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Bastaram 26 palavras para dar forma à internet como hoje a conhecemos. Em 1996, a Secção 230 foi criada para proteger os primeiros passos das plataformas digitais e deve parte da origem a um protagonista — o “lobo de Wall Street”.
Mas ao longo de 27 anos tudo mudou. Há tecnológicas que valem mais do que o PIB de alguns países e que têm tentáculos em muito do que fazemos online. Os especialistas defendem que parte do seu crescimento deve-se à Secção 230, que lhes concedeu imunidade, ou seja, não podem ser responsabilizadas pelos conteúdos produzidos por terceiros que possam estar disponíveis nas plataformas.
A discussão sobre a reforma à Secção 230 já dura há alguns anos, mas em 2023 ganha outro peso. Dois casos de atentados terroristas, um em Paris e outro em Istambul, estão no centro do debate e chegaram às mãos do Supremo Tribunal dos Estados Unidos. As famílias de Nohemi Gonzalez, uma norte-americana morta em 2015 nos ataques de novembro em Paris, e Nawras Alassaf, um cidadão jordano com família americana que morreu em 2017 num ataque a uma discoteca na Turquia, enfrentam a Google e o Twitter, defendendo que contribuíram para a radicalização de utilizadores. Na ação que visa a Google, a mira está apontada ao YouTube e aos seus sistemas de recomendação de conteúdos. O Twitter contesta uma decisão em que foi considerado que não fez o suficiente para reprimir a presença de membros do Estado Islâmico na rede social.
São casos separados e com argumentações distintas, mas que afunilam para a mesma questão — chegou a hora de as plataformas online serem responsabilizadas?
No final de fevereiro, o Supremo Tribunal ouviu a argumentação oral nos dois casos. Só é esperada uma decisão em junho, mas as dúvidas sobre como poderá ser uma internet com uma Secção 230 alterada multiplicam-se e não há consenso sobre o caminho a seguir. De um lado, as tecnológicas argumentam que a reforma pode trazer uma enxurrada de processos se tiverem de ser responsabilizadas pelos conteúdos e do outro as organizações sem fins lucrativos temem não só uma vida online menos segura como mais limitada a nível de liberdade de expressão. Na moderação de conteúdos, podem surgir duas tendências: ou excessiva, para cortar pela raiz os riscos, ou a inação nos casos de quem não tenha recursos para enfrentar possíveis litígios.
Secção 230, uma lei de poucas palavras mas com grande impacto
A Secção 230 tem, em parte, origem num protagonista conhecido como “lobo de Wall Street”, que saltou para o grande ecrã em 2013 pelas mãos de Martin Scorsese. Em 1995, a Stratton Oakmont, a empresa criada por Jordan Belfort, o “lobo” que serviu de inspiração à personagem de Leonardo DiCaprio, processou a Prodigy, uma empresa de serviços de internet. Os fóruns online eram rudimentares, mas um em particular, o Money Talk, pertencente à Prodigy, chamou a atenção dos responsáveis da corretora por comentários que punham em causa a reputação da empresa. Danny Porush, o diretor financeiro da Stratton Oakmont, era mencionado como “um criminoso prestes a ser comprovado” e a companhia como “um culto de corretores que mentem para viver ou são despedidos”. Passados quatro anos, Belfort e Porush foram condenados por fraude financeira e lavagem de dinheiro.
Em 1995, a Stratton Oakmont tentou processar os autores dos comentários online mas, como eram anónimos, optou por exigir responsabilidades à Prodigy, a responsável pelo fórum. O Supremo Tribunal de Nova Iorque considerou que, como a empresa moderava alguns dos conteúdos, deveria ser responsável por todos, como se fosse um editor. A decisão gerou apreensão entre muitas das empresas ligadas à internet e o tema chegou ao Congresso.
