No fim do dia em que a sua vida se decidia em Bruxelas, António Costa assistia, em Lisboa, às aulas da pós-graduação em Contencioso Contratual, Mediação e Arbitragem, na Universidade Católica Portuguesa. Já sabia que a vida profissional que estava a preparar como alternativa à política nem chegaria a nascer, mas até as contas estarem fechadas no jantar dos líderes europeus, era como se nada fosse — quando acabou as aulas foi para casa jantar. Entre a primeira vez que foi desejado para presidente do Conselho Europeu, em 2019, e este momento foram inúmeros os bloqueios a esta ambição indisfarçável do socialista, mas os movimentos mais ou menos subtis em direção àquela cadeira foram sempre aparecendo no caminho.
Nos últimos meses, foi ganhando intensidade a troca de mensagens no grupo de Whatsapp “PEC AC” a que alguns dos elementos próximos de Costa — e mais a par com os andamentos europeus — juntaram, a dada altura, o protagonista. As decisões judiciais sobre o processo da operação Influencer animavam as hostes socialistas em Portugal, já mesmo nos dias antes de Costa deixar de ser primeiro-ministro, mas no seu gabinete o assunto Presidência do Conselho Europeu nunca era tocado, contam ao Observador fontes ligadas ao processo. O “turning point para todos”, revela um dos elementos próximos do ex-líder socialista, foi a decisão do Tribunal da Relação sobre o processo que fez cair o Governo a 7 de novembro de 2023.
A partir daí tudo se precipitou, o grupo que acompanhava de forma discreta — e, agora, mais ativa –, o avanço de Costa tratou da tradução para inglês do acórdão da Relação, apurou o Observador, e disparou-o para os socialistas europeus. O próprio António Costa terá reencaminhado o mesmo documento a alguns dos cabeças de cartaz europeus, como o francês Emmanuel Macron, o neerlandês Mark Rutte, o grego Kyriákos Mitsotákis, o alemão Olaf Scholz e o espanhol Pedro Sánchez. Ele mesmo explicou o que estava em causa. E voltou a esses mesmos contactos um mês depois, em maio, quando foi ouvido no Departamento Central de Investigação e Ação Penal, em Lisboa, apenas na qualidade de declarante.
Até esse momento, Costa estava recuado, mais até que muitos dos que o rodeavam. E foi assim que se mostrou a Stefan Löfven, o sueco que lidera os socialistas europeus, quando este esteve em Lisboa para o Congresso do PS (da entronização do sucessor Pedro Nuno Santos) e quis ir jantar com o ex-líder português. Queria insistir com Costa e incentivá-lo a “criar condições” para se candidatar à presidência do Conselho Europeu, soube o Observador. Era um dos mais “empenhados” nessa possibilidade, foi mantendo sempre a posição, e no Congresso de Roma, no início de março, fez um discurso tão elogioso em relação a Costa que foi notado pelos portugueses presentes na sala, onde também estava o ex-líder socialista.
O ex-primeiro-ministro sueco não só disse — quando havia ainda muitas indefinições judiciais no ar — que o percurso do socialista tinha sido “uma inspiração”, como sentenciou: “Estou certo de que nos vamos voltar a cruzar nas nossas lutas.” A insistência com uma candidatura não chegava só de um socialista descomprometido com o poder no seu país, o chanceler alemão Olaf Scholz e o primeiro-ministro espanhol Pedro Sánchez já tinham feito contactos semelhantes com Costa, mais discretos mas muito diretos, assegura fonte próxima do socialista. A meio de abril, Sánchez verbalizou o que já tinha dito em privado a Costa mesmo ao lado de Luís Montenegro, criando um claro embaraço ao primeiro-ministro recém-eleito que, na altura, ainda fechava o seu apoio a sete chaves.
Fonte próxima de Costa garante ao Observador que, mesmo perante a demissão e o processo judicial por esclarecer, os socialistas mantiveram sempre a pressão alta sobre o português e que, na altura da saída do Governo, chegaram a comentar, em jeito de graça, que pelo menos Costa já não teria problemas com o Presidente da República. Todos sabiam que no discurso da tomada de posse do PS absoluto, Marcelo tinha agrilhoado as ambições europeias do socialista, ao sentenciar que uma saída de Costa antes do final do mandato levaria o país direto para eleições antecipadas. A todas as insistências que surgiam, a resposta do socialista português era sempre a mesma: queria ser ouvido e clarificar a situação judicial o mais possível.
