O Governo tem vindo a trabalhar numa solução para fixar as prestações do crédito à habitação num valor abaixo do que resulta das atuais taxas. O ministro das Finanças já o afirmou pelo menos três vezes, duas das quais esta semana, e uma primeira em julho numa entrevista, embora Fernando Medina se recuse, para já, a dar detalhes.
Segundo o jornal Expresso desta sexta-feira, o Executivo irá seguir em parte o modelo de moratórias usado durante a pandemia que permitiu suspender pagamentos durante algum tempo sem isso representar um incumprimento para as famílias. Neste caso, será fixado um desconto à prestação calculada com base nas atuais taxas de juro, e que se manterá durante dois anos. Os clientes abrangidos irão compensar gradualmente esse desconto nas prestações pagas nos anos seguintes (pagando mais do que a taxa variável que seria aplicável nessa data), sem que isso onere os encargos totais com aquele crédito. Na prática, trata-se de reajustar o perfil de pagamento de juros ao longo do tempo para estabilizar a prestação nestes tempo de escalada das taxas de juro.
A informação avançada pelo Expresso indica que esta medida será de adesão voluntária por parte dos clientes e não implicará para estes qualquer marcação de risco de incumprimento, como aconteceu com a legislação que regulou a negociação extraordinária de créditos.
Banca ameaça clientes. Renegociar prestação pode limitar acesso a novos créditos
Para os especialistas ouvidos pelo Observador, a medida é bem vinda porque permite dar, no curto prazo, mais liquidez às famílias nesta fase de grande pressão por causa das taxas de juro e também da inflação. No entanto, assinalam que ainda não se conhecem os detalhes da proposta e que é preciso estar atento às letras pequenas do diploma que podem limitar o seu alcance e benefícios.
“Muitas vezes são anunciadas medidas que vão no bom sentido, mas depois são fixadas um conjunto de restrições que fazem com que o objetivo não seja cumprido”, alerta Ricardo Ferraz. O investigador do ISEG e professor do Instituto Politécnico de Coimbra e da Universidade Lusófona frisa que “muita gente não adere porque são criados tantos obstáculos e burocracia, daí que pede uma medida simples e compreensível”.
Já o economista Pedro Braz Teixeira defende que a iniciativa faz sentido desde que inclua uma cláusula que permita que as pessoas que adiram possam sair antes de terminado o prazo de dois anos, caso as taxas de juro baixem mais depressa e de forma mais acelerada. “Pode não fazer sentido atar as pessoas àquela prestação. Deve haver uma cláusula a permitir que a estabilização só seja aplicada quando for interessante” para o cliente do crédito, defende o diretor do gabinete de estudos do Fórum para a Competitividade.
Fazendo a ressalva de que pouco se conhece da proposta, Nuno Rico, da Deco Proteste, admite que ela pode ser comparável às moratórias aplicadas no tempo da pandemia e deixa um alerta. Apesar da saída deste regime ter corrido melhor do que previa a publicação da associação de defesa do consumidor, porque foi possível evitar um número relevante de incumprimentos via negociação, quem aderiu à moratória “foi mais tarde confrontado com um agravamento do capital em dívida” porque os juros que ficaram por pagar foram incorporados ao valor em dívida.
“Neste momento alguns dos aderentes (às moratórias) estão a pagar mais na sua prestação (seis a sete euros por mês) por causa da capitalização dos juros não pagos naquele período”, afirma o economista da Deco Proteste.
Medida vai no bom sentido, mas vem muito tarde
A medida de fixação da prestação ganha ainda mais relevância com o mais recente aumento em 0,25 pontos percentuais anunciado pelo Banco Central Europeu (BCE) esta quinta-feira, o que levou os membros do Executivo a reforçar que os apoios à habitação — prestação de crédito e limite à atualização das rendas — vão ser aprovados na próxima semana em Conselho de Ministros.
Nuno Rico considera que qualquer ajuda a quem tem de enfrentar as prestações crescentes do crédito à habitação “é sempre bem vinda nesta conjuntura”, embora ressalve as limitações e os riscos resultantes da incerteza sobre a evolução dos juros. Na mesma linha, Ricardo Ferraz vê com bons olhos uma medida que “é para ajudar as pessoas que estão a passar dificuldades por causa dos créditos à habitação e da inflação”. Garante no curto prazo liquidez aos titulares do crédito e permite evitar os incumprimentos que penalizam os bancos.
Os economistas também destacam como positivo o carácter opcional da solução e a sua universalidade a todos os beneficiários do crédito hipotecário, ainda que Nuno Rico defenda uma solução mais direcionada para as famílias que enfrentam mais problemas de liquidez.
Pedro Braz Teixeira sinaliza que os bancos já estavam a aplicar uma versão deste modelo a pessoas em situações mais críticas. “Se os bancos puderem fazer renegociações e mudar o perfil de pagamentos” ou até prolongar os prazos por mais dois anos sem perder dinheiro “isso não tem problema nenhum”.
Mas considera que a iniciativa do Governo “vem tardíssimo. Se tivesse sido há um ano”, teria permitido uma grande poupança às famílias. “Estamos no pico da subida das taxas de juro do BCE, que só não o disse com todas as letras porque não o pode dizer”. Sendo que a medida tem como horizonte outubro de 2025, o economista acredita que as taxas de juro vão descer muito antes disso e muito mais do que o desconto que está a ser trabalhado.