Um ano depois, nasceu a Secção 230 da Lei da Decência das Comunicações, as “26 palavras que ajudaram a criar a internet” como hoje a conhecemos e que contrariou a decisão do caso Stratton contra a Prodigy. É vista como a coluna vertebral da internet e determina que as plataformas tecnológicas não devem ser responsabilizadas pelo conteúdo que alojam. “Nenhum fornecedor ou utilizador de um serviço interativo de computador deve ser tratado como o publisher ou porta-voz de qualquer informação disponibilizada por outro fornecedor de conteúdo”, na tradução para português.
Foi a tentativa do Congresso de proteger os primeiros passos da internet. “Era dar o poder a estas primeiras plataformas da internet para, basicamente, tomarem as suas próprias decisões de moderação sem medo de que isso as tornasse responsáveis pelo discurso de terceiros nas suas plataformas”, resume Ben Sperry ao Observador, diretor associado da área de investigação legal do International Center for Law & Economics (ICLE). “Dá imunidade às empresas online de serem responsabilizadas, pelo menos na maioria das circunstâncias, pelo que terceiros publicam quando estão nos seus sites.” Com o tempo, a Secção 230 foi ganhando diferentes apelidos, desde tábua de salvação das tecnológicas até carta livre da prisão, como no jogo Monopólio.
No entanto, a Secção 230 não é uma carta branca para fazer tudo online – as empresas continuam a poder ser responsabilizadas caso cometam um crime federal, por exemplo. E, conforme nota a associação Electronic Frontier Foundation (EFF), é uma garantia da liberdade de expressão na internet. “A Secção 230 tem um amplo alcance.” David Greene, diretor da EFF para a área de liberdades civis, explica ao Observador que tanto são protegidas as grandes tecnológicas como os utilizadores. “As reviews online, como as que se pode fazer quando se compra algo na Amazon, simplesmente desapareceriam se as empresas fossem responsáveis pelo que os utilizadores escrevem”.
O que argumenta cada uma das tecnológicas?
Tanto o caso da família Gonzalez como o do os Taamneh foram apresentados como uma forma de honrar a memória das vítimas e enquadram-se numa lei antiterrorismo, em que os familiares de alguém morto em ataques podem exigir compensações. Passaram por outros tribunais antes de chegarem às mãos do Supremo, que aceitou ouvir os argumentos das duas partes. Mas há um ponto relevante: apesar de a reforma da Secção 230 ser um tema nos EUA, é a primeira vez que os nove juízes do Supremo têm de lidar com esta lei. A decisão que está nas suas mãos tem um peso considerável.
A argumentação da Google para se defender neste caso, que levanta dúvidas sobre os seus sistemas de recomendação e algoritmos, centra-se na liberdade de expressão, segurança da internet e no facto de a Secção 230 ser um pilar económico da internet. Numa declaração enviada ao Observador, Halimah DeLaine Prado, conselheira geral da Google, nota que “o Congresso deixou claro que a Secção 230 protege a capacidade dos serviços online organizarem o conteúdo”. “Diminuir estas proteções mudaria fundamentalmente o funcionamento da Internet, tornando-a menos aberta, menos segura e menos útil”, considera esta responsável.
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A defesa da Google tornou-se pública em janeiro, um mês antes da apresentação da argumentação oral perante o Supremo Tribunal. “Uma decisão que mine a Secção 230 poderia fazer com que os sites removam material potencialmente controverso ou fechem os olhos a conteúdo censurável para evitarem ter conhecimento da sua existência”, escreveu a conselheira geral da Google, numa publicação no blog da empresa. Defendeu que uma alteração à Secção 230 terminaria com um consumidor com apenas duas opções: a “escolha forçada entre sites de acesso massificado com curadoria excessiva e sites marginais inundados por conteúdo censurável”.
A tecnológica argumentou que a Secção 230 tem até agora “protegido a capacidade dos serviços online e os seus utilizadores de destacar conteúdo relevante e útil (…) e ligar pessoas a material de que gostem”. Sem ela, “alguns sites seriam forçados a bloquear, filtrar conteúdo que poderia criar um potencial risco legal e a encerrar alguns serviços.” Mais uma vez, a Google puxou a cartada da menor opção de escolha para os consumidores, falando em consequências para o trabalho, lazer, ensino, compras e partilha online.
