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Sua Alteza, a Grã-Duquesa Bolacha Maria

É das bolachas mais modestas nos supermercados, mas a sua história tem ingredientes secretos, que misturam, no meio de um leve sabor a baunilha, palácios russos, frisos gregos e monarquia britânica.

Cheguei há uns dias da Turquia. Estive em Esmirna, onde participei numa conferência sobre Design e Transitoriedade (devo dizer que em inglês soa bem melhor). Na conferência, também ela transitória por natureza, falei, entre várias coisas, de Virginia Woolf e de lápis de carvão (que, na verdade, são feitos de grafite, e que nada têm nem de carvão, nem, como o nome lead pencils em inglês parece dar a entender, de chumbo).

Lápis de carvão são também sinónimo de regresso às aulas – regresso que aconteceu logo a seguir à conferência, para todos cá em casa. Para mim, que resolvi continuar a alimentar a minha veia materialista e começar um doutoramento em história do design, para o meu marido, que, prestes a terminar o seu próprio doutoramento, recomeçou a dar aulas depois das férias, e para os nossos filhos, que voltaram à escola. E, naquela brisa quente dos ‎últimos dias de verão que ainda pairava dentro de casa, o cheiro de protetor solar e de maresia começou a misturar-se, como acontece todos os anos, com o aroma a cedro dos lápis, com o cheiro inconfundível das borrachas novas e com aquele odor químico a tinta impressa dos livros por estrear. Todas essas fragrâncias, com notas cítricas de nostalgia mas florais de expetativa, formam o perfume passageiro de setembro. Nessa brisa perfumada costumam estar também as bolachas Maria, com o seu aroma discreto a baunilha, que nos dias de praia se escondem meias esmigalhadas no fundo do saco das toalhas, e que em setembro se apresentam compostas e comportadas em embalagens de quatro, envoltas em autênticas fardas de plástico, perfeitamente alinhadas dentro das lancheiras.

A bolacha Maria faz parte da vida dos portugueses há muitas décadas. Muitos pensam que é um produto português. Chama-se Maria, não é? E não há tantas mulheres chamadas Maria em Portugal? E não é fabricada por empresas nacionais? Quem não se lembra da lata na cozinha da casa da avó, meia amolgada nos cantos e ferrugenta das arestas, cheia de bolachas Maria e biscoitos de araruta que de tanto conviverem num ambiente hermeticamente fechado já sabiam todas ao mesmo? Quem não passou a sua infância a mergulhar bolachas Maria num copo de leite morno, primeiro muito depressa para não desmanchar a bolacha, depois deixando-a embebida mais tempo, num ato de transgressão temerário e experimental, até se desmanchar toda em pedacinhos que caíam para o fundo do copo e arranhavam a garganta quando se bebia o leite até ao fim? Quem não se lembra de comer meia dúzia de bolachas Maria barradas com manteiga, muitas vezes com mais manteiga que bolacha? E quem não se lembra do bolo de bolacha português, do creme de manteiga e café a amolecer as bolachas empilhadas, ou do salame, um canhão de chocolate embrulhado em papel de alumínio, cheio de estilhaços estaladiços de bolacha Maria?

Mas não, a bolacha Maria não é portuguesa. E tem uma história – de design – que vale a pena contar.

Eu sei, a bolacha Maria é comida. Mas este artigo não é uma crítica gastronómica. Não quero discutir o sabor ou a textura da bolacha Maria, até porque não saberia dar autoridade ao meu paladar, herdeiro de uma infância passada a ser a menina esquisita para comer, para dizer o que sabe bem ou mal. Nem quero avaliar a forma como a bolacha é confecionada e produzida, porque nada poderia acrescentar em temas de engenharia alimentar. Não, nada disso. Este artigo é sobre o design da bolacha Maria.

