A agência do medicamento norte-americana (FDA) já autorizou três testes de diagnóstico (este, este e este) para detetar a infeção com SARS-CoV-2 que podem ser feitos em casa e cujo resultado é conhecido nos minutos seguintes. No Reino Unido, todas as pessoas com sintomas compatíveis com a infeção pelo coronavírus podem ser testadas num centro concebido para o efeito ou, em alternativa, recolherem a amostra em casa, por si, e enviarem-na por correio. Na Suécia, o teste pode ser encomendado online, levantado na farmácia e feito em casa.
Em Portugal, pelo contrário, não está previsto que as pessoas possam fazer os testes de forma autónoma. “Os testes de diagnóstico laboratorial para SARS-CoV-2 só podem ser realizados por profissionais de saúde legalmente habilitados”, segundo a circular informativa da Direção-Geral da Saúde (DGS), Infarmed e Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge (Insa), emitida em maio. “À data, os autotestes não estão incluídos na Estratégia de Diagnóstico da Covid-19”, acrescenta o Infarmed em resposta ao Observador. O que, segundo a autoridade nacional do medicamento, está de acordo com o que têm feito outros países da União Europeia.
Os testes de diagnóstico feitos em casa pelo próprio — que, como vimos, não estão disponíveis em Portugal — apresentam vantagens e desvantagens: aumentam a capacidade de testagem e o acesso a mais pessoas, mas não se pode descartar o risco de lesão, de falsos negativos ou de ausência de registo. As opiniões entre os profissionais de saúde também não são uniformes. O Observador ouviu dois médicos de saúde pública: um defende o uso destes testes, o outro destaca os riscos associados.
Com testes em casa, o acesso era mais fácil e rápido
Realizar testes em larga escala e fazer uma identificação precoce dos casos positivos para o SARS-CoV-2 são medidas importantes para conter a disseminação do vírus na comunidade. A realização de testes rápidos de antigénio reduz a pressão nos laboratórios responsáveis pelos testes PCR e a realização de testes de diagnóstico em casa poderia permitir um acesso mais rápido, sem depender da disponibilidade dos profissionais de saúde ou de uma marcação num laboratório.
O médico de Saúde Pública Vasco Ricoca Peixoto é a favor do uso deste tipo de testes, porque considera que pode facilitar a vida às pessoas que desejam realmente conhecer o resultado: em poucas horas a pessoa pode comprar o teste, fazê-lo comodamente no domicílio e saber o resultado — em vez de ter de esperar dias desde a prescrição até receber a informação. E em que condições poderiam ser usados? Nas pessoas com sintomas, que assim tinham um acesso mais rápido ao teste, e nas pessoas que tivessem tido um contacto de risco nos cinco a sete dias anteriores, para verificar se tinham sido infetadas.
Vasco Ricoca Peixoto destaca ainda outra vantagem: o acesso facilitado a quem apresenta sintomas ligeiros e que, atualmente, pode não ser imediatamente encaminhado para a realização de um teste. Para o investigador da Escola Nacional de Saúde Pública da Universidade Nova de Lisboa, quando existem níveis elevados de transmissão na comunidade, os custos inerentes ao aumento do número de testes e da capacidade de testagem é compensado pela poupança nos custos (ou redução de perdas) associados ao internamento dos doentes Covid-19, às mortes ou às medidas de confinamento e restrição à circulação que têm afetado vários negócios. “O investimento em prevenção tem um benefício claro.”
Ricardo Mexia diz que tornar este tipo de diagnóstico acessível a todas as pessoas pode ser interessante, mas só se for possível garantir que os testes e respetivos resultados são fiáveis. É por isso que normalmente são feitos por um profissional de saúde. Aumentar a disponibilidade dos testes pode ser particularmente útil quando se pretende repetir a análise regularmente, como acontece atualmente com os profissionais de saúde, diz o médico de Saúde Pública. Estes testes rápidos de rotina, apesar de menos sensíveis que os testes PCR, aumentam a capacidade de deteção da infeção porque são feitos com frequência (a cada sete a 14 dias nos profissionais de saúde), e podiam também ser aplicados em escolas ou nos lares, diz o médico.
O presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, tal como Vasco Ricoca Peixoto, defende que os testes rápidos devem ser usados em pessoas que já manifestaram sintomas — e é essa a principal estratégia em Portugal. Testar somente sintomáticos significa, por outro lado, que pessoas infetadas mas sem sintomas podem estar a transmitir o vírus antes de saberem que estão positivas, refere um artigo na Nature Biotechnology News. Michael Mina, professor de Epidemiologia da Escola de Saúde Pública da Universidade de Harvard, defende que a melhor forma de contrariar a disseminação do coronavírus é fazer testes rápidos à escala da população em vez de se testar apenas, e em termos individuais, os casos suspeitos.
