Uniram-se em abril, para defender o mecanismo ibérico. Três meses depois, Portugal e Espanha voltam a estar de braço dado, contra os desígnios de uma Europa em apuros que, para não tremer de frio no inverno, pede aos povos do sul que também regulem o termostato. “Solidariedade”, chama-lhe a Comissão Europeia. “Sacrifício sem sentido”, responde a Península Ibérica.
Afinal, o que está em causa na ideia congeminada em Bruxelas, que apanhou de surpresa os Estados-membros do sul da Europa? “A UE enfrenta o risco de novos cortes no fornecimento de gás da Rússia, uma vez que o Kremlin está a usar as exportações de gás como arma, com quase metade dos Estados-membros a serem já afetados por entregas reduzidas”, constatou a Comissão Europeia esta quarta-feira. Face a esses riscos, Bruxelas propôs que, já a partir de agosto, e até à primavera de 2023, cada Estado-membro da União Europeia reduza o consumo de gás natural em 15%. Independentemente de estar, ou não, exposto ao gás russo.
Comissão Europeia propõe meta de redução de 15% de uso do gás já em agosto e até à primavera
A apresentação do pacote intitulado “poupar gás para um inverno seguro” alega que “tomar medidas agora pode reduzir tanto o risco, como os custos para a Europa em caso de maior ou total perturbação, reforçando a resiliência energética europeia”. O apelo é dirigido a “todos os consumidores, administrações públicas, famílias, proprietários de edifícios públicos, fornecedores de energia e indústria”, que, para Bruxelas, “podem e devem tomar medidas para poupar gás”. Mas a Comissão Europeia não se ficou pelo apelo. Deixou também um aviso. Este corte de 15% é, para já, voluntário. Caso seja preciso, pode tornar-se obrigatório.
“O novo regulamento daria igualmente à Comissão a possibilidade de declarar, após consulta dos Estados-membros, um alerta da União sobre a segurança do aprovisionamento, impondo uma redução obrigatória da procura de gás a todos os países”.
Comissão Europeia
Se houver “um risco substancial de uma grave escassez de gás ou de uma procura de gás excecionalmente elevada”, os Estados-membros podem atualizar os seus planos de emergência nacionais até ao final de setembro “para mostrar como tencionam cumprir o objetivo de redução, e devem informar a Comissão sobre os progressos realizados de dois em dois meses”.
O número mágico de 15% começou a ser avançado ainda em fevereiro, poucos dias depois da invasão da Ucrânia pela Rússia, pelo célebre think thank Bruegel, que já aventava a hipótese de um corte total do gás russo à Europa. Para sobreviver, a Europa teria de reduzir o consumo entre 10% e 15%, adiantavam os economistas. Noutra publicação, mais recente, o Bruegel voltou a defender esse corte, sublinhando, no entanto, que deveria ser adaptado a cada país, tendo em conta a sua dependência da Rússia. Enquanto países como a Estónia, Finlândia, Letónia ou Lituânia teriam de consumir menos 54% de gás para estarem seguros, o corte “exigido” a Portugal, Espanha e França era bastante inferior: zero.
Não foi esse o entendimento da Comissão Europeia, que optou por ser salomónica. O que levantou ondas em Madrid e Lisboa, mesmo apesar de a proposta preliminar da Comissão prever que os países com poucas interconexões, como Portugal e Espanha, possam reduzir o consumo em 10%, se demonstrarem que estão a usar ao máximo as infraestruturas que têm para redistribuir gás aos restantes Estados-membros. É uma contrapartida por serem uma chamada “ilha energética”, que já permitiu adotar a exceção ibérica.
Para a Comissão Europeia, se todos cumprirem com o objetivo dos 15%, será libertada capacidade exportadora nos países produtores, que poderá ser aproveitada por outros Estados-membros. Se Portugal deixar de receber um ou dois barcos carregados com gás, por exemplo, esse gás pode chegar a Itália ou à Alemanha, justifica a Comissão. Mas, como apontam os especialistas, essa teoria falha no essencial.
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É que o que a Península Ibérica tem de sobra, terminais de gás natural liquefeito, há países que têm a menos. Na Europa existem 21 terminais. Portugal tem um e Espanha tem seis. Ou seja, um terço. A Alemanha não tem nenhum, porque, tal como outros países, optou por confiar nos gasodutos, como o Nord Stream 2 (que construiu mas não utilizou), explica Nuno Ribeiro da Silva, presidente da Endesa Portugal, ao Observador. Para receber o gás por esta via, a Alemanha tem de alugar terminais flutuantes, cuja capacidade de processamento é limitada.
“Os países mais preocupados com isto são Alemanha, Áustria e Itália. Itália ainda tem um terminal. Já a Alemanha e a Áustria não têm alternativa. Os países do norte e do centro da Europa acomodaram-se aos tubos”, sublinha o responsável.
