Tiago Mayan Gonçalves não tem dúvidas: Graça Freitas e Marta Temido não têm condições para continuar nos respetivos cargos. O candidato presidencial apoiado pela Iniciativa Liberal entende, aliás, que a “obsessão ideológica em não usar privados foi fatal para muitos portugueses” e que a “atitude negligente” do Executivo socialista e da ministra da Saúde contribuiu para a existência de milhares de mortes evitáveis. “A obsessão ideológica de Marta Temido matou pessoas”, diz.
Em entrevista à Rádio Observador, num “Sob Escuta” especial — mais um da série de entrevistas aos vários candidatos presidenciais –, Mayan Gonçalves acusa ainda Ana Gomes de ter sido conivente com os comportamentos de José Sócrates durante largos anos e de ser adepta do “nacional-porreirismo”, do “amiguismo” e do pequeno “favor”. André Ventura, outro dos seus adversários nesta corrida a Belém, não se fica a rir: para Mayan, Ventura é “xenófobo, racista” e “despreza a democracia”.
Mas as críticas a Marcelo Rebelo de Sousa, o seu “grande adversário” nestas eleições, acabam por dominar grande parte do discurso do candidato liberal. O atual Presidente da República, diz o advogado portuense, foi cúmplice de Ricardo Salgado quando todos os sinais já recomendavam um cordão higiénico. Daí para cá, já como chefe de Estado, Marcelo tem sido pouco mais do que inexistente, lamenta. “Apresentou-se como o D. Sebastião perante todos os portugueses. Mas o que andou a fazer durante cinco anos se os problemas continuam a ser os mesmos?”, pergunta.
[O essencial da entrevista de Tiago Mayan Gonçalves:]
“Estamos a assistir à mexicanização do país em torno do PS”
Um dos seus slogans de campanha é: “O único candidato à Presidência da República que não é político profissional”. Quais são os outros políticos profissionais que estão a concorrer? Marcelo Rebelo de Sousa fez toda a carreira universitária, presumo que não seja um político profissional. Ana Gomes fez a carreira diplomática, presumo também que não seja. Quem são eles?
São todos. Marcelo Rebelo de Sousa, o incumbente, tem um percurso em que inclusive foi líder do seu partido, foi candidato autárquico…
Mas teve uma carreira universitária, percorreu todas as etapas dessa carreira.
E fez todo um percurso também dentro desse sistema partidário. Ana Gomes, igual. Ocupou inúmeros cargos dirigentes.
Ana Gomes foi diplomata, fez toda a carreira diplomática — é uma política profissional?
Fez também todo um percurso de variadíssimos cargos dirigentes no seu partido.
Portanto, ser político profissional é ocupar um cargo político?
Eu não sou político profissional porque de facto não é a minha vida.
Se calhar também é, uma vez que ocupa um cargo autárquico. Pelo seu raciocínio, também é um político profissional.
Eu sou suplente na minha Assembleia de Freguesia por um movimento independente, que não provém de partidos. E é isso que eu quero dizer quando uso essa expressão. Sou alguém que não provém de máquinas e aparelhos partidários.
Mas o que é que tem contra os políticos profissionais? O que é que tem contra as pessoas que exercem atividades políticas?
Têm trazido mais do mesmo. Essa é a diferença. As máquinas e aparelhos partidários produzem continuamente os mesmos produtos. Independentemente do partido de que estejamos a falar. E o que eu vejo, em todos os outros candidatos, é são produtos dessas máquinas e desses aparelhos. Com os mesmos vícios de raciocínio e com os mesmos modos de ação.
Então o líder da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, que hoje em dia é deputado, também é um político profissional e também é mais do mesmo. Ou não?
Ele entrou num partido que não tem nenhuma máquina partidária similar ao que lhe estou a descrever. É líder do partido há um ano, é deputado há um ano, dificilmente se poderia qualificar como um produto.
Então André Ventura também não é um político profissional.
André Ventura também é um produto de uma máquina partidária chamada PSD. André Ventura e Marcelo Rebelo de Sousa partilham isso, provêm do mesmo partido e até já foram candidatos autárquicos por esse partido.
Portanto, todos os que estão à sua volta são políticos profissionais. Exceto os da Iniciativa Liberal, que são puros.
Na Iniciativa Liberal não vejo esses problemas de vícios e modus operandi. Nem silêncios táticos. Não me reconheço em modos de operar deste género, nem em alinhamentos partidários em função do que uma cúpula me transmita.
Os partidos são maus para a democracia, é isso que está a sugerir? Ficámos sem perceber qual o grau de pureza exato para distinguir um político profissional de alguém que se dedica a uma causa.
Eu aponto a evidência. Estamos em democracia e agradeço muito estarmos em democracia, mas o que é que estes 40 anos de democracia criaram em termos de sistema partidário e de reais alternativas e opções políticas? Criaram um grande centrão, dominante — que neste momento já nem é centrão, é o Partido Socialista, que é o grande partido do sistema. Estamos a assistir a uma mexicanização do país, nesse sentido. E depois temos partidos que gravitam à volta deste grande centrão, neste momento representado por um único partido.