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A história do design, enquanto disciplina, também tem histórias sobre comida. Uma das minhas professoras do mestrado dizia, meio a brincar, que os historiadores do design podiam dominar o mundo, porque, na verdade, há design em todo o lado. E, de facto, existem vários estudos históricos que usam a comida como fonte de história material, desde o pão, à manteiga, ou mesmo à alta-cozinha, e que investigam vários aspetos de design dos alimentos, do processo de confeção e da sua apresentação.

A comida não deixa de ser, para mim, um tema difícil de abordar. A única vez que toquei no assunto foi numa encarnação já muito longínqua, para criticar, num trabalho académico, o prazo de impugnação e de declaração de invalidade de regulamentos administrativos previsto no Código do Procedimento Administrativo, usando uma imagem descrita por um professor de Direito alemão. Nessa imagem, o dito professor comparava um regulamento ilegal a uma refeição salgada, passível de ser corrigida por uma dona de casa sensata. No entanto, e de acordo com o meu argumento, que já não consigo reproduzir na totalidade, o teor de sal de um prato (ou o teor de ilegalidade de um regulamento) não é passível de ser corrigido nem pela dona de casa mais sensata (ou pelo legislador mais sensato), que terá de desfazer-se da comida ou esperar que os seus convidados o façam. Ou, como dizia a Julia Child, Eh bien, tant pis!: resta à dona de casa cerrar os dentes, sorrir e aprender com os erros. E o mesmo sucede, defendia eu, com o legislador, sob pena de as normas violadas se tornarem, usando mais uma alegoria gastronómica, num queijo suíço, nas quais cada regulamento ilegal que se consolidasse na ordem jurídica faria mais um orifício, enfraquecendo a sua estabilidade.

Mas adocemos novamente o texto com a bolacha Maria, antes que os leitores fiquem com um travo amargamente jurídico na boca.

As bolachas e os biscoitos fazem parte da dieta do ser humano há muitos séculos. Pensa-se até que os primeiros biscoitos tenham surgido no Neolítico. O nome biscoito vem do latim panis biscoctus, que significa pão cozido duas vezes, porque os biscoitos, muitas vezes parte integrante das rações dos legionários romanos, eram feitos de pedaços de pão cozidos uma segunda vez para retirar a humidade e durarem mais tempo. Durante centenas de anos, esses biscoitos, e variações deles, eram também usados como provisão marítima, pela sua durabilidade e economia. O facto de serem a base de alimentação de marinheiros e restante tripulação, em conjunto com carne seca, levou, aliás, aos casos de escorbuto com que todos nós nos enojámos nos livros de história do 8.º Ano.

Todos estes biscoitos não levavam, do que se sabe, açúcar, apesar de se conhecer o caso de alguns padeiros britânicos que usavam açúcar para fazerem biscoitos doces, chamados Fancies, em pequena escala e para consumo local, porque não duravam muito. Só com o crescimento das explorações de açúcar, constituídas pelo Reino Unido sobretudo a partir do séc. XVII, é que o consumo de açúcar se generalizou e começaram a aparecer mais versões doces de biscoitos.

No fim do séc. XIX, com as máquinas a vapor, e depois com o início da eletricidade, as fábricas britânicas, lideradas pela Peak Freans e pela Huntley & Palmers, começaram a produzir biscoitos em larga escala. Em 1846, a Huntley & Palmers construiu a primeira fábrica especificamente destinada à produção de biscoitos e, em 1874, fabricava dezenas de milhares de toneladas de biscoitos. O consumo de biscoitos tornou-se transversal a todos os estratos sociais, em inúmeras variações. A utilização de caixas de metal herméticas e o desenvolvimento das vias ferroviárias ajudou também a comercialização alargada de biscoitos, que assim não só duravam mais tempo como não se partiam no transporte, antes assegurado sobretudo por estrada. As viagens de longo curso, de comboio e de barco, assim como o alargamento dos horários de trabalho fora de casa, aumentaram também o consumo de biscoitos, usados como merenda portátil e de fácil conservação.