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Viver acima das possibilidades 2.0
Não é, por isso, surpresa, que os argumentos de Bruxelas não colham nos países do sul, que consideram que mesmo os 10% permitidos são um exagero, face às circunstâncias. O primeiro ponto da discórdia foi o facto de a decisão ter sido tornada pública sem que todos os países fossem consultados. “Não podemos assumir um sacrifício sobre o qual não pediram a nossa opinião”, afirmou a ministra espanhola da Transição Energética, Teresa Ribera. Outro ponto, e o mais premente, é a noção de “justiça” da Comissão, que é diferente da de Portugal e Espanha. “Que sentido faz que a Portugal e Espanha se peça o mesmo que a Chipre e a Malta?“, questionam os espanhóis.
Segundo as contas do governo do país vizinho, um corte de 15% no consumo de gás seria o equivalente a menos 45 dias de consumo por ano. E ainda, contestam os vizinhos, é preciso ter em conta a incapacidade de reencaminhar os excedentes de gás para outros pontos da Europa, face à já referida falta de interligações na Península Ibérica, e falta de terminais no resto do Continente.
“A diferença em relação a outros países é que nós, em Espanha, não vivemos acima das nossas possibilidades do ponto de vista energético”, vincou Teresa Ribera, remetendo para outra crise, a financeira, em que os países do sul foram acusados de viver acima das posses. Portugal consome anualmente cerca de 5 bcm, enquanto Espanha tem um consumo de 34 bcm.
Em Portugal, o entendimento é o mesmo. “A proposta não tem em conta duas realidades essenciais que afetam a Península Ibérica, e Portugal em particular”, afirmou o secretário de Estado da Energia, João Galamba, esta quinta-feira ao Explicador do Observador. “A lógica de que se alguém consumir menos liberta gás para outros consumidores mais necessitados pressupõe duas coisas. Em primeiro lugar, pressupõe interligações. Uma redução do consumo não se traduz automaticamente numa maior disponibilidade de gás para outro consumidor. Um consumidor francês que poupe um pouco de gás, disponibiliza esse gás para um alemão porque os sistemas estão interligados. Isso não é verdade para um consumidor português. Uma mera redução do consumo não disponibiliza mais gás a terceiros. Há logo esse problema de base de lógica do mecanismo”, defendeu.
Além disso, continuou o governante, “é preciso entender que os países não usam o gás para as mesmas coisas”. Na Alemanha, o consumo doméstico para aquecimento das casas representa 40% ou 50% do gás consumido, segundo o secretário de Estado. Em Portugal “estamos a falar de valores residuais”. O consumo doméstico de gás é inferior a 10%, garante Galamba. “Serve para aquecimento de água ou cozinhar. O aquecimento doméstico e de edifícios é residual em Portugal. Isto tem impactos muito significativos na capacidade que os países têm de reduzir o consumo. É muito mais fácil regular a temperatura de um edifício e assim ter poupanças significativas do que ter essas poupanças na indústria ou na produção de eletricidade, onde o gás ou existe ou não existe. A única maneira de reduzir o gás no imediato na indústria é cortar o consumo. A única maneira de cortar o gás na eletricidade é produzir menos eletricidade”, concluiu.
Já esta quinta-feira, a posição foi reiterada pelo ministro do Ambiente. Para Duarte Cordeiro, a proposta “não é aceitável para Portugal” nem serve “os interesses” do país. E terá o voto contra do governo português.
Segundo Nuno Ribeiro da Silva, o corte de 15% do consumo de gás natural na União Europeia significa menos 45 mil milhões de metros cúbicos (bcm) de gás consumido. “A capacidade excedentária dos terminais da Península Ibérica é de 40 bcm. Se tivéssemos autoestradas de transporte de gás para lá dos Pirinéus, os terminais ibéricos poderiam receber gás e enviá-lo para França e, daí, para o sistema europeu”, adianta. Como não existem essas ligações, “o que podemos fazer é contratos de aprovisionamento de gás natural liquefeito, e aqui pode haver algum desvio através de transhipment ou a cedência de cargas para outros terminais europeus”.
É este tipo de “solidariedade” que também defende o secretário de Estado da Energia. “A solidariedade é um pressuposto do funcionamento da União Europeia, mas importa que seja eficaz, senão é só um sacrifício sem sentido. Portugal tem disponibilidade para ser solidário e disponibilizar a infraestrutura do nosso terminal de GNL para apoiar países necessitados. Essa é uma solidariedade que faz sentido. Têm de ser mecanismos solidários ajustados à nossa realidade”, destacou o governante.
Mas e se tivermos mesmo de cortar?
Há uma hipótese levantada na proposta da Comissão Europeia, que em Portugal já foi posta de parte, que é voltar a pôr em funcionamento, num quadro de emergência, centrais a carvão. Estando essa opção descartada, a proposta declara que no caso extremo em que se tornam obrigatórios os cortes, os “consumidores protegidos” serão os domésticos. Os primeiros a sofrer com o fecho da torneira serão os industriais eletrointensivos.