A empresa defendeu que, no cenário de alterações, a internet poderá ficar “menos segura”, já que a lei possibilita aos sites “remover ou reduzir spam, esquemas e conteúdos ofensivos”. “Sem a Secção 230, os sites com menos recursos poderão ter menor probabilidade de analisar e moderar conteúdos por receio de litígio com base no conhecimento desse conteúdo.” Na vertente económica, argumentou que os publishers, criadores e pequenos negócios poderão ter maior dificuldade em operar devido aos processos de que podem ser alvo. “Uma onda crescente de litígios vai reduzir o fluxo de informação de alta qualidade na internet, que criou milhões de empregos americanos, ideias inovadoras e biliões [de dólares] em crescimento económico”.
Embora o processo em que o Twitter está envolvido não mencione diretamente a Secção 230, as acusações de que poderá ter contribuído de “forma substancial” para “um ato internacional de terrorismo” tocam no tema da imunidade concedida pela lei. A família da vítima do ataque terrorista em Istambul alega que a rede social não terá feito o suficiente para bloquear de forma adequada conteúdo terrorista, uma violação da lei antiterrorismo – algo de que o Twitter discorda.
Seth Waxman, advogado da rede social, argumentou que a empresa não deve ser responsabilizada por auxílio a terrorismo se não souber diretamente qual foi a publicação ou conta que pode ter estado na origem da radicalização. Por exemplo, na documentação apresentada ao Supremo, a plataforma classificou como “inteiramente ilusória” a distinção que a família da vítima faz entre “inação e ação insuficiente”.
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Supremo sem “apetite” deverá passar a discussão para o Congresso
Nos EUA, a reforma à Secção 230 é uma questão recorrente na agenda mediática. As opiniões dividem-se e há motivações bastante diferentes para defender alterações ou para manter tudo como está. Com o escrutínio às tecnológicas a aumentar, os democratas defendem que é preciso maior responsabilização das plataformas; os republicanos alegam que são demasiado censurados online.
O próprio Presidente norte-americano é um defensor da reforma da Secção 230. Num artigo de opinião no Wall Street Journal, publicado em janeiro, Joe Biden exortou “democratas e republicanos a unirem-se para aprovar uma forte legislação bipartidária para responsabilizar a big tech”. As “grandes empresas de tecnologia costumam usar os dados pessoais dos utilizadores” para os manter nas suas plataformas, direcionando-os “para conteúdo extremo e polarizador que provavelmente os manterá conectados e a clicar”.
Biden defendeu que as tecnológicas têm de assumir “a responsabilidade pelo conteúdo que espalham e pelos algoritmos que usam.” “Também precisamos de muito mais transparência sobre os algoritmos que a big tech está a utilizar para impedi-los de discriminar, manter as oportunidades longe das mulheres e de minorias igualmente qualificadas ou de recomendar conteúdos a crianças que ameacem a sua saúde mental e segurança”.
Os juízes do Supremo Tribunal mostraram-se mais cautelosos quanto a alterar o que é considerado um escudo legal que protege as plataformas digitais. Durante a audição dos argumentos relacionados com o caso dos Gonzalez contra a Google, os magistrados disseram que não são “os nove maiores especialistas da internet”. O The Guardian escreveu que a juíza Elena Kagan disse que o tribunal ainda tinha mais a aprender antes de tomar uma decisão, enquanto John Roberts comparou o sistema de recomendação de vídeos à sugestão feita por um livreiro a um cliente — indicar algo pode não ser um incentivo à ação.