Em todo o caso, a variedade de biscoitos diferentes que se conseguia fazer com farinha, açúcar, óleo vegetal e por vezes baunilha era limitada. As marcas queriam diferenciar-se e, não tendo como alterar muito as receitas, apostaram no branding, dando nomes sugestivos às bolachas e criando caixas em lata muito decoradas e apelativas, usando novas técnicas de impressão. Como refere Lizzie Collingham, que escreveu um livro sobre a história do biscoito britânico, a novidade de um biscoito estava menos no seu sabor e mais na sua forma ou no nome que lhe dava carácter e estilo. Se os primeiros biscoitos foram batizados com nomes ligados à exploração marítima, como Captain, Water ou Cabin, recorrendo ao seu passado como provisão naval (em Portugal, basta lembrarmo-nos das Marinheiras), ou tomaram o nome de conhecidos médicos, ao serem associados com benefícios específicos para a saúde, no final séc. XIX os biscoitos começaram a ter nomes mais apelativos. A bolacha Garibaldi surgiu em 1861, a Pearl, precursora do conhecido biscoito Rich Tea, em 1865. J.D. Carr, outro grande fabricante de biscoitos (ainda hoje podemos ver nas prateleiras dos supermercados as bolachas de água e sal da Carr’s), ganhou o contrato de fornecimento de alimentos para a Grande Exposição de 1851, e inventou o Exhibition biscuit para a ocasião.

A competição entre marcas de biscoitos era feroz, sobretudo entre a Peak Freans e a Huntley & Palmers, e as marcas lutavam por criar novos produtos. Uma das estratégias mais bem-sucedida era associar as bolachas e os biscoitos à monarquia, tema muito querido pelos britânicos dessa época. Foram criados os biscoitos Albert, usando o nome do príncipe consorte, marido da Rainha Vitória, os biscoitos Balmoral, os biscoitos Bourbon e ainda os Prince of Wales. Os biscoitos Osborne, por outro lado, tiveram origem na recusa da própria Rainha em ver o seu nome num biscoito, tendo sido sugerido que a bolacha adotasse então o nome da sua casa favorita da Ilha de Wight.

Em 1874, o Príncipe Alfredo, Duque de Edimburgo e segundo filho da Rainha Vitória, casou-se com a Grã-Duquesa Maria Alexandrovna, filha do Czar Alexandre II da Rússia. Maria e Alfredo conheceram-se quando aquela tinha apenas 15 anos, e quando este já tinha uma carreira estável na Marinha Britânica (quantos biscoitos duros terá comido em alto-mar?). Queriam casar, mas tanto o Imperador da Rússia como a Rainha de Inglaterra opunham-se ao casamento (onde é que já ouvi esta história?). O Imperador não queria perder a sua única filha, e muito menos dar a sua mão a um inglês, sobretudo por causa do atrito que existia na altura com o Reino Unido em relação à guerra da Crimeia de 1853-56, guerra que a Rússia tinha perdido (onde é que eu já ouvi esta história, outra vez?). Temia-se também que não se adaptasse à cultura e aos costumes britânicos, vistos pela casa real russa como frios. A Rainha Vitória, por sua vez, além de não se encontrar em termos muito amigáveis com a Rússia, receava que a educação russa e a religião ortodoxa de Maria pudessem criar problemas. Mas, após muitas negociações e vários anos depois, o príncipe inglês casou-se com a princesa Romanov, casamento ao qual a Rainha Vitória não assistiu, por se ter realizado no Palácio de Inverno em São Petersburgo, na Rússia (para onde a monarca, naturalmente, não viajou).

Este acontecimento real parecia um ótimo motivo para criar um novo biscoito e aumentar as receitas. Se hoje se fazem canecas com fotografias desmaiadas da Rainha, hoodies de mau gosto com os seus corgis, ou colheres em falsa prata com a sua coroa, no séc. XIX o merchandising era bem mais apetitoso. Aproveitando o casamento entre o Duque de Edimburgo e a Grã-Duquesa Russa, que na altura correu a Europa, a marca inglesa Peak Freans decidiu criar nesse mesmo ano, em 1874, a bolacha Maria, usando o nome da noiva real. A bolacha Maria não é, por isso, uma Maria qualquer. É uma Maria de sangue azul.