Outra fonte ligada ao ex-primeiro-ministro conta mesmo ao Observador que, apesar de todas as indicações judiciais que apareceram entre fevereiro e abril — a instrução a apontar que as suspeitas de influência do primeiro-ministro eram “vagas”, e o acórdão da Relação –, o ex-líder socialista mantinha reservas. E só a 24 de maio, quando foi ouvido no DCIAP sem ser arguido, respirou fundo: o bloqueio-maior estava removido. De qualquer forma, até ali o terreno já tinha sido lavrado, afinal a máquina começara a carburar baixinho, a tentar não levantar suspeitas em Portugal, logo 15 dias depois de o novo Governo tomar posse, numa altura em que Costa já sabia que contaria com o apoio de Montenegro se decidisse mesmo avançar.
O primeiro-ministro cumpriu a promessa e, na noite das Europeias, a 9 de junho, disse que já tinha falado do assunto com o seu antecessor, oficializando o apoio: “Se o dr. António Costa for candidato – e quem vai decidir se é candidato é ele e a sua família política – a nossa decisão está tomada.” Foi aí que a diplomacia portuguesa na UE, liderada por Pedro Lourtie, entrou formalmente em campo. Montenegro ficou ainda de esclarecer as dúvidas que viessem a ser apontadas na reunião da sua família política, mais adiante.
Antes disso, durante o périplo que, já como primeiro-ministro, fez pela Europa, nos encontros que foi mantendo com Ursula von der Leyen, Roberta Metsola, Manfred Weber, o luxemburguês Luc Frieden, todos do PPE, ou ainda com Macron (liberal), Sánchez e Scholz (socialistas), Montenegro nunca deixou cair o apoio a Costa – até para surpresa dos socialistas. Sem o apoio do Governo nacional, o caminho do socialista português podia estreitar de forma decisiva.
Já o lado socialista ficou finalmente resolvido quando, depois de um longo namoro, Costa foi oficialmente convidado pela sua família política na semana depois das eleições. Mas ainda com um aviso final: era preciso que começasse a fazer contactos para não se deixar ultrapassar, nessa reta final, pela primeira-ministra da Dinamarca, também socialista e que andava a fazer contactos com o mesmo objetivo.
Fechou-se no fim de semana anterior ao jantar informal de 17 de junho, pegou no telemóvel e foi ele mesmo quem disparou contactos, diretos ou indiretos, para todos os membros do Conselho Europeu. Fez saber que tinha sido escolhido pelos socialista para aquela corrida e queria saber se tinha apoio. Alguns deles não o surpreenderam, caso de Macron com quem já tinha jantado (a convite do Presidente francês) em Paris ainda antes das Europeias, e que já lhe tinha sinalizado a simpatia pela sua candidatura.
Bloqueio político nacional. Marcelo passou de obstáculo a ‘mandatário’ de campanha que até justificou processo judicial a líderes europeus
Esta teia europeia de Costa levou anos a ser sedimentada. Começou quando ainda era ministro da Justiça (entre 1999 e 2000), continuou nos quase nove meses em que foi eurodeputado (em 2004), teve um momento importante quando esteve na Administração Interna (2005-2007) e saltou para outro nível nos últimos oito anos, em que foi primeiro-ministro. E, pelo meio, como autarca (2007 a 2014) ainda participou no comité das regiões.
O à vontade para, tantas vezes, contactar diretamente os restantes líderes foi cultivado nestes mais de vinte anos, já que se cruzou com muitos deles, como o primeiro-ministro croata, noutras vidas — no caso, no curto tempo em que foi eurodeputado. Nem assim as boas e antigas relações desbloqueiam tudo, já que foi precisamente Andrej Plenković que, no jantar informal de 17 de junho, colocou uma última pedra na engrenagem do acordo político que estava à beira de ser ultimado e que incluía Costa no Conselho Europeu.