Os especialistas contactados pelo Observador não acreditam que o Supremo Tribunal vá tomar uma decisão sobre a Secção 230, mas sim que poderá emitir uma recomendação e passar a ‘bola’ para o Congresso. “Os riscos são elevados: uma decisão a favor da responsabilização da Google ou do Twitter poderá expor todas as plataformas, grandes e pequenas, a potenciais litígios sobre os conteúdos dos utilizadores”, alerta Sara Rocha. A associada de Tecnologias, Media e Comunicação e Propriedade Intelectual da sociedade de advogados CMS afirma que “o simples facto de os juízes terem concordado em analisar estes casos mostra, por si só, que têm preocupações com o tema”.
Para Rita Figueiras, investigadora na área da comunicação política e professora na Universidade Católica Portuguesa, é ainda “precipitado” imaginar o que poderá ser decidido, uma vez que só são conhecidos os primeiros argumentos. “A questão principal é que efetivamente há processos em curso, há um movimento que claramente caminha para que qualquer coisa aconteça”, afirma, antecipando que os processos vão ser “muito lentos”. Também Rita Figueiras acredita que “não será certamente o Supremo Tribunal a decidir uma coisa com tantas implicações como a Secção 230”.
Desta forma, é possível que o Supremo Tribunal possa aconselhar a revisão do artigo, optando por não produzir alterações significativas. Eric Goldman, professor de direito na Universidade de Santa Clara, nos EUA, diz que o Supremo “não é intrinsecamente responsável por fazer julgamentos sobre o mérito político da Secção 230”, explicando que a função desse órgão é interpretar as palavras presentes no artigo.
Também Ben Sperry, diretor associado da área de investigação legal do International Center for Law & Economics (ICLE), reconhece que os juízes do Supremo não mostraram estar “com apetite” para “alterar significativamente a forma como funciona o artigo 230”. “Pareciam céticos aos argumentos trazidos pelos advogados dos Gonzalez, por isso parece-me provável que não vão decidir a favor da família”, acrescenta.
Se a discussão passar para o Congresso, como os especialistas preveem, será preciso um acordo entre republicanos e democratas para alterar a lei. “Nos últimos anos, o Congresso introduziu vários projetos de lei sobre a Secção 230 que vão desde a sua reforma até à sua revogação, mas a política partidária tem sido um entrave”, nota Sara Rocha. Os republicanos acreditam que as grandes tecnológicas — como a Meta, a Google ou o Twitter — censuram o discurso de vozes de direita, enquanto os democratas apelam à remoção de determinados conteúdos que promovam a desinformação, o ódio ou a violência.
Para Eric Goldman, a decisão que o Congresso poderá vir a tomar é muito clara: “Não tomará uma decisão favorável para a internet. Neste momento, o Congresso está puramente interessado em demolir a internet”. Ao Observador, o professor explica que se o Supremo Tribunal eventualmente decidisse rever a Secção 230, o Congresso não se iria opor. “Eles pensam que ao mudar a Secção 230 vão conseguir fazer com que os serviços ou façam mais moderação de conteúdo ou façam possivelmente menos moderação de conteúdo, dependendo do partido em que se encontram. E ambos estão errados. O que irá acontecer é que a Secção 230 [se for alterada] vai atirar os players para fora da indústria”. Este especialista acredita que o Congresso faz uma interpretação “errada” da 230.
A internet pode mudar, mas não será já
Os entendidos acreditam que a curta extensão da Secção 230 dá uma larga margem para interpretação e que já não corresponde ao atual contexto da internet. “Caso a caso, os tribunais têm usado as suas decisões para dar às plataformas uma imunidade bastante ampla”, entende Sara Rocha, da CMS. Mas há outro “lado da internet”, diz, “que, nos moldes atuais, permite a divulgação de conteúdos ofensivos e falsos, sem que exista qualquer responsabilização dos seus criadores, mas também das plataformas que alojam” esses conteúdos.
É difícil perspetivar a forma como a internet pode, eventualmente, mudar, uma vez que existem vários cenários possíveis. Os especialistas consideram que reduzir a proteção às plataformas significa expô-las e também aos seus utilizadores a mais ações judiciais. Se a decisão final não for favorável à indústria tecnológica, as empresas vão ter que tomar medidas para evitar serem responsabilizadas por conteúdos de terceiros. Uma das opções poderá passar pela moderação de conteúdos para lidarem com o possível aumento de risco.
