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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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"Sou um cardeal inesperado." De Lisboa a Roma com o novo cardeal português

O Observador acompanhou D. António Marto na viagem até ao Vaticano, onde esta quinta-feira vai ser elevado a cardeal. Nas novas funções, quer ser um colaborador próximo do Papa na reforma da Igreja.

Reportagem no Vaticano

“Olha o senhor bispo, vai ali o senhor bispo.” No meio do caos da zona de partidas do aeroporto de Lisboa, onde os turistas ocasionais se misturam com passageiros frequentes na procura pelo balcão de check-in ou no caminho para as portas de embarque, o bispo de Leiria-Fátima, D. António Marto, tenta passar despercebido, mas os olhares viram-se invariavelmente para ele. Acabado de chegar de Leiria com o seu chefe de gabinete, o padre Vítor Coutinho, prepara-se para embarcar rumo a Roma, onde esta quinta-feira vai ser elevado a cardeal pelo Papa Francisco — e fazer com que, pela primeira vez em quase duzentos anos, haja dois cardeais em exercício no território português. Além disso, a nomeação inesperada de D. António Marto vai tornar a dar a Portugal dois votos no colégio eleitoral — há três meses o cardeal D. Manuel Monteiro de Castro, emérito do Tribunal da Assinatura Apostólica, completou 80 anos, perdendo o direito de voto, e Portugal preparava-se para ir para o próximo conclave com apenas um voto, o do cardeal patriarca de Lisboa.

Esta está longe de ser a primeira viagem de D. António Marto a Roma. Ainda há duas semanas, o bispo esteve na capital italiana para tirar as medidas e mandar fazer as novas vestes, de cor vermelha, que passará a usar enquanto cardeal. Mais do que habituado à vida de aeroporto, sabe de cor o caminho para o local do check-in habitual, e surpreende-se com a troca de última hora. “Mudou? Costumava ser aqui.” Nada como perguntar aos seguranças — afinal, quem tem boca vai a Roma e aqui o cliché tem de ser perdoado, porque não podia ser mais literal — e lá se descobre o sítio certo para deixar as malas. “Eu costumo viajar só com a mala pequena, a que vai lá em cima. Mas desta vez tenho de levar esta maior, para depois trazer as vestes”, explica.

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Não é que vá usá-las muitas vezes. Adepto do estilo simples do Papa Francisco, o bispo de Leiria-Fátima apresenta-se quase sempre de fato normal e camisa com cabeção. Nos dias mais solenes, lá veste a batina preta com a faixa púrpura. Já as vestes corais de bispo, muito solenes e luxuosas, ficam no armário. Será esse também o inevitável destino das novas vestes cardinalícias, que apenas vai usar quando for ao Vaticano, e só para não “cantar fora do coro” dos outros cardeais, admite. As vestes corais também não seriam tão práticas como o simples fato que agora veste para passar na segurança do aeroporto. Depois de despachar a bagagem, D. António Marto segue para a fila e desaparece anónimo no meio da multidão que espera pelo controlo de segurança.

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O bispo tira o casaco, coloca-o com a pasta no tapete rolante, passa no detetor de metais e avança rápido para a zona franca do aeroporto. O almoço faz-se por ali, após alguma dificuldade em encontrar uma mesa livre na zona de restauração àquela hora — cerca da uma da tarde. “É esperar que alguém se levante”, atira o chefe de gabinete do bispo, que entretanto foi buscar os tabuleiros com a comida, enquanto D. António Marto guardava uma mesa para os dois. Não tarda a que a porta de embarque seja anunciada nos ecrãs. Quando lá chegamos, já o futuro cardeal está sentado na zona de espera. “Parece que está atrasado”, declara, com ar de quem já se resignou perante os frequentes atrasos em aeroportos.

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Entretanto, surge a confirmação nos altifalantes: o avião que vai levar o novo cardeal português para Roma demorou-se e todos os voos que sobrevoam o espaço aéreo francês estão com perturbações. A espera divide-se entre a porta de embarque, o autocarro que o transporta até ao avião e, finalmente, o próprio avião. Bispo e chefe de gabinete vão discutindo detalhes práticos para o grande dia do consistório. Uma comitiva assinalável segue de Portugal para Roma. Entre familiares do bispo, membros da cúria da diocese de Leiria-Fátima e outros convidados, são algumas dezenas os portugueses que se vão deslocar ao Vaticano — e há convites para receções na embaixada, no Colégio Pontifício Português, uma missa na Igreja de Santo António dos Portugueses. Enfim, um programa cheio que é preciso organizar. À entrada, é cumprimentado pela tripulação e por alguns dos passageiros, que o reconhecem. Finalmente, o avião rola na pista e descola.