Quem ouve Costa falar na sua experiência europeia nota sempre que o socialista coloca especial relevo no trabalho que fez na preparação da Presidência portuguesa da UE em 2007. Quando foi lançada, no segundo semestre, tinha acabado de sair do MAI para se candidatar à Câmara de Lisboa, mas tinha deixado uma solução técnica transitória (o SISOne4All), preparada pelo seu secretário de Estado José Magalhães, para permitir controlar fronteiras e alargar, ainda na presidência portuguesa, o Espaço Schengen aos países (essencialmente do Leste) que tinham aderido em 2004 à UE.
Já não era ministro, mas o então primeiro-ministro José Sócrates ainda o convidou, no final desse ano, para as cerimónias de abolição de controlos nas fronteiras Alemanha-Polónia-República Checa, porto de Tallin (Estónia), Áustria-Hungria-Eslováquia e Itália-Eslovénia. Costa acabou por ficar, de alguma forma, com uma ligação ao Leste europeu e, por causa disso, tem condecorações de todos os países que, nessa altura, entraram para Schengen.
“Fazer amigos é uma característica importante naquela agremiação”, nota fonte próxima do ex-primeiro-ministro. “O essencial é construído ao longo dos anos”, reforça um socialista em Bruxelas. “O factor decisivo é o prestígio. E não se pode confinar à família socialista — que não seria suficiente”, aponta ainda outra fonte do PS.
E uma das relações mais importantes dos últimos anos que Costa construiu, já como primeiro-ministro, terá sido precisamente noutra família, com Angela Merkel (uma referência no PPE). E esta, por sua vez, passou testemunho a Ursula Von der Leyen, a peça que acabaria por ser fundamental chegados a 2024. E isto porque, uma vez recandidata à presidência da Comissão Europeia, a hipótese de Costa fazer parte do trio dos altos cargos ganharia sempre força — os dois estreitaram laços durante a pandemia e, a ficar o CE para um socialista, Costa estaria lançado, sobretudo depois da relação conturbada Ursula/Charles Michel que deixou líderes europeus a desejarem uma dupla de dinâmica mais pacífica.
Tudo parecia estar escrito nas estrelas, mas os socialistas europeus conheciam desde o início de 2022 o bloqueio colocado a Costa pelo Presidente da República e, por isso mesmo, a resistência do socialista em deixar de ser primeiro-ministro em Portugal. O reverso da medalha seria uma crise política nacional e provocada por si. Dentro do seu círculo mais próximo, havia quem desconfiasse que Marcelo, com o avançar do tempo e dos sinais recebidos de fora em relação às hipóteses portuguesas, já estaria arrependido do ultimato deixado em março de 2022. Mas desdizer o que estava escrito desde março de 2022 era visto como “difícil”.
Costa foi sempre garantindo aos seus mais próximos que “isso estava encerrado”, ou seja, que o Conselho Europeu não seria o caminho. E o mais com que ainda poderia sonhar – mas numas contas tão complexas como incertas — era que nesta negociação pós-europeias a porta lhe fosse deixada entreaberta para o segundo mandato. A presidência do CE é dividida em dois mandatos de dois anos e meio cada e Costa ainda poderia ambicionar conseguir ficar com o último, já para lá de 2026, no fim do mandato do seu Governo.
No PS, o empenho que Marcelo colocou nestes últimos meses a favor de Costa não deixa, ainda assim, de ser visto como um ato de redenção não só pelo grilhão colocado a Costa em 2022, como pela dissolução — contra a vontade do PS — depois da sua demissão, em novembro de 2023.
O Presidente da República, contou ao Observador fonte da Presidência, fez “muitos contactos” entre dezembro e junho, quer “presenciais”, quer “telefonemas”. Marcelo Rebelo de Sousa fez, garante a mesma fonte, campanha por António Costa. E em dezembro e janeiro, na mesma altura em que esteve com Emmanuel Macron no funeral de Jacques Delors, Marcelo explicou a chefes de Estado e de Governo o grau de envolvimento de António Costa no processo judicial e a gravidade do mesmo. Segundo fonte de Belém, terá desvalorizado a importância do caso — isto mesmo ainda antes de António Costa ter sido ouvido e ter saído sem ser arguido.