O professor Eric Goldman, há muito defensor da Secção 230, considera que alterá-la vai deixar as tecnológicas sem “qualquer moderação de conteúdo”. Por sua vez, a advogada norte-americana Cathy Gellis acredita no oposto, que “muitas plataformas deixariam de existir, especialmente as mais recentes” e as que continuassem a operar “teriam de se recusar a viabilizar muitos conteúdos”. “Não seriam capazes de fazer tanta moderação de conteúdos como conseguem agora, o que significa que as plataformas que permanecessem a operar provavelmente seriam invadidas por conteúdo terrível.”
A liberdade de expressão online também poderá ficar em causa. Nesse caso, Ben Sperry, da ICLE, considera que a resposta das redes sociais poderá passar por “restringir o conteúdo do utilizador para evitar responsabilidades”. Já Sara Rocha recorda que vários grupos defensores de liberdades civis acreditam que “esta lei oferece uma importante proteção da liberdade de expressão, dando às plataformas tecnológicas o direito de alojar uma série de informações sem que exista qualquer tipo de censura”.
A advogada portuguesa afirma que apesar de “na mira principal” estarem as grandes tecnológicas, como Facebook, Twitter ou TikTok, as consequências “podem estender-se muito além destas empresas”. Desta forma, uma “série de prestadores de serviços digitais, como páginas para divulgação de críticas a restaurantes ou a simples introdução da possibilidade de deixar uma crítica a um livro numa livraria online” poderão sentir o impacto desta possível decisão.
A internet pode mudar, mas não será no futuro próximo. Ainda há muito caminho a percorrer, uma vez que os processos deverão avançar lentamente. Neste sentido, a investigadora Rita Figueiras recorda um caso em particular: o da Cambridge Analytica, de que se começou a falar em 2018 e cinco anos depois “pouco aconteceu do ponto de vista de regulação”. A empresa de dados recolhia informação sobre utilizadores do Facebook, que foram fornecidos à campanha de Donald Trump, em 2016, que dirigiu anúncios aos eleitores indecisos.
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Sistemas de recomendação estão no centro do caso contra a Google
No caso que opõe a família Gonzalez à Google, o Supremo Tribunal tem em mãos a missão de perceber se os algoritmos e sistemas de recomendação usados no YouTube podem ter contribuído para a radicalização de utilizadores, culminando em ataques terroristas. Eric Schnapper, o advogado que representa a família Gonzalez contra a Google, explicou perante os juízes do Supremo que o objetivo do processo é “tentar distinguir entre a responsabilidade pelo conteúdo que está no site e a que se pode aceder e as ações que são feitas para encorajar [os utilizadores] a ver determinada coisa”.
Na audição dos primeiros argumentos, os juízes mostraram-se divididos sobre o tema e revelaram dificuldade em perceber como os sistemas de recomendação podem ter contribuído para o caso ou se é possível que um algoritmo seja neutro. “Estamos a falar de uma aplicação neutra de um algoritmo que funciona de forma genérica para [sugerir] arroz pilaf e, de forma similar, vídeos do Estado Islâmico?”, questionou o juiz Clarence Thomas. “Não compreendo como é que uma sugestão neutra sobre algo em que se demonstrou interesse é considerado auxílio ou cumplicidade”. Mas também houve quem reconhecesse, como a juíza Elena Kagan, que os algoritmos estão profundamente enraizados na forma como a internet funciona, antecipando que a questão não será fácil de analisar.
São os algoritmos e os sistemas de recomendação que fazem com que o feed de notícias do Facebook ou os vídeos sugeridos pelo YouTube pareçam feitos à medida de cada utilizador. A Google sublinhou a importância dos algoritmos, descrevendo-os como “indispensáveis para uma internet funcional” e que “sem selecção algorítmica” a pesquisa “não teria ordem e seria uma lista cheia de spam”. E, especificamente no YouTube, a tecnológica defendeu que “seria reproduzido qualquer vídeo publicado numa sequência infinita – o pior canal de televisão do mundo”.