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Gosta de viajar, gosta de andar de avião? Ou já se habituou tanto…
Gosto muito de andar de avião. Se fosse possível, mesmo a deslocação lá [em Portugal] de avião, optava sempre pelo avião.

Porquê?
Porque, para mim, acho mais cómodo.

Lembra-se da primeira vez que andou de avião?
Tinha 25 anos. Foi há tantos anos… E foi porque, na altura, consegui uma bolsa de estudo da Gulbenkian para fazer doutoramento e possibilitavam fazer a viagem de avião.

Até onde?
Porto-Roma. Porque até então fazia a viagem de comboio, do Porto para Roma, e levava 48 horas. A gente habituava-se, na altura ainda os portugueses emigravam muito, ainda não tinham aquelas condições económicas que hoje têm, que lhes permite terem carro e viajarem de avião. A maioria dos emigrantes viajava de comboio e o comboio ia super cheio de portugueses. Era uma maneira de a gente se relacionar, viver… Levava-se a comida, os portugueses levavam os garrafões de vinho, notavam-se logo que eram portugueses.

Agora é muito diferente.
Agora é completamente diferente, o mundo mudou muito.

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O mundo mudou muito. O farnel e o garrafão de vinho foram substituídos por uma sandes, um sumo de laranja, um concentrado de fruta, um chá e um pacote de gomas — D. António Marto segue em económica num voo normal da TAP. O comandante, sabendo que transportava o futuro cardeal português a bordo do seu avião, ainda o convidou para ir para executiva, mas o bispo preferiu continuar por ali. Já antes, quando tinha sido o primeiro a entrar no autocarro que leva os passageiros do terminal, recusou sentar-se logo. “Não gosto de privilégios”, diz. Já da viagem para Roma, que até aqui fazia pelo menos duas vezes por ano, gosta mais — mas não quer que se torne muito mais frequente. Ou, pior, que se invertam os locais de partida e de destino e passe a viajar às vezes para Portugal em vez de, às vezes, até Roma. Mesmo cardeal, não quer — e não conta — sair da diocese de Leiria-Fátima.

Esta viagem é uma viagem que vai começar a fazer mais frequentemente, não?
Eu sempre gostei de viajar até Roma, foi aqui que passei sete anos, os anos da minha juventude. Vinha sempre, uma ou duas vezes por ano. Agora é possível que venha mais frequentemente, embora não saiba, desde já, quantas vezes.

De que é que vai depender?
Vai depender do trabalho que me atribuírem lá numa das congregações. As reuniões plenárias a que os membros cardinalícios têm de assistir.

Tem receio de que a viagem passe a ser Vaticano-Portugal de vez em quando? Ou vai continuar sempre a ser Portugal-Vaticano?
Portugal-Vaticano de vez em quando! Isso nem ponho em dúvida (risos).

Quando foi a nomeação, disse logo que queria continuar na diocese…
Sim, espero continuar na diocese. Não tenho nenhum sinal que aponte para uma mudança de situação.

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Mais do que habituado à viagem entre Lisboa e Roma, o bispo de Leiria-Fátima reconhece que esta é especial, mas nega que vá regressar uma pessoa diferente a Portugal. “Eu não mudo nada. Serei sempre o mesmo. Não mudo de nome, não mudo de face, de rosto, nem mudo de feitio”, afirma, antes de citar o próprio Papa Francisco, quando foi eleito Papa: “Na minha idade já não se muda”. Mesmo que D. António Marto não faça “a mínima ideia” dos motivos que levaram o Papa a escolhê-lo para cardeal: “Certamente foi desta relação próxima que a peregrinação dele a Fátima deu a oportunidade de estabelecer. E de conversar, para além da peregrinação e da preparação da peregrinação, da vida da Igreja, seja a nível universal seja a nível local, de Fátima. Ele mostrou-se muito interessado nisso. Uma sintonia com as grandes linhas do pontificado”, sugere.