Nos meses seguintes, o Presidente da República foi esclarecendo os líderes europeus sobre outras dúvidas. “Se numa primeira fase queriam saber do processo judicial, numa segunda já queriam saber se ele se queria afastar da política ou não; numa terceira fase, queriam saber a posição do Governo português; e numa quarta fase, mais perto do fim queriam saber se, tendo iniciado outras atividades, como a televisão ou as arbitragens, se ainda estava interessado“, explica fonte de Belém ao Observador. As respostas de Marcelo foram sempre pró-Costa.
O Presidente da República terá ainda utilizado a sua rede do Grupo de Arraiolos para ir fazendo essa campanha por Costa. Apesar de não terem poder executivo, os chefes de Estado de Alemanha, Bulgária, Croácia, Eslovénia, Estónia, Finlândia, Grécia, Hungria, Irlanda, Itália, Letónia, Malta e Polónia estão entre o rol de Presidentes com quem Marcelo mantém contactos regulares. Fonte socialista em Bruxelas reconhece que “Marcelo foi dando mais força política” à candidatura de Costa à medida que o desfecho se aproximava.
Ainda assim, a ironia maior era que o que parecia ser o pior bloqueio ao sonho europeu de Costa passou a estar ultrapassado a 7 de novembro. Mas nesse mesmo dia nasceu outro de proporções ainda mais decisivas: a questão judicial.
Bloqueio judicial e o impacto lá fora. Traduções, telegramas e Montenegro
Três dias depois da queda do Governo, a 10 de novembro, os socialistas europeus reuniram-se, em congresso, em Málaga e Costa tinha estado no cartaz como um dos nomes de peso a discursar. Tinha sido preparado como mais um momento de consagração europeia do líder socialista português, mas o dia 7 de novembro mudou tudo também nesse palco. Costa já não quis ir, saiu do elenco e os socialistas portugueses que participaram nesse encontro lembram o “efeito de choque muito grande” que as notícias vindas de Portugal provocaram.
Um desses socialistas conta ao Observador o ambiente “de choque” nesse congresso e a dificuldade que foi explicar a situação judicial do português aos camaradas europeus — não era acusado, nem arguido, um termo de difícil compreensão no Direito além fronteiras nacionais. “Tínhamos de traduzir arguido por person of interest porque eles nem percebiam essa figura”, conta ao Observador a mesma fonte.
A condição de Costa, que se demitira com um processo-crime instaurado contra si, era questionada por todos. “Foi uma dificuldade que foi preciso superar“, acrescenta outra fonte do PS em Bruxelas que se lembra de ouvir os seus interlocutores a dizerem que o que descreviam de Lisboa “não parecia ser um impedimento” para Costa, mas ao mesmo tempo também se acrescentava logo de seguida: “Mas expliquem lá o que isso significa”.
O dinheiro encontrado na sala de trabalho do chefe de gabinete de Costa, Vítor Escária, provocou “um choque muito grande”, admite um socialista ouvido pelo Observador, e esse foi outro capítulo que suscitou muitas dúvidas. A perceção que acabou por vingar entre socialistas foi, no entanto, benévola para Costa cuja demissão foi “vista como um gesto de escrúpulo democrático, num padrão que é incomum”, garante outro socialista familiarizado com os corredores de Bruxelas. O mesmo que aponta que o receio maior foi que isso pudesse ser usado contra Costa pelos adversários políticos em futuras negociações. Entre os socialistas “nunca foi um obstáculo insuperável”, garante.
Prova disso é que, saído de legislativas, ainda antes de anunciar de viva voz aos camaradas europeus que tinha um acordo para governar Espanha, Pedro Sánchez quis ter logo um gesto solidário com o amigo António Costa. Em Málaga, na primeira vez em que se dirigiu ao congresso dos socialistas europeus dias depois da demissão em Lisboa, o primeiro-ministro espanhol não fugiu ao tema: “Permitam-me que as primeiras palavras desta intervenção sejam para enviar um abraço em nome da família socialista europeia a um grande socialista, um grande companheiro: António Costa”. Toda a sala aplaudiu e muitos dos presentes fizeram-no de pé. Costa continuava a ser acarinhado pela sua família europeia. E mantinha-se uma estrela entre eles.
