano de 2023 seja um ano de vitória contra a agressão não provocada e criminosa contra a Ucrânia”.
Por muito que estas medidas ajudem a Ucrânia a vencer no campo de batalha, os especialistas ouvidos pelo Observador dão mais importância ao simbolismo da visita do que propriamente a este novo pacote de ajuda. “É um sinal de solidariedade e de apoio inabalável”, considera Volodymyr Dubovyk.
“A mensagem que passa que é que o apoio dos Estados Unidos ainda permanece, que a Ucrânia não está sozinha”, sustenta, indicando também que a passagem de Joe Biden pela Praça de Santa Sofia, onde se encontra um memorial às vítimas ucranianas que resultaram da invasão russa, é “uma homenagem à resistência heroica das forças militares ucranianas e da resiliência de todo o povo”.
O próprio teor das declarações públicas entre os dois líderes demonstrava que o mais importante nesta visita era exatamente o seu simbolismo. Joe Biden realçou que o apoio dos Estados Unidos veio “para ficar”, garantindo que não vai abandonar a Ucrânia à sua sorte. “Não vamos embora”, chegou a assegurar o Chefe de Estado norte-americano.
“Kiev continua de pé, a Ucrânia continua independente e a democracia prevalece”, declarou o Presidente dos Estados Unidos, recordando que há um ano o cenário não era animador, havendo a convicção de que a Ucrânia pudesse colapsar face ao poderio russo. “O objetivo da Rússia era eliminar a Ucrânia do mapa, mas isso está a falhar”, reiterou Joe Biden, acrescentando que a “Rússia perdeu metade do território que já tinha sido ocupado” em fevereiro e março de 2022.
Os recados para a Rússia (e para o mundo)
Para além da mensagem de união, Joe Biden deixou várias críticas ao seu homólogo russo, um dia antes de este discursar perante o parlamento — e no qual se prevê que Vladimir Putin faça um balanço do conflito no último ano.
Para Joe Biden, o Presidente russo tinha a ideia, em fevereiro do ano passado, que “a Ucrânia era fraca”, assim como pressentia que o Ocidente estava “dividido”. “Mas afinal estamos juntos”, garantiu o Chefe de Estado norte-americano, voltando a atirar contra Putin: “Esperava que não conseguíssemos manter a NATO unida e ao lado da Ucrânia. Acho que ele agora não pensa isso. Não sei o que é que ele pensa, mas seguramente não é isso”.
Volodymyr Dubovyk acredita que a visita e as palavras do Presidente norte-americano representam um “sinal para Moscovo” de que a Rússia “não pode prevalecer” e vencer o conflito que desencadeou na Ucrânia.
Olexiy Haran também concorda que o encontro entre o líder norte-americano e ucraniano trata-se de um “forte sinal” dirigido ao Kremlin. Foi a prova de que a invasão foi uma “péssima ideia” — e que ainda não deu quaisquer frutos. A visita do Presidente daquele que é considerado o maior rival da Rússia é, por isso, “um sinal desse fracasso”.
Não foi um recado somente dirigido à Rússia, ainda assim. Na opinião de Olexiy Haran, é também um aviso a “todo mundo”, incluindo a “China, Índia, parceiros ocidentais e o público norte-americano”, passando a mensagem de que os Estados Unidos permanecerão o tempo que for preciso ao lado da Ucrânia, protegendo o país, independentemente das críticas internas (como dos republicanos) ou externas.
“Circo”, o “velhote” e o “regime neonazi”: a fúria do Kremlin e dos colaboradores pró-Kremlin
Ao longo do dia, foram surgindo reações por parte de elementos do Kremlin — mas nunca diretamente do Presidente russo ou do seu porta-voz. O Ministério dos Negócios Estrangeiros e o Conselho de Segurança da Rússia não deixaram passar despercebido a ida de Biden à Ucrânia, assim como outros colaboradores pró-Kremlin. Simultaneamente, na televisão estatal russa, vários comentadores foram tecendo críticas à visita ao longo do dia.
Pela parte do Ministério dos Negócios Estrangeiros, a porta-voz da tutela, Maria Zakharova, ironizou sobre a chegada de Joe Biden e Volodymyr Zelensky à igreja ortodoxa de Mikhailovsky. “Qual deles é ortodoxo?”, questionou nas redes sociais, aludindo à religião do Presidente norte-americano (católico) e a do líder ucraniano (judeu).
Para mais, a porta-voz de Sergei Lavrov lembrou que todos os líderes apoiados pelos Estados Unidos — tal como o venezuelano Juan Guiadó — acabam mal. E aqui enquadra-se Volodymyr Zelensky, que é, diz Maria Zakharova, um “pupilo de Biden”. “Estes líderes escolhidos [pelos EUA] são amaldiçoados pelo próprio povo, são inúteis e são obrigados a gastar o dinheiro ganho na América na traição dos seus próprios países.”
O vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitri Medvedev, também deixou duras críticas à ida de Biden à Ucrânia, descrevendo-a como o momento no qual o Presidente dos EUA “prometeu muitas armas e jurou fidelidade ao regime neonazi até ao túmulo”. “Houve promessas mútuas sobre a vitória que viria com novas armas. É de notar que o Ocidente realmente entrega armas e dinheiro a Kiev com bastante regularidade.”
Dmitri Medvedev, antigo Presidente russo, também acusou a Ucrânia de não cuidar da população, dizendo que esta “tende a encolher” pelas decisões políticas tomadas pelo regime de Volodymyr Zelensky. “Tanques e munições são importantes, claro. Mas as pessoas são definitivamente mais importantes. E elas não devem estar a sujeitas a um velho do outro lado do oceano, nem ao gangue de viciados em drogas em Bankova [local de Kiev em que está sediado o gabinete presidencial ucraniano].”
Já o vice-presidente da Assembleia dos Povos Eslavos da Crimeia, Roman Chegrinets, descreveu a visita de Biden como um “circo”. “Parece uma produção barata dos filmes de Zelensky”, criticou, numa alusão à carreira de ator do Presidente ucraniano. O responsável também se indignou contra a visita dos dois líderes à igreja ortodoxa de Mikhailovsky. “Não têm nada a ver com a igreja ortodoxa — um é católico, outro é satanista e fascista.”