Tinha recomeçado a fumar. Tão intensamente que instalou um extrator de fumo — ao nível industrial — no seu apartamento em Nova Iorque, depois de várias queixas dos vizinhos. Foi com um tremendo cheiro a tabaco e a fumo que Laurie Woolever, assistente pessoal de longa data de Anthony Bourdain, saiu do seu apartamento depois daquela que foi a única conversa séria que tiveram sobre o que viria a ser “Viagens Pelo Mundo: Um Guia Irreverente”. Pouco depois, Bourdain desapareceu deste mundo e Laurie tinha uma hora de áudio com as ideias que o chef e apresentador americano tinha delineado para aquele que seria mais uma das suas obras, que já não conseguiu concretizar. O desejo de o ver cá fora, para ser folheado por todos numa viagem por 43 países, estava lá, mas não conseguiu superar a vontade de deixar esta vida e partir. Laurie retomou-o, como uma “celebração alegre do espírito de Tony de uma perseverança única”, e trouxe-o à luz do dia depois de vasculhar no vasto arquivo televisivo do chef, nas notas das suas infindáveis viagens e com ajuda de testemunhos de quem lhe era próximo.
Se Laurie soubesse que aquele teria sido o único encontro que teriam sobre o livro, teria feito tudo diferente, teria feito mais perguntas. Mas estava longe de imaginar — todos estavam longe de imaginar o que sucederia meses depois. “Para ser muito honesta, a sensação geral que tive enquanto trabalhava nele, especialmente nos primeiros meses depois da sua morte, foi de solidão e saudade. Era para ser um projeto que terminámos juntos, e eu sabia, por ter colaborado com ele no nosso livro de culinária, ‘Appetites’, o quão divertido e gratificante teria sido”, desabafa Laurie ao Observador, numa entrevista a propósito da publicação do livro em Portugal durante esta semana. Tudo se tornou mais suportável, conta, quando decidiu que não estaria sozinha nisto e que outras pessoas a partilharem memórias e observações sobre Bourdain para integrar o livro — isto porque Anthony nunca chegou a escrever os prometidos ensaios sobre tópicos específicos de certos países e cidades que lhe roubaram o coração.
Ao longo da obra, há vários momentos de pausa no formato guia propriamente dito para dar espaço a textos escritos por amigos, colegas e familiares, que relatam várias aventuras que deram origem a histórias e memórias que agora lembram com saudade, vindas de lugares que conheceram ao lado de Bourdain, como é o caso das recordações de visitas a França, Uruguai e à costa da Nova Jérsia com o irmão, Christopher Bourdain.
Também Laurie teve o prazer de partilhar várias viagens com Anthony, recordando nesta entrevista que a mais memorável aconteceu em Hue, no Vietname, onde comeram tigelas de Bun Bo Hue, uma sopa de massa rica e picante à base de caldo de porco e que contém bolas de caranguejo, perna de vaca, sangue de porco gelatinoso, flores de banana e muitas ervas aromáticas. “É uma sopa deliciosa, deliciosa e comemos juntos numa banca no mercado de Dong Ba, o local central da cidade para fazer compras”, recorda.
Por mais que fosse esse o seu desejo, Laurie não conseguiu seguir todos os passos da carreira de Bourdain e, por isso, acabou a não visitar todos os locais retratados nesta edição. “Tentei visitar o maior número possível, e recorri à minha própria história de viagens para poder incorporá-la na minha escrita, juntamente com o arquivo de vídeo e as experiências dos seus colegas de televisão”, explica. É muito claro quando se folheia cada página o que pertence a Bourdain e o que foi reunido por Laurie que, enquanto jornalista e escritora, acabou por investir muito da sua pesquisa e escrita neste livro. “Todo o projeto existe devido ao extraordinário trabalho que ele fez na televisão durante quase duas décadas. É um livro convincente por causa do espírito e legado do Tony”, afirma.
Casa de partida: uma biblioteca televisiva de Bourdain
A pandemia acabou por atrasar o lançamento do livro, mas mesmo antes disso, Woolever teve de mergulhar de cabeça nas centenas de episódios protagonizados por Bourdain ao longo dos anos, transcrevê-los e organizá-los de forma a que a obra fosse realmente um guia com sugestões para comer obrigatórias e algumas dicas de como chegar ou onde ficar, dependendo da cidade. Os locais foram uma das poucas coisas que saiu definida daquela reunião no apartamento do chef americano.