É uma forma de aproximar o Vaticano e Fátima?
Há duas coisas que ele exprimiu. Primeiro, a universalidade da Igreja. Segundo, estabelecer uma maior ligação entre a Sé de Pedro e a Igreja particular, local, neste caso concreto a Diocese de Leiria, mas o que dá notoriedade à diocese de Leiria-Fátima é o Santuário pela sua projeção universal. Ele deve ter apreendido e compreendido esta projeção universal de Fátima. E sobretudo, a projeção universal da mensagem e também a projeção universal do próprio Santuário. Quando ele esteve lá, tinha peregrinos de 55 países do mundo. Ele procurou informar-se, mesmo até junto do reitor do Santuário, da vida do Santuário. É natural que queira sublinhar a presença de Fátima na Igreja universal através desta nomeação cardinalícia.

Mas, como estava a dizer-me há pouco no aeroporto, a nomeação é para uma pessoa, é pessoal, não é institucional. Ou seja, tem a ver consigo também. Ou melhor, tem a ver sobretudo consigo.
Não podemos desligar uma coisa da outra. É um ato de confiança pessoal que o Papa faz quando nomeia alguém cardeal, porque sabe que vai ser seu colaborador muito próximo e que têm de ter sintonia, que tem de ter um apoio também. E nesse aspeto, sempre disse explicitamente que apoiava a reforma da Igreja que ele pretende levar em frente.

E ele está a colocá-lo num grupo de colaboradores mais próximos para o ajudar a levar a cabo essa reforma.
Ao escolher um bispo para cardeal, imediatamente escolhe alguém que é um colaborador mais próximo.

"É um ato de confiança pessoal que o Papa faz quando nomeia alguém cardeal, porque sabe vai ser seu colaborador muito próximo e que tem de ter uma sintonia e que tem de ter um apoio também. E nesse aspeto, eu sempre disse explicitamente que apoiava a reforma da Igreja que ele pretende levar em frente"

D. António Marto ainda se lembra bem do dia em que recebeu a notícia de que tinha sido nomeado cardeal pelo Papa Francisco. Foi uma surpresa. Talvez se fosse com outro Papa não tivesse sido assim, mas o Papa Francisco nunca gostou muito do protocolo. “Com os papas anteriores não era surpresa porque comunicavam antes. O Papa Francisco não comunica antes. Só comunica quando torna pública a nomeação, e a gente, nem que quisesse, não poderia dizer que não”, explica o bispo. Por isso, a surpresa foi total — “quer para o próprio, quer para a diocese, até para o país, ninguém pensava nisso”, diz. “Pode dizer-se que sou um cardeal inesperado.”

O próprio momento da comunicação da notícia foi inusitado. “Eu recebi a notícia, como já tive ocasião de o dizer publicamente, cinco minutos antes de iniciar a celebração da festa do Pentecostes, na catedral, com o crisma de umas dezenas largas de crismandos. Foi um telefonema através do telemóvel, que eu não atendi à primeira porque faltava pouco tempo para começar a missa, não sabia quem era nem quanto tempo demoraria. Depois de me paramentar, olhei para o relógio, faltavam três minutos e tive a curiosidade de saber quem é que me chamava àquela hora, e vi a chamada perdida: Nunciatura Apostólica. Logo a seguir, Nunciatura Apostólica, mensagem de voicemail. Liguei para o voicemail e ouvi o Núncio Apostólico a dizer: “Daqui fala o Núncio Apostólico. Acabei de ouvir os nomes dos cardeais que o Papa vai nomear. O seu nome estava lá, não sei se o senhor sabia. Parabéns e felicidades”. A gente fica com apreensão, nervosismo, emoção… E depois o que fazer? Imediatamente decidi não dizer a ninguém, para não perturbar”, recorda o novo cardeal português.

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Porque é que não quis anunciar naquela celebração? Podia ter anunciado no final da celebração, por exemplo.
Não o quis fazer, não quis que dissessem que era eu. Procurei guardar para mim. E depois, no final da celebração, uma senhora aproximou-se, quando estávamos a fazer a fotografia de grupo, foi junto do pároco com um iPhone, mostrou-lhe, o pároco ficou assim surpreendido, vem ter comigo e diz: “Leia isto, é verdade?” E eu disse “sim, é verdade”. “Porque é que o senhor não disse a ninguém?” “Soube cinco minutos antes de começar a missa, tu nem sequer estavas lá na sacristia”. E depois foi ele que fez o anúncio.