Apesar do critério de fixar uma percentagem da Euribor para que a prestação não mexa — o Expresso admite que sejam 75% da atual Euribor acrescido do spread do contrato — o que permite alguma variação, a descida das taxas de juro pode ser mais rápida do que foi a subida, como admitem vários analistas. E o que não for pago nesse período terá de ser acertado nos anos seguintes, o que fará com que os beneficiários demorem mais tempo a encaixar os ganhos da descida dos juros. Nas simulações apresentadas pelo semanário, este desconto permitiria uma poupança mensal da ordem dos 60 euros para cada 100 mil euros de empréstimo a 30 anos.
Por outro lado, assinala Ricardo Ferraz, nada impede o Governo de reajustar a medida em função da evolução das taxas de juro.
E é suficiente? Economistas defendem medidas complementares
Para além de vir já tarde, no final do ciclo de subidas das taxas de juro, os economistas ouvidos pelo Observador referem ainda que esta é uma solução temporária e insuficiente. “Creio que vai no bom sentido, vai dar folga nos rendimentos, mas se vai resolver o problema? Não vai”, afirma Ricardo Ferraz. O principal problema é a percentagem muito elevada de contratos de taxa variável, entre os 80% e os 90%, que não terá paralelo em outros países europeus. Mas há outras ressalvas.
Nuno Rico acrescenta que a proposta do Governo “parte do pressuposto de que a subida das taxas de juro fica por aqui e de que os juros vão baixar neste período. Pode ser que sim, dado o sinal dado nesse sentido pelo BCE, mas a descida pode não ser tão rápida”, uma vez que o Banco Central Europeu também avisou que os juros vão ficar altos durante o tempo que for necessário para controlar a inflação. Nesse cenário, o ritmo da compensação devida pelos clientes será mais lento e a penalização da prestação de crédito irá durar mais tempo.
O economista lembra a proposta que a Deco apresentou em abril para aplicar um travão de 3% às prestações do crédito à habitação, tendo por base a taxa de juro usada nos testes de stress feitos pelos bancos aos clientes na hora de negociação dos empréstimos. Este teto seria aplicável a quem estivesse a suportar uma taxa de esforço de 35% e tivesse de pagar uma taxa superior aos 3%. Seria uma solução mais estável e dirigida a um grupo mais reduzido de titulares de crédito.
Quer Nuno Rico quer Ricardo Ferraz defendem que são necessárias medidas adicionais e complementares à solução que está a ser trabalhada, apontando para o regresso do regime da dedução dos juros com o crédito à habitação no IRS, uma hipótese que tem encargos orçamentais consideráveis e que tem sido recusada pelo Governo. O investigador do ISEG assinala que há folga orçamental que permite a adoção de outras medidas e aponta para uma reforma que baixasse o IRS, o que ajudaria as pessoas a suportarem outras despesas.
O economista da DECO defende também que devem ser tomadas medidas legislativas para tornar a taxa fixa mais atraente para novos contratos, uma vez que a oferta atual apresentada pelos bancos não é competitiva.
Banca aberta, desde que não tenha de assumir perdas
A medida de fixação da prestação “tal como está a ser descrita, não tem custos para o Estado, nem para os bancos. Se for apenas mudar o perfil de pagamentos isso não traz problemas. Os bancos não querem é perder dinheiro”, realça Pedro Braz Teixeira.
E essa será precisamente a maior preocupação da banca nas conversas que já houve com o Governo. Evitar que a solução implique perdas nos créditos que tenham de ser reconhecidas no balanço, consumindo capital. Ricardo Ferraz indica que a fixação das prestações até pode ajudar os bancos no sentido de que os clientes vão continuar a pagar, evitando incumprimentos.
A Associação Portuguesa de Bancos (APB) esteve envolvida nas conversas iniciais sobre este regime, que agora estarão centradas entre o Governo e o Banco de Portugal. Segundo o Expresso, a APB enviou uma carta ao Governo a manifestar a não oposição, mas pretende que fique salvaguardado que estas moratórias não terão impacto contabilístico.
Ainda assim, tal como está pensado, esta opção vai dar muito trabalho aos bancos, já que existem cerca de 1,5 milhões de contratos de crédito hipotecário. Ainda que só sejam abrangidos os contratos referentes a habitação permanente e nem todos os titulares queiram aderir, é provável que muitos clientes procurem os bancos para pedir simulações, nem que seja para avaliar se vale a pena. Por outro lado, a fixação do limite para a prestação indexada à evolução da Euribor vai obrigar a rever constantemente as contas da prestação.
Haverá mais reservas do lado do Banco de Portugal, refere o Expresso, por se considerar que esta medida contraria os objetivos da política de aumento de taxas do BCE que é precisamente travar o rendimento disponível para o consumo e assim refrear a subida dos preços.
Por outro lado, há quem lembre que o governador do Banco de Portugal, Mário Centeno, já deu sinais públicos de discordância face ao mais recente aumento das taxas de juro, tendo até estado do lado dos que não acompanharam a decisão do BCE, segundo informação recolhida pelo Observador.
Para Ricardo Ferraz, devemos ter em conta que a zona euro é um espaço em que o conjunto das economias é muito diferente do ponto de vista económico e social e que a percentagem de crédito com taxa variável é muito mais baixa em países como a Alemanha, onde a inflação mais tem resistido às subidas dos juros.