O livro começou a ser pensado meses antes de Anthony Bourdain se ter suicidado num hotel em França, a 8 de junho de 2018. Foi ainda em 2017 que Anthony começou a magicá-lo Laurie, muito por alto e sem nada oficial definido, até porque na altura, a escritora e assistente não estava convencida da sua publicação. “Será que o mundo precisava de mais um guia de viagens e que nós precisávamos de o escrever?”, começa por escrever Laurie na introdução do guia.
As histórias descritas, tanto por Anthony como por Laurie e os amigos, fazem deste livro quase um livro de memórias, na medida em que “este é um guia de viagem prático, é também uma espécie de diário de viagem, escrito da perspetiva de Tony”, confessa. “Os lugares incluídos foram alguns dos seus favoritos e o livro está repleto de observações astutas sobre o que ele viu, comeu, cheirou, ouviu e sentiu nas suas viagens.
Mesmo depois de longos anos a trabalhar ao lado de Bourdain — e a conhecer-lhe as manhas e feitios —, Laurie ainda conseguiu descobrir algumas curiosidades sobre o chef. Foi o caso de Nari Kye, uma das produtoras dos programas, que foi ajudada por Bourdain a aceitar a sua herança enquanto mulher nascida na Coreia do Sul e a tentar integrar-se nos Estados Unidos — Kye acabou por partilhar um testemunho no livro sobre o caso. Também alguns produtores organizavam eventos ou surpresas sem conhecimento de Bourdain, “a fim de filmar as suas respostas mais autênticas”. Com Christopher Bourdain, Laurie conta ter aprendido muito sobre as viagens formativas da família a França.
Alguns testemunhos de realizadores e produtores dos programas de Bourdain que, pela paixão conhecida do chef por cinema, partilham também no livro alguns dos filmes que inspiraram a forma de filmar e como vários episódios acabaram a ser gravados.
Portugal num lugar especial
Foram quatro as visitas e três os destinos que Anthony Bourdain marcou no seu passaporte gastronómico português. A primeira visita aconteceu em 2002, a bordo do programa “A Cook’s Tour”, onde o chef e apresentador gravou o sétimo episódio da primeira temporada na cidade do Porto. Este era apenas o primeiro de três programas que gravaria por cá. Em 2009 voltou e foi até aos Açores, a propósito do programa “No Reservations”, onde passou pelas ilhas de S. Miguel, Ponta Delgada, Faial, Pico e São Jorge. Bourdain comeu em restaurantes típicos e até em casas de locais, ordenhou cabras, provou linguiça e assistiu à confeção do cozido das furnas, do polvo guisado do Pico e das amêijoas da Caldeira de Santo Cristo. Quando provou o cozido das furnas, Anthony Bourdain descreveu o prato como “fantástico”.
Voltou em 2011 com o mesmo programa, desta vez de visita a Lisboa, cidade que disse ter tudo: “música, uma costa incrível, marisco, história, arquitetura”. Atirou-se à típica bifana, ao polvo assado, comeu no Ramiro com os chefs José Avillez e Henrique Sá Pessoa, foi aos fados com António Lobo Antunes, e até conversou com os membros da banda Dead Combo. Também acabou a jogar chinquilho — ou malha — com Ljubomir Stanisic e passou no Bistro 100 Maneiras.
É precisamente o agora estrelado Ljubomir Stanisic que assina o prefácio de “Viagens pelo Mundo”, num testemunho emotivo em que lembra o fatídico dia, que deveria ser de celebração — isto porque Ljubomir fazia anos no dia em que Bourdain deixou este mundo. Desde esse dia, o chef do 100 Maneiras não quis voltar a tocar no assunto, sentia-se “zangado” com o desaparecimento daquele que tinha sido uma referência não só para ele, mas para toda uma comunidade gastronómica. “Abriste as portas por nós. Abriste-nos os olhos. Escancaraste-nos as mentalidades. Derrubaste barreiras, acabaste com ‘fronteiras’, destruíste preconceitos”, confessa Ljubomir, que conheceu Bourdain num manhã de sol em dezembro de 2011.
Esse encontro no Clube de Chinquilho em Alcântara, conta o chef, não correspondeu às altas expectativas que tinha criado, mas à mesa foi outra conversa. Depois de uma partida de chinquilho amarga, com inglês enferrujado de Ljubomir e dos “velhotes” e um Bourdain pouco conversador, seguiram todos para o Bistro 100 Maneiras. “O almoço correu muito bem”, escreve, contando que serviu o seu Estendal de Bacalhau e entranhas: “the nasty bits, chamavas-lhes, uma das nossas paixões em comum.”