Vai ser inédito, vão passar a ser quatro cardeais, dois cardeais no território português…
Dois cardeais no território português acontece pela primeira vez desde 1879, em que existia também um cardeal Américo, bispo do Porto, que tinha sido confessor da Rainha, e a Rainha, certamente, para o recompensar, tinha-lhe pedido o título de cardeal. Desde então, que eu saiba, só havia o cardeal-patriarca de Lisboa. E agora, por iniciativa, que a gente não sabe por que causa, por que razão, outro cardeal, ligado a Fátima. Eu penso que foi a ligação a Fátima, penso que foi também, além de ser um ato de confiança pessoal, penso que foi um dom que o Papa quis fazer a Fátima para pôr em relevo Fátima como mensagem, como acontecimento e como santuário dentro da Igreja universal.

O atraso na descolagem ainda foi significativo, pelo que a aterragem, prevista para as 19h30, acabou por só acontecer às 20h10. Finalmente, hora de voltar a colocar o cinto, a endireitar as cadeiras e os tabuleiros e a abrir as persianas das janelas para aterrar no aeroporto Leonardo da Vinci, em Roma. A impaciência já se havia apoderado de grande parte dos passageiros, que se levantam muito antes da abertura da porta. O próprio D. António ergue-se, mas por pouco tempo. “Não vale a pena estar em pé, ainda temos de esperar”, diz, enquanto se volta a sentar. Por fim, lá se abrem as portas da aeronave e o bispo sai para o terminal do aeroporto, rumo à zona de recolha das bagagens. Mas a pressa não costuma valer muito e ali passa-se o mesmo. Ainda falta meia hora para começarem a chegar as malas do voo com origem em Lisboa. E desta vez é mesmo preciso esperar, porque o bispo está a viajar com uma grande mala de viagem.

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Falava-me há pouco que leva a mala grande, mas que ela vai vazia…
Não vai vazia (risos)!

Não vai vazia, mas vai com espaço suficiente para trazer as novas vestes de cardeal. O D. António normalmente anda assim vestido, não costuma fazer muito uso de grandes vestes de cerimónia. Porquê? Isso é um sinal de simplicidade?
O Papa, por exemplo, veste com a maior das simplicidades. Tem aquela batina branca, com que se apresenta sem qualquer adorno exterior. Eu acho que a Igreja, até na maneira de os bispos, os cardeais se apresentarem, deve fazê-lo com simplicidade para as pessoas também não se sentirem distantes, para sentirem que a nossa própria humanidade se reflete também na maneira como nos apresentamos, e a nossa proximidade. Por isso, há ocasiões solenes, de celebração, em que tem de se usar as vestes próprias do bispo, ou até do cardeal, mas isso não é o normal nem o quotidiano.

Então, essas vestes vermelhas que vai trazer de Roma vão ficar mais tempo no armário…
Sem dúvida, sem dúvida. Certamente só as usarei quando tiver de ir a Roma. A não ser aquela batina preta, normal, com a faixa e com o solidéu com aquelas cores cardinalícias, sim, mas são muito discretas.

Na zona das chegadas espera-os o padre José Alfredo Patrício, o reitor do Pontifício Colégio Português, instituição que acolhe os padres e seminaristas portugueses que estudam em Roma e onde ficam habitualmente alojados os bispos portugueses que se deslocam ao Vaticano. A viagem entre o aeroporto e o colégio faz-se rapidamente, com o reitor da instituição ao volante, que vai comentando como já adquiriu os hábitos de condução em Roma. Entretanto, a viagem que tinha começado com a saída de Leiria a meio da manhã acaba, em Roma, junto aos muros do Vaticano, para lá das nove da noite. Do colégio vê-se a cúpula da Basílica de São Pedro, onde esta quinta-feira D. António Marto vai receber as insígnias cardinalícias das mãos do Papa Francisco. Horas antes, a bordo do avião que o trouxe para Roma, o bispo sublinhava que um dos motivos para a escolha teria sido a certeza de que o Papa encontrava em D. António Marto um colaborador fiel para levar a cabo uma profunda reforma da Igreja. Sentado numa das salas do colégio português, insiste novamente na importância de colaborar com a reforma da Igreja Católica.