A receita, lá está, não era propriamente original. Novamente, uma mistura de farinha, açúcar, óleo vegetal e extrato de baunilha. Mas, se tiver aí em casa bolachas Maria, pegue numa, e observe.

A bolacha Maria é redonda. Não é muito fina nem muito espessa, e tem o nome Maria escrito no centro. Algumas têm também referências ao local de fabrico e à marca. A letra é tipográfica, simples e clara, mas é esmerada e com serifas elegantes. Seria mais difícil, certamente, conseguir dar legibilidade a uma bolacha desta dimensão com um tipo de letra caligráfico ou mais elaborado. À volta das letras estão pequenos orifícios que costumam atravessar a bolacha, todos eles equidistantes, e em redor da bolacha está uma moldura trabalhada.

Já tinha reparado nestes detalhes? Suspeito que não, até porque conhecemos tão bem a bolacha Maria que não nos demoramos a olhar para ela antes de a comer. Mas todos esses elementos têm uma razão de ser.

Os orifícios equidistantes estão relacionados com o fabrico da bolacha. Tal como sucede em muitas bolachas que ainda hoje são comercializadas, sobretudo as de água e sal, os orifícios permitem uma cozedura uniforme porque deixam sair o vapor, e evitam que a bolacha inche muito ou se parta no forno. É a forma de garantir que a bolacha se mantém fina e estaladiça.

Os restantes detalhes estão relacionados com o casamento real de 1874. O nome, como já referi, vem da Grã-Duquesa Maria Alexandrovna. As letras delicadas e a moldura, do facto de se tratar de um casamento real. Aliás, a forma circular, a moldura e as letras trabalhadas fazem com que a bolacha Maria se pareça com uma medalha comemorativa – e, na verdade, era efetivamente uma medalha comemorativa (mas comestível) do casamento real.

A moldura da bolacha Maria tem algumas particularidades que vale a pena salientar, porque não é apenas uma moldura elegante. Repare bem nela. A moldura tem um padrão em chave, que foi muito utilizado na Antiguidade Clássica sobretudo pelos gregos, em arquitetura, cerâmica, tecidos e muitos outros objetos. Se fechar os olhos, consegue imaginar um templo grego com este friso, ou um daqueles vasos gregos de terracota tão conhecidos, com figuras de lutadores num fundo preto, debruados com este padrão. O aspeto regular e elegante do friso grego dá à bolacha Maria um ar real e sofisticado.

Mas não foi só pela distinção clássica que o padrão em chave foi usado na bolacha Maria. As aproximações culturais entre a Grécia e a Rússia são antigas, e é possível identificar influências gregas religiosas e culturais nos territórios que hoje pertencem à Rússia desde o séc. IX a.C. Além disso, no fim do séc. XIX, a cultura grega era muito popular na Rússia. Aliás, se olharmos para o salão do Palácio de Inverno onde ocorreu o baile comemorativo do casamento entre o Duque de Edimburgo e a Grã-Duquesa, em São Petersburgo, vemos o padrão grego em chave no soalho. O mesmo padrão em chave aparece, num desenho mais simples, numa fotografia da Grã-Duquesa, no debrum do seu vestido largo. E, ainda mais sugestivo, o padrão em chave da bolacha Maria aparece a emoldurar uma fotografia oval de Maria Alexandrovna, tirada quando esta era jovem.

Não se sabe o motivo concreto por que a Peak Freans usou o padrão em chave grego na bolacha Maria – terão visto num jornal uma fotografia da Grã-Duquesa, ou algum elemento que apontasse para este padrão? Em todo o caso, a ligação entre o padrão grego e a Rússia, e mais especificamente a conexão com Maria Alexandrovna, são muito significativas.