A postura das entidades de saúde em Portugal é mais conservadora. Tirando situações de surto, como em escolas, lares, hospitais ou empresas, em que possa fazer sentido rastrear um grande número de pessoas, os testes são, normalmente, recomendados de forma bastante criteriosa. “Os testes laboratoriais para SARS-CoV-2 devem ser prescritos e interpretados de acordo com uma finalidade clínica e de saúde pública”, refere a norma da DGS. Em resposta ao Observador, o Infarmed usa esta indicação para justificar a não existência de autotestes e o uso criterioso dos testes rápidos, mesmo por profissionais habilitados.
Os falsos negativos e o risco de ferir o nariz
As vantagens dos testes rápidos, em particular dos testes para serem feitos em casa, vem, no entanto, acompanhadas de alguns riscos ou desvantagens, começando logo por serem menos fiáveis do que o teste PCR, independentemente de quem faça a recolha da amostra ou a análise. O risco de ter um resultado no teste que não corresponda à realidade aumenta quando a recolha não é bem feita. Lembre-se que tem de conseguir enfiar a zaragatoa profundamente no nariz ou garganta para recolher a amostra e seguir todos os passos escrupulosamente para evitar que haja algum tipo de contaminação.
“Como muitos processos, a parte menos confiável é o ser humano”, disse Thomas Grys, co-diretor de Microbiologia da Clínica Mayo no Arizona, citado pelo Wall Street Journal. “Temos de tornar isto tão fácil que as pessoas não consigam fazer outra coisa que não seja fazer a coisa certa”, diz o investigador, que criou uma plataforma digital para auxiliar quem queira fazer um teste em casa.
É por isso mesmo que Ricardo Mexia recomenda que os testes não sejam feitos autonomamente: “Não é fácil serem feitos pelo próprio e envolve riscos”. Entre os riscos estão sangramento e lesões nas fossas nasais e, claro, que não se recolha material suficiente para se conseguir detetar a presença do vírus.
Vasco Ricoca Peixoto é mais otimista e acredita que “as pessoas são competentes para fazerem um teste desde que tenham um bom manual”. No Reino Unido, por exemplo, o Departamento de Saúde e Segurança Social britânico disponibilizou um guia que explica como fazer a recolha com a zaragatoa e o envio para o laboratório. Para o médico de Saúde Pública o receio, no entanto, é outro: que as pessoas nem sequer cheguem a colocar a zaragatoa no nariz e que a enviem sem qualquer amostra para o laboratório, falseando o resultado.
As autoridades de saúde portuguesas deixam claro nas orientações que os testes de antigénio são menos sensíveis que os testes PCR e, como tal, “teste negativo, só por si, não deve constituir prova de exclusão de infeção por SARS-CoV-2” quando existe um “quadro clínico fortemente suspeito”. Ou seja, se tudo indica que o doente poderá ter Covid-19, o melhor será repetir o teste, de preferência com um mais sensível.
Para os utilizadores dos testes, o aviso mais importante deixado pelos dois médicos de Saúde Pública ouvidos pelo Observador é que não se assuma que um resultado negativo é um “comprovativo de negatividade”, ou seja, um teste negativo não prova que a pessoa não está infetada, nem permite que se abandonem as medidas preventivas. “Não é uma alternativa ao uso de máscara. É um complemento”, diz Ricardo Mexia. “O desempenho destes testes depende muito do contexto clínico e epidemiológico, em que são utilizados, sendo recomendada ponderação e reserva na sua utilização em casos sem critérios clínicos e epidemiológicos”, recomendam as autoridades de saúde.
Alerta para o período de incubação da doença que pode ir até 14 dias.https://t.co/DJoM9TizPy pic.twitter.com/0Vt0SQdaKU
— GNR – Guarda Nacional Republicana (@GNRepublicana) December 16, 2020
Se conta fazer um teste de diagnóstico antes do Natal, o médico Ricardo Mexia ajuda a interpretar os resultados. Um teste positivo é sinal vermelho: significa que a pessoa deve ficar imediatamente em isolamento e cancelar todos os planos que tinha para as semanas seguintes. Um teste negativo, no entanto, não é sinal verde, mas amarelo intermitente: significa que todas as medidas de prevenção da transmissão devem continuar a ser adotadas, incluindo uso de máscara e distância social.