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Mas que reforma é esta?
É sobretudo para uma Igreja que não seja autorreferencial, que não viva fechada sobre si mesma, sobre as suas pequenas questões, mas, como o Papa Francisco chama, seja a Igreja em saída. Que vai ao encontro do mundo, que se torna uma Igreja próxima, uma Igreja acolhedora, uma Igreja misericordiosa, uma Igreja que estabelece pontes de diálogo com todos os quadrantes da sociedade, uma Igreja que procura ir às periferias existenciais, portanto todos os lugares do sofrimento, da pobreza humana — não só material, mas também espiritual — e, sobretudo, uma Igreja empenhada na construção e na aproximação dos povos em ordem à paz.

A Igreja não é assim hoje.
A Igreja está a ser, agora com este impulso do Papa, mas leva o seu tempo. Depois, também uma Igreja que dá um lugar próprio ao laicado, aquilo a que ele chama Igreja sinodal, que não é só feita pelo clero, que vivia no clericalismo, mas com a participação responsável de todo o laicado. Pelo laicado, os cristãos, os fiéis cristãos leigos, na sua missão própria, sobretudo no mundo, e não se fechar dentro da própria Igreja.

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Porque é que a Igreja era assim até agora? Porque é que precisa de uma reforma?
Uma Igreja transparente, por exemplo. Foi uma Igreja que se abriu, no tempo do Concílio [Vaticano II], mas depois, ultimamente, talvez devido a esta mudança do mundo que estamos a viver, e que tem problemas novos aos quais é preciso responder, sofre sempre esta tentação de ficar fechada em si mesma. De olhar só para dentro. O Papa Francisco diz que prefere uma Igreja que suje as mãos e os pés no lodo do mundo, na lama, mas que saia ao encontro dos outros, correndo este risco de sujar, do que uma Igreja doente por ficar fechada em si mesmo e não respirar o ar puro.

Desde o início do pontificado do Papa Francisco, tem sublinhado a importância dessa reforma, aproximando-se das ideias do Papa. Já conversou com ele, até para a preparação do centenário de Fátima no ano passado. Como foram esses diálogos, o que é transmitiram um ao outro?
(Risos) Quer dizer, não conversámos muito porque as audiências são de um quarto de hora. Mas conversámos o suficiente sobre tudo.

"O Papa Francisco diz que prefere uma Igreja que suje as mãos e os pés no lodo do mundo, na lama, mas que saia ao encontro dos outros, correndo este risco de sujar, do que uma Igreja doente por ficar fechada em si mesmo e não respirar o ar puro"

Para se conhecerem um ao outro.
Sim. O motivo era sempre a ocasião da preparação da viagem, da peregrinação do Papa a Fátima. Depois, sobretudo a partir daquela exortação apostólica programática Evangelii Gaudium, a alegria do Evangelho… Um tom de alegria, uma Igreja que leva a toda a parte esta alegria do Evangelho. Como acabei de dizer, através da proximidade, da misericórdia, da partilha, da solidariedade, do acompanhamento das pessoas, por exemplo, que é tão necessário… Que cada um se sinta acolhido, escutado, acompanhado, compreendido. Portanto, de uma maneira muito mais evangélica do que uma Igreja que fala com autoridade de cima do púlpito. Esse tempo acabou.

Logo desde o início foi dando ao Papa os sinais de que estava do lado dele.
Trocávamos estas impressões, sim. Ele veio trazer a Fátima um novo otimismo, uma nova esperança, porque nós — e eu mesmo, falo por mim — deixámo-nos contagiar pelo pessimismo a que por vezes as situações do mundo nos levam, nos conflitos com a Igreja… Os pecados da Igreja, mesmo! Que ele enfrentou, de uma maneira muito serena, mas muito determinada para que haver transparência, para haver limpeza, saúde espiritual.

Fala dos escândalos sexuais, dos escândalos económicos.
Dos escândalos, sim, disso tudo, em que foi preciso fazer limpeza, chamemos-lhe assim. Purificação.

Pensa que o Papa Francisco fez um melhor trabalho do que Bento XVI nesse campo?
Nós temos de prestar a devida justiça ao Papa Bento XVI. Foi com ele que começou assim a sério, mesmo em termos legislativos, esta limpeza, este afrontar com determinação a problemática dos escândalos, mas que atingiram uma dimensão que o próprio Papa Bento XVI nem sequer imaginava. Ele, que tinha estudado vários casos quando era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Depois, tudo isso veio ainda mais ao de cima no tempo do Papa Francisco, e Francisco, com a mesma determinação, instituiu a chamada Comissão de Proteção de Menores a nível mundial, com um grande cardeal à frente, que é o cardeal de Boston, que também teve de enfrentar esse problema na sua diocese, e uma série de leigos peritos na matéria.