Mesmo que não existisse qualquer ponto de contacto, certo é que o padrão grego em chave é partilhado por muitas outras culturas sem que se conheçam ligações evidentes entre elas. Há vestígios de padrões em chave do Paleolítico, e existem vários elementos deste padrão nas culturas etruscas, gregas, romanas, bizantinas, maias, chinesas e egípcias.

O padrão em chave é, sem dúvida, um padrão ubíquo e transcultural, mas a sua difusão é, como referi, da responsabilidade dos gregos, que o designavam também por padrão em meandro. Meandro, em grego, significa tomar um caminho indireto, sinuoso. Vem do nome do rio Menderes ou Meandro (em turco, Büyük Menderes), localizado dos territórios da atual Turquia, um rio comprido cheio de curvas (é, aliás, daí que vem a palavra em português meandro, que partilha os mesmos significados). Na realidade, diz-se que o padrão em meandro simboliza a continuação das coisas, o fluir, sinuoso, labiríntico, mas constante, do tempo e da vida humana, como um rio, através da reprodução de um padrão. Diz-se também que o padrão em meandro representa um aperto de mão entre lutadores gregos, a união e a força, orientadas para o alcance de um objetivo. Simbolismos muito adequados, de facto, à celebração de um casamento.

E, claro, os meandros desta vida fizeram com que este padrão em chave também emoldurasse, num mosaico em tons de azul cerúleo e branco, a piscina onde passei estas férias de verão, antes de ir para a Turquia. Piscina essa onde reli, com água pela cintura, a Mrs. Dalloway, em preparação da conferência, e onde pensei sobre as derivas de Virginia Woolf (e sobre as minhas) em Londres, sobre a espontaneidade de nos deixarmos levar por um caminho fluído como a corrente de um rio, sobre a corrente do rio Ouse que, infelizmente, levou Woolf em 1941. E, também, sobre como Sometimes the river is the bridge, usando o título de um projeto de Olafur Eliasson. Sobre como, por vezes, o que vemos como obstáculo é na verdade a solução (ou, na formulação de Marco Aurélio, o que está no caminho torna-se o caminho, Meditações, 5.20, um dos princípios, curiosamente, da filosofia estóica, outro meandro pela Antiguidade clássica). Sobre como, por vezes, não temos de atravessar os rios que se cruzam à nossa frente, e podemos, ao invés, entrar neles, e tomar o seu percurso natural.

Maria Alexandrovna, que ganhou inicialmente popularidade por ter contrariado a sua família para casar com quem desejava, tomou esse caminho que era o obstáculo, integrando-se na sociedade inglesa, mas acabou por não se adaptar à corte britânica e saltou para a margem. Diz-se que criticava as várias residências reais por não se compararem ao seu Palácio de Inverno, em especial Clarence House, a sua residência oficial, que achava sombria (e que, curiosamente, foi até há uns dias também a residência oficial do atual Rei Carlos III). A sua relação com a sogra, a Rainha Vitória, azedou, e a antipatia e a desilusão que sentia em relação ao Reino Unido acabaram por lhe retirar a popularidade inicial. Depois de passar os primeiros anos de casada no Reino Unido, e com a ascensão do seu marido ao trono do ducado de Saxe-Coburgo-Gota, Maria mudou-se para Coburgo, e viria a morrer na Suíça. É com alguma ironia que a bolacha que tomou o seu nome tenha sido recebida inicialmente com sucesso no Reino Unido, mas tenha depois visto esse sucesso fluir para outras paragens. Hoje, a bolacha Maria é mais conhecida em outros países do que no país onde nasceu. Portugal e Espanha são apenas alguns dos países onde é popular, entre a Venezuela, Dinamarca, Brasil, Noruega, Filipinas, México, Malásia, Costa Rica, Austrália, Índia, Egito, Ucrânia, África do Sul, Paquistão, Finlândia, Suécia e muitos outros. Para não falar das semelhanças serendipitosas entre doces tradicionais de alguns destes países, em que a bolacha Maria é usada como ingrediente (é impossível olhar para um pedaço de kek batik da Malásia e não ver ali um primo do nosso salame de chocolate português).