O que é certo é que o processo judicial fez correr a equipa de Costa, onde o seu antigo secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e vice dos socialistas europeus, Francisco André, teve um papel preponderante. Em Portugal, Costa também contava com inputs do seu antigo secretário de Estado dos Assuntos Europeus, Tiago Antunes, e ainda com a ação de vários diplomatas portugueses. As decisões judiciais que surgiram pelo caminho foram prontamente difundidas — e traduzidas — entre quem importava nas instituições europeias e mais do que uma fonte refere ao Observador o efeito “tranquilizador” dos “telegramas das embaixadas em Portugal enviados para as capitais” em cada um desses momentos.
A iniciativa de Costa de pedir, logo a 2 de abril, para ser ouvido pela Justiça teve como objetivo tentar “clarificar” a sua posição perante a Justiça, acelerando decisões a tempo de ainda conseguir concorrer ao Conselho Europeu. Era uma corrida contra o tempo e quando pediu para ser ouvido a única certeza que tinha era que o Código de Processo Penal refere que “é obrigatória a constituição de arguido logo que correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal.” Mas foi já só durante a audiência com a procuradora que ficou a saber que não haveria matéria para que fosse constituído arguido. “O efeito de arquivamento deu-se nesse dia”, acredita um socialista.
O seu caso continuava, no entanto, a suscitar questões em alguns meios em Bruxelas e, mais recentemente, coube a Montenegro fazer um papel pedagógico junto dos populares sobre esta mesma situação. A 17 de junho, na reunião do PPE que serviria de antecâmara à reunião do Conselho Europeu – o tal que se traduziu num impasse em relação à escolha dos top jobs europeus — o tema judicial saltou para cima da mesa. A investida foi liderada pelo polaco Donald Tusk, que falou publicamente sobre o caso judicial que envolve António Costa. “Tem competências, mas temos de esclarecer o contexto jurídico. Sabem do que estou a falar”, sugeriu o primeiro-ministro da Polónia e antigo presidente do Conselho Europeu.
Quando entrou nessa reunião Montenegro já estava preparado para sofrer uma enorme pressão no sentido de deixar cair o apoio a António Costa – semanas antes, as conspirações nos corredores de Bruxelas enchiam páginas de jornais. Ao socialista eram apontadas essencialmente três grandes fragilidades: o processo judicial em que está envolvido, uma posição pouco entusiasta sobre a inclusão da Ucrânia na União Europeia e uma política de imigração considerada demasiado soft. Como pano de fundo havia ainda a tal possibilidade de se concretizar a candidatura da socialista e dinamarquesa Mette Frederiksen, conhecida por ter posições muito mais duras em matéria de imigração do que Costa e por ser muito mais entusiasta em relação à integração da Ucrânia da União Europeia, o que agradava mais à ala mais musculada do PPE. Ou mesmo Enrico Letta, mais próximo dos interesses italianos do que Costa.
Aos olhos desta fação, o processo judicial que envolve António Costa era o pretexto perfeito para juntar as pontas e acabar de vez com as pretensões do socialista. “Se não fosse Luís Montenegro, a candidatura de António Costa tinha morrido nessa reunião”, assegura ao Observador fonte social-democrata. À porta fechada, o primeiro-ministro português começou por responder às dúvidas de Donald Tusk, explicando que António Costa já tinha sido ouvido pela Justiça e que não era sequer arguido na Operação Influencer.
Montenegro explicou em traços gerais o que estaria em causa, terá reconhecido que havia elementos do gabinete de Costa que estavam a braços com a Justiça, mas que Costa, depois de ouvido pelos investigadores, não tinha sido constituído arguido e que, pelo menos até ao momento, e ao contrário do que aconteceu com outros envolvidos, não havia indícios que ligassem diretamente o socialista ao objeto da investigação. Mesmo sem se ter atravessado pela inocência de Costa, Montenegro contextualizou e clarificou alguns dos aspetos do caso. Terá sido o suficiente para aplacar as dúvidas de alguns dos parceiros do PPE.