Eric Goldman, professor de direito na Universidade de Santa Clara, nos EUA, destaca que, a haver revisão, os algoritmos “não teriam intrinsecamente de ser alterados”, mas que sem a Secção 230, quem usar esses sistemas “não teria proteção legal”, abrindo a porta a muitos processos. E defende que os algoritmos são necessários. “Há tanto conteúdo online que nós, como consumidores, precisamos de ajuda para fazer a navegação.”
Ben Sperry, da ICLE, nota que uma decisão favorável aos Gonzalez que implique os algoritmos “não só terá impacto no YouTube e na Google, como também na vasta filosofia da economia da internet”. “Se não tivéssemos o algoritmo e as recomendações, teríamos de saber exatamente o que procuramos e como o encontrar. As redes sociais sabem aquilo que procurámos no passado [o histórico] e o contexto do que procuramos. Se se remover o algoritmo de recomendações da equação, isso tornará os produtos realmente menos úteis.”
Rita Figueiras lembra que o facto de se continuar a desconhecer os critérios dos algoritmos pode dificultar a análise do Supremo Tribunal. “Há uma enorme opacidade no acesso” à informação, até para quem pretende fazer investigação sobre o assunto, lamenta. “Enfim, consegue-se por vezes ter uma certa perceção, mas ela é com certeza muito distante do que efetivamente acontecerá na construção complexa que envolve estes algoritmos.” Mas Rita Figueiras admite um cenário em que os sistemas de recomendação “não estão a olhar a conteúdos, mas sim a perceber quais é que fazem com que uma pessoa permaneça na plataforma”.
Tecnológicas defendem a manutenção da sua “tábua de salvação”
Os casos em apreciação no Supremo visam diretamente a Google e o Twitter, mas há mais tecnológicas a pronunciarem-se sobre o tema, especialmente naquele que envolve o YouTube. Empresas como a Meta, Microsoft, Reddit ou a Yelp têm um ponto em comum nos contributos enviados ao tribunal: defendem que a proteção da 230 se mantenha. A Microsoft considera que dar razão à família Gonzalez “criaria caos na internet como a conhecemos”, classificando a argumentação como “incoerente”. Por exemplo, no Bing e no LinkedIn, dois dos seus serviços, perspetiva os “efeitos devastadores e desestabilizadores de uma decisão que altere a Secção 230”.
A Meta, dona do Facebook e Instagram, transmitiu receio de que uma mudança possa “incentivar os serviços online a remover conteúdos importantes, provocadores e controversos em questões de interesse público, frustrando aquilo que o Congresso quis que fosse um mercado vibrante e com perspetivas diversas”. Aos olhos da tecnológica, os sistemas de recomendação “refletem nada mais do que a forma como os serviços online se organizam e apresentam conteúdos”.
O Observador questionou a Meta sobre a atual posição em relação à reforma da Secção 230 já que, em março de 2021, em declarações perante o Congresso, Mark Zuckerberg defendeu “alterações ponderadas” nesta lei. “Em vez de terem imunidade, as plataformas devem ser obrigadas a demonstrar que têm em prática sistemas para identificar conteúdos perigosos e removê-los”, disse o CEO. E, embora não tenha defendido que as plataformas devem ser responsabilizadas sempre que um conteúdo fugisse aos sistemas de detecção, considerando que isso não seria “prático” para quem tem milhares de milhões de publicações por dia, pediu maior transparência. Fonte oficial da empresa remeteu para a declaração apresentada este ano para o processo da Google.
A Wikimedia, a fundação que é responsável pela Wikipédia, a enciclopédia de acesso livre que depende de conteúdo gerado pelos utilizadores, também se pronunciou no caso Gonzalez v Google, ficando do lado da tecnológica. Defendeu que o modelo da fundação depende da Secção 230 e que, sem as respetivas proteções, “os custos de litígio relacionados com conteúdo gerado pelos utilizadores limitariam muitos sites”.