A bolacha Maria mantém o mesmo design em todo o lado, em todos esses países, há décadas a fio. Nos anos 80 foi criada na Índia uma bolacha Maria quadrada, que não teve sucesso (se é quadrada, como pode ser Maria?). Acabou por se tornar num símbolo de permanência, consistência e ubiquidade. Mas não nos podemos esquecer de que foi criada para celebrar um acontecimento efémero, e de que é, ela própria, efémera, destrutível em duas dentadas.

Se todas as estradas vão dar a Roma, todos os rios vão dar à Grécia: diz-se que o grego Heraclito, nascido no território que é hoje parte da Turquia, em Éfeso (que também visitei durante a conferência), é o autor daquele famoso lema sobre impermanência, segundo o qual nenhum homem entra no mesmo rio duas vezes (acrescentaria eu, também ninguém come a mesma bolacha Maria duas vezes). Novamente o rio, uma corrente em mutação, mas também, ainda que paradoxalmente, de movimento perpétuo, um símbolo da transitoriedade e ao mesmo tempo da permanência das coisas que nos rodeiam. Transitoriedade e permanência que também estão impressas num friso infinito em meandro numa bolacha Maria. Quando agora olho para uma bolacha Maria, aquele friso grego não é só um símbolo da apreciação russa pela cultura grega. É também um sinal da impermanência da bolacha em contraste com a permanência do seu design.

A constância do design de alguns objetos, sobretudo quando estes têm uma natureza tão efémera como as bolachas Maria, tem uma explicação possível, que sugeri quando falei de lápis de carvão, na Turquia, naquela conferência sobre Design e Transitoriedade. Remeto para aí a continuação desta reflexão, até para este texto não perder a fluência, de tantos meandros que encontrou pelo caminho.

Seja como for, se toda a pompa fúnebre britânica dos últimos dias lhe tiver causado uma reação alérgica na sua epiderme republicana, veja se não é melhor substituir as bolachas Maria da lancheira dos seus filhos por um alimento menos monárquico. É que a bolacha Maria, em toda a sua simplicidade, será sempre um membro da realeza britânica. Mande, de vez em quando, umas Passitas (qual era o mal, afinal, do nome Coríntias, também ele tão classicamente grego?). Ou, se não tiver problemas com o capitalismo extra-açucarado norte-americano, umas Oreo (que já têm, deve dizer-se, 110 anos). Isto, claro, se as suas crianças não forem corridas diariamente a palitos de cenoura crua com húmus para o lanche da manhã – ou, quem sabe, às ditas bolachas Marinheiras, com aquele maravilhoso sabor a papel e alpista.

Note bem que nada tenho contra alimentos sem açúcar. Mas não há nada que se equipare, nas nossas memórias de infância, às três ou quatro bolachas Maria que comíamos antes da aula de Matemática. Para mim – e agora atrevo-me a falar de sabores –, as bolachas Maria, sobretudo neste mês de setembro de 2022, repleto de mudanças e transitoriedades, em Lisboa, em Londres e por esse mundo fora, com o início e o fim de doutoramentos e de reinados, sabem a memória e a permanência. São um rio que liga o passado ao presente, os fins aos começos. E deixam na boca um sabor a futuro, com um leve toque de baunilha.

Materialista é uma série sobre memória material em que Joana Albernaz Delgado dá a voz a objetos icónicos do quotidiano. Desde que terminou o mestrado em História do Design no Victoria and Albert Museum e no Royal College of Art que Joana escreve sobre tudo e mais alguma coisa, em especial sobre coisas. É materialista, no bom sentido.

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