Relação não encontrou quaisquer indícios de que Costa tenha sido influenciado por Lacerda Machado
Logo no início de abril, quando foi indigitado primeiro-ministro, o social-democrata falou pessoalmente com o antecessor para garantir que, caso Costa decidisse mesmo avançar, o Governo português apoiaria sem hesitações a corrida à presidência do Conselho Europeu. Na noite das Europeias, depois de uma derrota para a AD nas urnas, o primeiro-ministro oficializou o apoio do Governo e, na CMTV, o seu antecessor no cargo confirmava a conversa prévia que ambos tinham tido.
Fontes sociais-democratas acreditam até que António Costa não foi à campanha do PS, onde Marta Temido era cabeça de lista, devido a um acordo prévio com Luís Montenegro. A tese é que, para que o primeiro-ministro pudesse ser tão taxativo logo na noite eleitoral no apoio ao antecessor para o Conselho Europeu, Costa não devia estar três/quatro dias antes a atacar o Governo numa qualquer ação de campanha do PS.
Certo é que a ausência de Costa da campanha socialista — que é apontada, na entourage social-democrata, como um exemplo da astúcia e habilidade política de Montenegro — também foi estranhada no PS. Na campanha, os socialistas foram apontando a Costa vários momentos em que poderia ir apoiar (até sem discursar) a cabeça de lista do PS e sua ex-ministra, mas o ex-líder entendeu não aparecer, sem que fosse apontada uma explicação clara. No círculo mais próximo de Costa esta ausência é, no entanto, explicada como cumprindo a linha de afastamento do novo ciclo socialista em relação ao passado.
O que acabou por ser claro é que, a partir do púlpito da sala no Hotel Sana, sede da noite eleitoral da AD, o apoio de Luís Montenegro não podia ter sido mais taxativo: “A AD e o Governo não só apoiarão como farão tudo para que essa candidatura tenha sucesso”. E Costa respondeu a partir dos estúdios televisivos onde estava: “Nunca aceitaria ser presidente do Conselho Europeu sem o apoio do Governo do meu país. Poderia ser, mas nunca aceitaria.”
Não era uma impossibilidade avançar sem o apoio do seu Governo, mas o próprio socialista já tinha tomado uma posição no Conselho Europeu, no passado, que o vinculava a esta posição expressa na noite eleitoral. Em 2017, o polaco Donald Tusk avançou para uma recandidatura ao segundo mandato sem o apoio do seu governo e Costa, como outros líderes, tinha feito saber que só o apoiava porque era uma reeleição.
Relação não encontrou quaisquer indícios de que Costa tenha sido influenciado por Lacerda Machado
Bloqueios políticos na reta final. Um “milagre” em sete meses e Bruxelas em setembro
Ultrapassados os dois bloqueios nacionais com impacto em Bruxelas, ainda faltava passar no Conselho Europeu. O acordo político da distribuição dos top jobs já tinha ficado alinhavado mesmo antes das Europeias, sendo certo que não era indiferente o desempenho eleitoral de cada família política. Logo na noite das Europeias em Portugal, na CMTV, o comentador António Costa destacava o segundo lugar confirmado pelos Socialistas e Democratas e em como isso significaria que seria deles o cargo de presidente do Conselho Europeu. Sabia que fazia parte do acordo onde estava o nome de Ursula, mas as conversas decisivas começariam apenas a 17 de junho.
De acordo com fontes conhecedoras do processo, não fosse a intervenção assertiva de Luís Montenegro em defesa do antecessor e, muito provavelmente, afiançam, a candidatura teria caído por terra. O primeiro-ministro terá sido muito importante para travar o “golpe” que a linha mais dura do Partido Popular Europeu (PPE) se preparava para infligir. Um socialista comenta com o Observador outro ponto de vista: “Ursula Von der Leyen desejava a solução António Costa e isso é que é decisivo para a posição do PPE”.
Certo é que no PPE nem tudo foram rosas, ainda que o alvo não fosse necessariamente Costa. Havia quem, alinhado em grande medida com os interesses de Giorgia Meloni (dos Conservadores) e de Viktor Orbán (ex-PPE), quisesse dinamitar o trio Ursula-Kallas-Costa e vestir o fato de kingmaker. De certa forma, foi isso que aconteceu há cinco anos, quando a linha dura do PPE travou as intenções de Angela Merkel (que aceitara o socialista Timmermans na Comissão Europeia) e garantiu uma figura do PPE (Von der Leyen, precisamente) no cargo.