Ljubomir dá voltas por essas paixões em comum que tinha com o chef e apresentador americano, recordando destinos e memórias que marcaram a vida de ambos em cronologias diferentes. Mas uma coisa é certa, e Ljubomir fez disso bandeira no seu prefácio: “Se o corpo é um parque de diversões, e não um templo sagrado, como dizias, o teu tem uma roda gigante que nunca vai parar de girar.”
E depois dessa visita em 2011, e das memórias que deixou, a última e mais recente aconteceu em fevereiro de 2017, já no programa “Parts Unknown”, onde vimos Bourdain de regresso ao Porto onde viu como se faz a tradicional francesinha, n’O Afonso, sentando-se à mesa para a comer no fim.
“Regressou a Portugal algumas vezes e ficava completamente louco pela comida”
Apesar das raras viagens por cá, Anthony tinha “uma afinidade especial por Portugal”, conta Laurie. Uma afinidade facilmente justificada pelos seus anos de adolescência em que vivia e trabalhava em Cape Cod, no estado de Massachusetts, onde existe uma grande comunidade de imigrantes portugueses açorianos, “cujas tradições e cultura alimentar tiveram um profundo impacto na forma como as pessoas cozinham e comem lá”, explica.
A ligação a Portugal intensificou-se nos anos 90, quando Anthony se candidatou a um emprego na cozinha do Les Halles, uma cervejaria francesa no centro da cidade norte-americana onde trabalhava o chef portuense José Meirelles. José acabou por ser patrão de Bourdain, quando ainda poucos o conheciam, tendo-se tornado também amigo do chef americano, que contou depois as peripécias que viveu no Les Halles no seu primeiro livro, “Kitchen Confidential”, que o catapultou para os holofotes.
José Meirelles foi o responsável por trazer Bourdain a Celorico de Basto para uma matança do porco que pode ser vista no “A Cook’s Tour”. Repetiram a façanha para “Parts Unknown”, até porque Bourdain não escondia a sua paixão por entranhas.
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“Foi muito excitante nos EUA porque nunca tinham visto nada como aquilo, toda a gente achava que as costelas já vinham embaladas e não se fazia nada ao bichinho. Muitas pessoas ficaram chocadas, escandalizadas. Outras aplaudiram”, lembra José numa entrevista ao jornal Expresso em 2018. “A irreverência dele abriu portas a ingredientes que não eram usados, como as entranhas dos animais, o pé de porco, as patas de galinha. Deu a conhecer outras cozinhas pelo mundo fora, que eram desconhecidas de muita gente. Deu mundos, deu cultura através da cozinha.”
Laurie conta que foi José que lhe “ensinou muito sobre a cultura alimentar” do Porto e da região do norte. “O Tony regressou a Portugal algumas vezes ao longo da sua carreira, e ficava completamente louco pela comida, a arte, a arquitetura e, em particular, a música”, confessa Laurie, que também acabou por visitar Portugal em 2014. E como qualquer pessoa que viaje e queira comer bem saberá que Bourdain teria algo a dizer caso já tivesse pisado tal território — com o acréscimo de que Laurie trabalhava diretamente com ele. “Ele ficou mesmo muito contente quando soube que eu tinha feito planos para vir a Portugal e obviamente tinha muitos conselhos para mim, tudo com base nas suas experiências felizes no país”, conta.
Neste guia pelo mundo, dedica seis páginas a Portugal. Primeiro Laurie contextualizou essa sua afinidade com o país e depois dividiu as páginas entre sugestões para Lisboa e outras para o Porto. Em Lisboa, foi incontornável referir a Cervejaria Ramiro, que o chef disse ser um “fogo cerrado de peixe e marisco minimalista de máxima qualidade”, recomendando, claro, que todos terminem a refeição com um prego no pão. No Porto, passa inevitavelmente pelas francesinhas d’O Afonso e faz um apontamento direto para a Cervejaria Gazela, não fosse Bourdain ter uma “atração diabólica pelo cachorro quente mutante”. A acompanhar as páginas há duas ilustrações com uma rede de pesca e outra com uma garrafa vinho do Porto.