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Também há contributos de organizações sem fins lucrativos, incluindo o Center for Democracy & Technology ou da Developers Alliance, interessadas na defesa do atual formato da 230, ou de um grupo de economistas e professores universitários. Ginger Zhe Jin, Steven Tadelis, Liad Wagman e Joshua D. Wright disseram que a lei “permite às empresas de internet distribuir conteúdos de terceiros e focarem-se nos seus serviços principais, algo que tem amplos benefícios económicos e sociais.” Caso o Supremo Tribunal “enfraqueça as proteções” da Secção 230, consideram que isso “poderia potencialmente ameaçar a liberdade de expressão online, limitar o crescimento da internet e restringir a inovação”.
Sara Rocha, da sociedade de advogados CMS, diz que “sem dúvida que a aplicação desta lei tem sido uma tábua de salvação para as plataformas digitais, que continuam a atuar num mercado sem controlo efetivo.” Já Rita Figueiras reconhece outro tema que leva as tecnológicas a apresentarem documentação a favor de companhias de quem, noutro contexto, são rivais: é o setor tecnológico a trabalhar “para a sua própria proteção”.
Empresas alegam que mexer na 230 pode limitar a inovação e concorrência. Será?
Ainda os argumentos iniciais não tinham sido apresentados ao Supremo Tribunal e as tecnológicas já faziam soar alarmes sobre as consequências de alterações à Secção 230. Além de sublinharem que sem algoritmos os utilizadores podem sair prejudicados, argumentaram que os custos de possíveis processos podem limitar a capacidade de inovar. Esta questão tem sido mencionada várias vezes, com os especialistas a reconhecer que empresas com mais recursos podem ter uma carapaça maior para resistir à “catadupa” esperada de processos do que startups e plataformas mais pequenas.
O Center for Democracy and Technology lembra que “limitar ou repelir a Secção 230 poderá servir como uma barreira de entrada para todos os tipos de serviços interativos”, diminuindo a concorrência no mercado. “A Secção 230 não só protege o conteúdo online, como também protege as oportunidades para os empreendedores de criar novos entrantes para desafiar os incumbentes”. Aos olhos desta organização, mesmo que haja uma possível reforma no Congresso, “os legisladores não devem fazer com que novos entrantes e a inovação sejam danos colaterais nestas discussões”.
David Greene, da Electronic Frontier Foundation (EFF), concorda com a tese de que o aumento do risco pode levantar barreiras a quem queira entrar no mercado. “A Google ou o Facebook têm muitos dos recursos que permitem fazer o trabalho de gestão de risco, como analisar posts antes da publicação ou responder a queixas dos consumidores”, explica, “mas entrantes no mercado não têm”. A advogada norte-americana Cathy Gellis admite um cenário com menos concorrentes no mercado: “Muitas plataformas deixariam simplesmente de existir, especialmente as mais recentes e com menos recursos, o que significaria que teríamos menos escolhas e menos inovação a tornar a internet melhor.”
A advogada Sara Rocha reconhece que, sem a Secção 230, “as plataformas teriam de lidar com muitos mais processos, não obstante, tal não poderá nunca ser o fundamento para não rever determinada lei”. Defende o contrário, considerando “que por via da revisão deste artigo existirá uma maior competitividade entre as empresas online mas também entre os meios de comunicação offline e online.”
“Grande parte dos críticos a esta falta de responsabilização alega exatamente o contrário”, explica Sara Rocha, “consideram que mais processos judiciais implicariam mais oportunidades e que seriam inclusive uma forma de controlar os monopólios das grandes tecnológicas.” E realça outro ponto, o de que “todas as indústrias têm de cumprir com o previsto na lei e adaptar a sua atividade ao regime existente.” “As plataformas tecnológicas não podem ser exceção.”