Além disso, entre os populares existiam dúvidas sobre Costa em questões mais programáticas – a política de imigração e a relação da UE com a Ucrânia – Montenegro terá aproveitado a reunião do PPE para dar todas as garantias de que o antecessor era a pessoa certa para ocupar o cargo, tendo sentido a necessidade de lembrar aos seus homólogos europeus que, durante oito meses, foi o líder da oposição a Costa. Segundo fontes conhecedoras do processo, Montenegro terá mesmo levantado a voz para dizer a todos aqueles que achavam que Costa não era suficientemente europeísta ou suficientemente moderado, que não era ele o socialista que mais convinha ao PPE, que estariam redondamente enganados.
Montenegro sairia dessa reunião do PPE, a 17 de junho, sem garantias de que Costa teria, de facto, o apoio do centro-direita. À noite, nesse mesmo dia, os chefes de Governo e de Estado sentaram-se no Conselho Europeu e tentaram (sem sucesso) fechar logo, ao jantar, as escolhas de Ursula, Kallas e Costa. Também aí, nessa reunião, Montenegro terá tomado a palavra para defender os méritos da candidatura de António Costa.
No próprio PPE nascera entretanto uma proposta inovadora, exigindo o cumprimento do mandato de presidente do Conselho Europeu de apenas dois anos e meio, previstos pelos tratados, em vez dos dois mandatos, num total de cinco anos, que têm sido informalmente habituais. A proposta foi trazida para cima da mesa pelo primeiro-ministro croata, Andrej Plenković, a meio da reunião. O argumento é apenas um: o PPE teve um resultado global melhor nestas eleições do que nas de 2019 e, portanto, deve ter mais representatividade nos cargos de topo neste mandato. Entre os socialistas esta proposta, que acabou por vazar para fora da reunião dos populares, foi vista como uma tentativa do próprio croata tentar a sua sorte na corrida ao cargo de Costa. Acabou por cair e foi dado palco para que os negociadores indicados pelas três famílias europeias envolvidas nas conversações chegassem a um acordo na semana seguinte.
Tusk e o grego Mitsotakis representaram o PPE, de centro-direita; Scholz e Sánchez, o S&D, de centro-esquerda, e Macron e Mark Rutte, os liberais do Renew Europe. A 25 de junho, finalmente, o desbloquear da situação: as três forças políticas estavam de acordo em relação ao trio. Quando, dois dias depois, Montenegro partiu para Bruxelas, já tinha o conforto de ter um pré-acordo em cima da mesa. Na habitual reunião do PPE que antecede qualquer Conselho Europeu, já ninguém levantou obstáculos à escolha de Costa. À noite, quando a reunião entre os líderes europeus já se arrastava há mais de nove horas, houve finalmente fumo branco: António Costa era finalmente nomeado presidente do Conselho Europeu.
Costa jantava em casa, bem longe daqueles palcos, em Benfica. Durante a reunião foi recebendo várias mensagens de quem estava à mesa a dar informações sobre o andamento do processo e em como o seu nome não estava a levantar problemas (teve apenas o voto contra de Meloni). No fim de tudo, recebeu o aguardado telefonema de Charles Michel, a dar-lhe conta da eleição e a pedir-lhe para participar na conferência de imprensa que se seguiria, através de uma vídeo-chamada.
“Se fosse crente, diria que era um milagre”. A frase foi dita no dia seguinte por António Costa que, no espaço de sete meses, passou de excluir o exercício de cargos públicos do resto da sua vida, a presidente do Conselho Europeu. A este período junta-se uma espera de mais cinco anos, desde o dia em que o cargo lhe foi apontado, em 2019, tendo recusado por estar a liderar o Governo. Toma posse a 1 de dezembro como presidente do Conselho Europeu, mas instala-se em Bruxelas já em setembro. Antes ainda tem a pós-graduação para terminar (até 20 de julho), a tal que ia servir para ter uma atividade profissional depois da política. O plano B que chegou a ser A antes de voltar a ser B ficou, no fim de todas as contas, na gaveta.