“Marcelo é grande amigo de Ricardo Salgado e nunca teve sinais de alarme”
Na apresentação da sua candidatura disse o seguinte: “Não estou envolvido em teias de interesses, de cumplicidades e de conveniências, dos séquitos e das elites do Terreiro do Paço”. Dos seus adversários, quem é que está “envolvido em teias de interesses, de cumplicidades e de conveniências, dos séquitos e das elites do Terreiro do Paço”? E o que é que está a insinuar com isso?
Todos falam contra a corrupção, mas o que me parece é que há aqui um problema de hipermetropia. Todos e cada um — e posso apontar um por um — vêem e apontam ao longe problemas de corrupção mas nunca veem quando está perto. Marcelo Rebelo de Sousa, Ricardo Salgado e BES. Ana Gomes, com anos e anos de convívio com Sócrates — e nunca houve sinais de alarme.
O que é que quer dizer com “Marcelo Rebelo de Sousa, Ricardo Salgado e BES”?
Marcelo Rebelo de Sousa é grande amigo, teve anos e anos de convívio com Ricardo Salgado, e nunca teve sinais de alarme.
Devia ter tido? Ninguém em Portugal se apercebeu, mas Marcelo Rebelo de Sousa…
Muita gente em Portugal se apercebeu, muito antes. Os rumores do Dono Disto Tudo e todas as insinuações que circulavam era as pessoas a aperceberem-se disso mesmo, mas a não quererem fazer nada.
Marcelo Rebelo de Sousa não quis fazer nada?
Marcelo Rebelo de Sousa com certeza que já tinha ouvido falar dos rumores sobre o Dono Disto Tudo.
Foi cúmplice de Ricardo Salgado, é isso que está a sugerir?
Foi cúmplice, em geral, de um seguidismo deste grande sistema. Neste momento, como Presidente, mantém esse seguidismo e colagem ao sistema político, fazendo-o com o PS, o partido do governo. E tendo tomou uma atitude clara de seguidismo, de complacência e às vezes até de militância em nome do Governo.
“Ana Gomes é adepta do amiguismo, do favor”
E Ana Gomes, que papel é que desempenha nesta suposta teia de interesses?
Ana Gomes também nunca sentiu nenhum tipo de alarmes quando estava com José Sócrates.
Foi das primeiras vozes do PS a denunciar José Sócrates.
Quando alguém cai no chão, toda a gente está disponível para dar pontapés. Mas, nos anos e anos em que esteve com José Sócrates, Ana Gomes nunca sentiu nenhum tipo de alarme. Ana Gomes, por um conjunto de atitudes, como esta da vacina, demonstra que é adepta deste nacional-porreirismo, do amiguismo, do favor.
Quando apresentou a candidatura disse que queria ser o candidato contra todos os populismos, os de esquerda e os de direita. Mas quando lança este anátema da corrupção sobre todos os seus adversários sem apresentar evidências concretas, não é uma forma de populismo?
As evidências estão lá. Há um problema de visão, de falta de sentido de alarme.
Portanto, se tivesse no lugar deles teria de certeza detetado essas questões que está a levantar.
Sim. Quando se fala do Dono Disto Tudo, quando se vê os casos da Cova da Beira, o primeiro caso apontado a José Sócrates, quando se vê tudo isto, pelo menos alguns sinais de alarme devem ser levantados.
No seu Facebook acusa Ana Gomes de “ignorar os atalhos de nepotismo em nomeações dos que lhe estão próximos para cargos no Estado ou nas clientelas do Estado”. Está a referir-se a quê?
Paulo Pedroso. É consultor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. É o seu diretor de campanha.
Isso é nepotismo?
Eu disse clientelismo e nepotismo.
O que disse foi que Ana Gomes ignorou “os atalhos de nepotismo em nomeações dos que lhe estão próximos para cargos no Estado ou nas clientelas do Estado”. Onde é que está o nepotismo aqui? Se calhar a palavra não seria esta. Ou está a referir-se a outra coisa?
Não, estou a referir-me em concreto a Paulo Pedroso e ao facto de ter sido nomeado para a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.
Ok, então não é nepotismo. Será clientelismo, é isso?
Sim.
Portanto, acha que Paulo Pedroso foi nomeado por favor político?
Levanta sinais de alarme e isso é que me deixa preocupado. E vem no seguimento de uma série de atitudes. De novo, a questão da vacina revela alguém que, para si e para os seus, acha que questões de favor e de jeitinho são práticas que podem ser comuns e aceitáveis. Para mim, não são aceitáveis. O episódio relatado na própria biografia de Ana Gomes, onde conta que, primeiro, não se faz política em Portugal sem aparelho partidário; e que quando soube que Paulo Pedroso era arguido começou a fazer perguntas aos amigos da Justiça e dos media. Ora, isto é Ana Gomes a ajudar à violação do segredo de justiça. Isto é um seguimento de atitudes que me deixa preocupado para alguém que é candidato a Presidente da República.