“Está prevista uma hierarquia no deslastre em caso de situação crítica. Prevê-se que possam deslastrar grandes consumidores, temporariamente, para dirigir o gás para consumos essenciais, como o aquecimento das casas”, explica Nuno Ribeiro da Silva. Não está, no entanto, previsto qualquer procedimento sancionatório em caso de incumprimento.
Ainda assim, quem está no centro da equação confessa-se assustado. É o caso da Associação Portuguesa de Industriais de Cerâmica e Cristalaria (APICER). “Preocupa-nos muito”, revela o presidente, Luís Sequeira, ao Observador. Sobretudo porque, ao contrário do que acontece com outras indústrias, a cerâmica não tem alternativa ao gás natural. “Sem gás não conseguimos produzir. Não há outra tecnologia disponível”. É por isso que a APICER espera que no dia 26 de julho, os ministros da Energia sigam outra via. Caso contrário, uma indústria que já vive sufocada pelos preços elevados da energia receberá “uma sentença de morte”. A cerâmica consome cerca de 18% do gás que entra na indústria em Portugal, sendo seguida da indústria vidreira.
A associação que junta os grandes industriais partilha as preocupações do setor da cerâmica. “Numa perspetiva de solidariedade uma redução das importações de GNL (Gás Natural Liquefeito) através do terminal de Sines poderá significar uma maior disponibilidade (pequena) de GNL no mercado. Em termos técnico-económicos poderá não fazer sentido uma descarga parcial de um navio metaneiro no terminal de Sines, seguindo a embarcação para um outro terminal de GNL em outro país. Julgamos que uma imposição de redução de 15% no consumo de gás natural em Portugal terá pouca expressão em termos globais, mas criará constrangimentos adicionais à nossa indústria que importa evitar.”
Segundo Nuno Ribeiro da Silva, o esforço para cumprir o desafio de Bruxelas vai depender do clima. “O consumo de gás em Portugal não tem que ver com o perfil de consumo do norte da Europa. Cerca de três quartos do gás natural que consumimos servem para produção de eletricidade. A Alemanha, no inverno, consome o triplo do gás do que no verão”.
A diminuição forçada do consumo terá que ver “com o que venham a ser as condições climatéricas no outono e inverno”. Se estes forem rigorosos, e tendo em conta os grandes consumos do norte da Europa, haverá uma pressão extra na procura de gás. Se houver água, vento, a necessidade de recorrer a centrais a gás será muito menor. “Nos últimos anos temos suprido as nossas necessidade de geração de eletricidade com cerca de 60% de renováveis, mas este ano tivemos a necessidade de recorrer muito mais à geração de eletricidade por via do gás natural”, recorda Ribeiro da Silva.
Quase 70% a mais, para ser exato, nos primeiros cinco meses do ano, face ao mesmo período do ano anterior. Tudo por causa da seca. Em suma, para que a situação se inverta, é necessário que chova copiosamente no próximo inverno. “Isto limita-nos a flexibilidade de reduzir no imediato o consumo de gás. É muito mais fácil baixar a temperatura de uma casa de 23 para 21 graus, porque ainda assim mantém níveis de conforto e tem um impacto significativo no consumo. Nós não temos esses mecanismos à nossa disposição, porque usamos o gás quase exclusivamente na produção de eletricidade”, explicou João Galamba.
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A busca por alternativas é uma luta contra o tempo. “Portugal está numa trajetória de redução contínua do consumo de gás. Neste momento, a medida mais eficaz atendendo ao perfil do nosso consumo não é racionar ou fazer cortes cegos, mas reforçar a política que estamos a seguir”, de instalar mais painéis solares e eólicas, reforçou o secretário de Estado. “Temos de acelerar. Isso também é solidariedade com o norte da Europa. É assim que vamos poupar e reduzir o consumo de gás”, concluiu.
No elétrico essa substituição “é relativamente fácil e rápida”, diz Galamba, mas, “neste momento, muito do gás que consumimos é não só porque não temos produção hidroelétrica, mas também porque ainda não temos solar suficiente”.
A proposta de Bruxelas ainda está ao lume. Para ser aprovada tem de receber luz verde dos Governos da UE. Para isso, basta uma maioria simples. A reunião dos ministros da Energia e Ambiente está marcada para a próxima terça-feira, na capital belga. Na visão de Nuno Ribeiro da Silva, “terá de haver nuances e flexibilidades tendo em conta a realidade de cada país”. Mas Portugal poderá mesmo ter de fazer cedências, considera. “Não quer dizer que sejamos a panaceia para o problema, mas tudo o que vier ajuda. E há o sinal político no quadro da solidariedade. Não podemos estar sempre apenas de mão estendida”.