Um guia para retomar as viagens pós-pandemia
Portugal é apenas um dos mais de 40 países — e as mais de uma centena de cidades — explorados por Bourdain neste guia. Alguns dos seus destinos eram sonhos de viagem que ainda conseguiu realizar, é o caso do Congo, Irão, Antártida, Laos, Marrocos, Líbia e Omã. Mas desses sonhos, um ficou por concretizar: o Afeganistão. “O único lugar que não pôde visitar, que lhe causou tanto fascínio, foi o Afeganistão. A volatilidade era tal que nenhuma companhia de segurança nos conseguia garantir a sua segurança a um grau aceitável”, confessa a escritora, que lamenta que o país agora controlado pelos talibãs não conste também neste guia.
“Viagens Pelo Mundo: Um Guia Irreverente” chega numa altura de retoma, em tempos de recuperar o tempo perdido daqueles que não viajaram ao longo dos últimos quase dois anos. Se para uns, o livro vem como uma lufada de ar fresco, que oferece alguma esperança e inspiração àqueles que anseiam por retomar as viagens”, diz Laurie, para outros, os que não podem viajar por razões de força maior, “este livro pode servir como uma espécie de livro de fantasia, no qual podem aprender sobre todos os lugares sem ter de sair de casa.”
Bourdain sempre quis mostrar o mundo aos leitores e espetadores tal e qual como ele o via, daí a sua autenticidade ser dos traços que mais atraía as pessoas. Essa versatilidade de tanto protagonizar episódios alegres e indulgente, como outros em que espelhava injustiças e lutas de alguns lugares do mundo — Laurie tentou colocar tudo isso no livro, não roubando nunca palavras ao mítico chef, complementando-as em vez disso. “É impossível tentar ser o Tony. Felizmente, ele deixou para trás um corpo de trabalho tão rico e variado, que eu pude aproveitar a sua escrita e as coisas que ele disse na televisão para criar algo novo”, admite.
Apesar de ser Laurie a trazer a obra à luz do dia, e este livro só existir porque ela existe e teve aquela conversa fulcral, é e será sempre Bourdain a cara de tudo, o protagonista, o autor, o comensal, a pessoa admirada e de quem todos sentem a falta. “Um colega disse-me uma vez: ‘o Tony pode receber todo o crédito quando as coisas correm bem, mas é também o mais vulnerável se as coisas não correrem bem’. Isto impressionou-me bastante, e fez-me lembrar que é um grande risco ser o rosto de qualquer coisa grande, um risco que deveria ser recompensado com atenção e elogios, se merecido”, confessa.
Será agora este livro uma recompensa aos fiéis seguidores de Bourdain anos depois de nos ter deixado? “É uma bela ideia. Não há como substituir uma figura querida que deixou o mundo demasiado cedo, mas espero que este livro seja um pouco bálsamo para aqueles que, como eu, experimentaram a dor da sua morte súbita”, admite.
“Tony deu início a uma nova era de realismo”
Anthony Bourdain marcou indubitavelmente a cena gastronómica e a forma como se olha para a comida e para o papel de um chef de cozinha, e nem isso Laurie Woolever deixou de ressalvar: “Tony deu início a uma nova era de realismo”, disse. “A voz fresca e a perspetiva de Tony forçou muitas das pessoas da velha guarda dos meios de comunicação gastronómicos a olhar mais de perto para a forma como as coisas realmente funcionavam, para além de salas de jantar luxuosas, vinhas e hotéis. Antes de “Kitchen Confidential”, a situação dos trabalhadores da hotelaria era de pouco interesse para o público que jantava.”
A simplicidade e honestidade que passava para o público, quer nos programas de televisão quer nos livros, mudaram o paradigma da comida, até porque Bourdain tinha o dom de “fazer qualquer coisa parecer fixe e excitante”.
“Um certo hambúrguer, uma nova banda, um filme antigo, um bouquet perfeito de flores da esquina — a sua excitação sobre as coisas que ele amava era contagiante. Uma vez tive uma conversa com ele sobre o quanto ele gostava de um certo tipo de cereais para o pequeno almoço, foi tão simples”, conta Laurie. “Sinto falta do seu entusiasmo sem limites pela vida.”
A escritora recusa-se a limar arestas deixadas por Anthony Bourdain, mas espera que este seu guia e o próximo livro “Bourdain in Stories” — onde Laurie recolheu mais de 100 testemunhos de pessoas da órbita do chef e compõe uma visão daquilo que foi a sua vida em histórias — possam dar aos leitores “algum sentido de encerramento em torno da sua morte.”