Porque é que não podemos ficar totalmente descansados com um teste negativo? Porque um teste feito menos de cinco dias depois da data do contágio pode ainda não conseguir detetar o vírus, mas a pessoa pode já estar infetada e constituir um risco para os outros, explica Vasco Ricoca Peixoto. Por isso, os testes devem ser feitos quando se verifiquem os primeiros sintomas ou nunca antes de passarem cinco a sete dias depois do contacto de risco. Um teste negativo é como uma fotografia: é válido naquele momento, mas no dia seguinte pode ser diferente.
Esconder um teste positivo e não registar resultados nas plataformas de vigilância
Se Vasco Ricoca Peixoto receia que as pessoas possam tentar enganar os laboratórios com as recolhas feitas em casa, Ricardo Mexia diz que “o risco de se esconder um teste positivo feito em casa é elevadíssimo”. Ricoca Peixoto espera que uma pessoa que faça o teste por iniciativa própria já esteja, à partida, interessada em conhecer o seu estado de saúde e que tome as devidas precauções depois de conhecer o resultado.
Para os dois médicos, o mais preocupante é que um teste feito em casa não seja registado nas plataformas de vigilância nacionais e que assim se perca o controlo da situação. Um dos testes aprovados pela FDA, o da empresa Ellume, está ligado a uma aplicação onde a pessoa que realiza o teste indica a data de nascimento e o código postal e o BinaxNOW da Abbott garante que faz a comunicação às autoridades de saúde. Já o “All-in-one”, da Lucira Health, tem de, nos próximos meses, arranjar uma solução para que os resultados dos testes sejam reportados às autoridades de saúde. Esta é uma exigência da FDA para todos os testes que venham a ser aprovados para uso em casa, para que seja possível seguir as cadeias de transmissão e identificar contactos de risco.
A maior preocupação, neste momento, está relacionada com a proteção dos dados dos utilizadores. As empresas dizem que vão cumprir a legislação relacionada com a privacidade dos dados médicos, mas as pessoas tendem a desconfiar, o que pode justificar o ceticismo em relação às aplicações de rastreio de contactos, refere o jornal The Wall Street Journal.
Portugal não tem planos para testes de diagnóstico em casa
Em Portugal, as autoridades de saúde consideram que a única forma de os testes de diagnóstico cumprirem a sua função é serem feitos por profissionais habilitados e reportados nas plataformas nacionais para o efeito. Segundo a Estratégia Nacional de Testes para SARS-CoV-2, os testes de diagnóstico pretendem: reduzir e controlar a transmissão da infeção; prevenir e mitigar o impacto do coronavírus nos serviços de saúde e nas populações vulneráveis; e, monitorizar a evolução epidemiológica da Covid-19.
As orientações dadas pela DGS, Infarmed e Insa são claras quanto a quem pode fazer os testes de diagnóstico. Primeiro, só podem “ser comercializados e utilizados se registados no Infarmed”, depois só podem “ser realizados por profissionais de saúde legalmente habilitados” e, por fim, têm de ser realizados em locais que assegurem “as condições de higiene e biossegurança”. Mesmo os testes rápidos de antigénio devem ser feitos com acompanhamento médico ou de profissionais de saúde devidamente habilitados e serem feitos num “espaço dedicado às colheitas dos produtos biológicos, afastado das áreas de circulação”.
Quanto à comercialização, só os autotestes precisam de ter um selo de uma entidade avaliadora externa, que lhe conceda uma marcação CE, autorizando a sua venda em qualquer Estado-membro da União Europeia. Já a avaliação dos testes para uso profissional (em contexto clínico) é da responsabilidade do fabricante, diz fonte oficial do Infarmed. Depois, cabe às autoridades de cada país fazer a fiscalização do mercado.
No caso do Infarmed, por exemplo, “enquanto autoridade competente para a fiscalização de mercado para os dispositivos médicos de diagnóstico in vitro — onde se incluem os testes de diagnóstico [do SARS-CoV-2] —, poderá adotar medidas restritivas de mercado no âmbito das suas competências, de acordo com a legislação aplicável, sempre que tal seja necessário”, conforme resposta oficial. Dito de outra forma, o Infarmed pode proibir a comercialização de testes para fazer em casa, se considerar conveniente.
Assim, assume-se que o caminho até que venham a ser autorizados os testes de diagnóstico em casa pode ser longo. Não é de agora que os reguladores, mesmo a nível internacional, se mostram lentos na aprovação de testes de diagnóstico feitos em casa: a razão é a falta de orientação clínica para ajudar a pessoa a interpretar e enfrentar o resultado, refere a Nature Biotechnological News. Também por isso, algumas empresas norte-americanas preparam-se para incluir no kit dos testes em casa um serviço de telemedicina que possa fazer o acompanhamento do doente.