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Por ser bispo de Fátima, D. António Marto já é um dos membros da Igreja Católica mais escutados em Portugal. Mas a elevação a cardeal redobra o peso da figura na sociedade e esse impacto mede-se, sobretudo, nas posições sobre as questões mais fraturantes. Marto foi um dos últimos bispos a publicar orientações relativas à forma como a Igreja deve atuar perante os divorciados que tornaram a casar — e fê-lo num documento mais extenso, mas também mais cauteloso, do que aquele publicado por D. Manuel Clemente e que esteve no centro da mais recente polémica envolvendo a Igreja em Portugal. Ainda assim, o bispo de Leiria-Fátima recusa distinguir as posições de um e de outro ou usar os termos conservador ou progressista para descrever os dois bispos.

Segundo D. António Marto, todos os bispos portugueses estão a seguir a mesma exortação apostólica e o mesmo documento dos bispos argentinos sobre o assunto. “Depois, cada um tem um estilo próprio, um tom próprio com que se exprime, porventura com que a aplica”, reconhece. “O senhor patriarca explicou-se depois, muito bem, na entrevista que deu ao Expresso, na qual diz que para cristãos com fé sólida se pode examinar essa possibilidade [a recomendação da abstinência sexual para os divorciados], porque é da tradição da Igreja e não se lhe pode dar um pontapé para o cesto do lixo. Pode-se examinar essa possibilidade. Se ela for factível, muito bem, se ela não for factível, não é aconselhável. Fica ao processo de discernimento da consciência”, diz mesmo, antes de pedir: “Não vale a pena pôr-nos em contradição uns com os outros, porque o senhor patriarca explicitou depois na entrevista”.

A lista de prioridades de D. António Marto assemelha-se mais, isso sim, à do Papa Francisco. E no topo da lista, nos próximos anos, estão os jovens — a pastoral juvenil e vocacional é o tema pastoral da diocese de Leiria-Fátima para o próximo biénio e também o tema do próximo sínodo dos bispos. “É um tema desafiante, que nos desafia, porque é um mundo novo. Este mundo da juventude é um mundo novo que está a nascer e a crescer muito diferente daquele mundo em que nós, os mais velhos, nascemos e crescemos”, destaca o bispo de Fátima. Tudo isto numa altura em que se adensa a crise vocacional na Igreja Católica, talvez por falta de capacidade de marketing, admite o bispo.

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“A Igreja já passou por mudanças de época — porque nós estamos a assistir a uma mudança de época, não é só uma época de mudanças — e conseguiu sempre fazer frente e encontrar caminhos novos. Mas esta é inédita em muitos aspetos, como acabei de dizer. É uma época inédita. Em muitos aspetos, sobretudo nas novas tecnologias, que trazem uma nova cultura. Quando falamos em cultura digital, não nos referimos só a meros aspetos técnicos, de saber como funcionar com novos instrumentos. É uma nova cultura, na maneira de ser, na maneira de estar, na maneira de se relacionar, na maneira de ver o mundo, e por conseguinte tem repercussões também no aspeto religioso, de se relacionar com a fé, com o transcendente”, sublinha D. António Marto. Por isso, a Igreja “precisa de encontrar caminhos novos, e não os encontra da noite para o dia”.

Para já, as agendas do cardeal Marto e do Papa Francisco coincidem. A elevação a cardeal, apesar de ter apanhado o bispo de Fátima de surpresa, pode sempre dar uma ajuda na concretização dessa agenda. “Para as pessoas, conta muito ainda esta questão do título, da hierarquia. As pessoas pensam que isto é subir na hierarquia. Para muitos, é um motivo até de orgulho para o país, ter um cardeal junto do Papa, mais um”, comenta. E apesar de não gostar particularmente da exposição mediática, o novo cardeal garante que não se escapa às responsabilidades que o novo cargo lhe traz, a partir desta quinta-feira. “Não procuro estar sempre no palco, mas também não fujo quando é necessário. Por isso, continuarei, mais ou menos como era até agora, embora sabendo que as pessoas vão dar mais peso à minha palavra.”

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