“É óbvio que o excesso de regulação inibe a inovação, mas esse argumento tende a ser muito utilizado pelas próprias plataformas e pelo setor tecnológico em geral para a sua própria proteção”, lembra a docente Rita Figueiras. “A questão é que é preciso encontrar um certo equilíbrio que permita ao mesmo tempo garantir espaço para que a inovação possa acontecer” sem comprometer a sociedade democrática.
É possível estabelecer um paralelismo com o cenário europeu? A Lei dos Serviços Digitais pode ser parte da resposta
Se nos EUA o debate acerca da Secção 230 tem estado no centro das atenções, a Europa permanece à margem da discussão. Os especialistas acreditam que a política de Bruxelas tem sido mais interventiva e reguladora e tentam estabelecer um paralelismo entre a Secção 230 e a lei europeia para perceber se neste lado do Atlântico as plataformas dispõem de uma certa imunidade.
Sara Rocha defende que “a União Europeia tem procurado desempenhar um papel bastante ativo na regulação das tecnologias e serviços digitais”. É neste âmbito que foram aprovados, no ano passado, dois regulamentos: o Digital Markets Act (DMA) e o Digital Services Act (DSA), sendo que este último enfatiza que o que é crime offline também deve ser considerado como crime online.
O Digital Services Act visa reforçar as obrigações das empresas no combate à desinformação, mas também aumentar o seu papel em termos de moderação de conteúdos. Sara Rocha explica que, nesta lei, “as plataformas digitais serão responsabilizadas pelo seu papel na divulgação de conteúdos ilegais e prejudiciais”, estando também “previsto um conjunto de mecanismos para remoção rápida e eficaz do conteúdo ilegal e obrigações específicas no que concerne aos deveres de transparência”.
Se por um lado a Secção 230 isenta as plataformas de responsabilidade relativamente aos conteúdos de terceiros que aí são publicados, a legislação europeia, no entender da advogada, “sustenta a responsabilização, de princípio, dos prestadores, e exceciona casos específicos, introduzindo obrigações concretas para assegurar a transparência da sua atuação e mecanismos de remoção dos conteúdos”.
“Assim, a eventual alteração da Secção 230 acabará por aproximar a ciber-regulação dos prestadores de serviços digitais dos dois lados do Atlântico, numa tendência para a harmonização que consideramos bastante positiva atentando a dimensão transfronteiriça dos serviços digitais e o impacto que tem nos seus utilizadores”, acrescenta.
Ricardo Henriques, da Abreu Advogados, concorda que o DSA traz uma “maior obrigação” para as plataformas, nomeadamente através da publicação de “relatórios sobre as decisões de moderação ou de remoção de conteúdos”. O advogado recorda que as plataformas maiores têm mais obrigações, nomeadamente compartilhar dados com investigadores e ser transparentes acerca dos algoritmos — correndo o risco de coimas de até 6% da faturação global ou, se forem violações repetidas, a proibição de operar no mercado único europeu em caso de não conformidade com o regulamento.
Desta forma, apesar das regras impostas pela Lei dos Serviços Digitais, Ricardo Henriques considera que o “princípio geral não muda”. Quando questionado sobre se na Europa as plataformas têm menos imunidade do que nos EUA diz que “o princípio continua a ser o de ausência de poder de vigilância.” “Há é medidas adicionais para tentar limitar esse impacto”.
O advogado refere também que existe uma lei que se aplica no território europeu que é, no seu entender, equivalente à Secção 230: a Lei do Comércio Eletrónico, que transpõe a “diretiva do Comércio Eletrónico, que continha o nosso decreto de lei 7 de 2004”. É aí que está a “regra da ausência de responsabilidade por parte dos prestadores de serviços de informação de terem um dever de vigilância”. É no artigo 12.º que está consagrado que “os prestadores intermediários de serviços em rede não estão sujeitos a uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que transmitem ou armazenam ou de investigação de eventuais ilícitos praticados no seu âmbito”.