“Sou o primeiro candidato liberal de sempre”
Critica Ana Gomes pelo facto de assumir que não se faz política em Portugal sem aparelho partidário. Presumimos que vai abdicar do apoio partidário da Iniciativa Liberal nesta campanha presidencial. É isso?
Eu não estou a fazer política neste momento. Estou a concorrer a um cargo político. Fazer política, se for eleito, será exercer um mandato de Presidente da República.
A pergunta é clara: vai abdicar da estrutura da Iniciativa Liberal na campanha presidencial?
A Iniciativa Liberal apoia-me…
Está a ajudá-lo a recolher assinaturas.
Claro, tenho apoio da Iniciativa Liberal…
Do aparelho da Iniciativa Liberal.
… de militantes e de voluntários que me ajudam nesse processo. Mas isso não é o exercício do poder político.
Está a usar o aparelho de um partido para se candidatar.
Estou a usar pessoas, homens e mulheres.
Quando são os outros é o aparelho; quando é o seu partido são “homens e mulheres”.
Ana Gomes não está a dizer isso; o que Ana Gomes está a dizer no livro é que o exercício do poder político não se faz sem aparelho. Isto não é exercício do poder político, isto sou eu a candidatar-me a um cargo. Ana Gomes acha que o exercício do mandato presidencial não se faz sem aparelho partidário.
Em maio, a direção da Iniciativa Liberal apontava Carlos Guimarães Pinto como candidato favorito a Belém. Carlos Guimarães Pinto, por sua vez, lançou Adolfo Mesquita Nunes, do CDS, como o candidato do espaço liberal. Ora, se não foi a primeira escolha do seu partido, é expectável que os portugueses olhem para si como uma primeira escolha para o cargo?
A direção da Iniciativa Liberal não definiu nenhum protagonista, definiu um perfil. Um perfil que curiosamente coincide a 100% com a pessoa que tem aqui à vossa frente. Essa questão está resolvida: o escolhido da Iniciativa Liberal sou eu, Tiago Mayan Gonçalves. Está a ver outro? Não, pois não?
Não se sente diminuído por não ter sido a primeira escolha?
Não. A escolha de estar aqui à vossa frente é minha. A Iniciativa Liberal reconhece em mim o protagonista que vai corporizar essas ideias e valores liberais. Não vejo qualquer tipo de problema porque eu sou o único candidato liberal à Presidência da República. O primeiro de sempre, na verdade.
Já assumiu que Marcelo Rebelo de Sousa é o seu maior adversário, chegando mesmo a classificar o atual Presidente como “ministro da propaganda socialista”. Há cinco anos apoiou Marcelo. Isso diz mais do seu discernimento ou de Marcelo?
Não apoiei Marcelo há cinco anos. Há cinco anos não tinha uma opção liberal. Há cinco anos fiz um voto, não andei nas ruas a apoiar A, B, C ou D. Tive de fazer um voto no dia das eleições…
Podia ter-se abstido.
… dito isto, hoje a opção liberal existe. Estou a criá-la. Tem sido esse o meu percurso. Fi-lo ao nível local, ao ajudar a criar uma opção fora de todo o sistema partidário. Fi-lo ao ajudar a fundar um partido, a Iniciativa Liberal. E estou a fazê-lo agora, ao criar uma opção no boletim de voto para 24 de janeiro.
“Preocupa-me que possa haver intervenção das hierarquias do MP nos inquéritos em curso”
Diz que Marcelo tem sido “colaboracionista” do Governo. Um Presidente da República deve ser o líder da oposição?
Não, o Presidente da República deve ser o que está escrito na Constituição da República: o garante do regular funcionamento das instituições.
E Marcelo não o tem feito?
Marcelo contribuiu para um enorme desequilíbrio das funções dos órgãos de soberania. Em qualquer jogo, em qualquer ação política, quem ganhava era sempre o Governo. O fim dos debates quinzenais é coartar a capacidade escrutínio de um órgão de soberania chamado Assembleia da República. Outro exemplo: é suposto que os órgãos de supervisão e fiscalização sejam independentes do Governo e de outras funções; o que é que vemos no Tribunal de Contas? O que é que vemos no Banco de Portugal? O que é que vemos na Procuradoria-Geral da República? Marcelo tem, continuamente, abdicado de fazer as suas escolhas.
Aquilo que a Constituição diz é que a nomeação é feita sob proposta do Governo. Numa entrevista, Tiago Mayan Gonçalves disse que consigo a escolha será do Presidente, não será uma escolha do Governo. Pretende fazer as coisas de forma diferente do que está na Constituição?
Quem nomeia?
O Presidente da República. Mas a proposta é sempre do Governo.
Se o Presidente não nomear, aquela opção não assumirá o cargo.
Então recusa todas as propostas do Governo até nomear a pessoa que pretende.
O que pretendo é que as escolhas não sejam decididas pelo Governo. A decisão cabe ao Presidente da República.
A Constituição é clara: a nomeação é feita pelo Presidente sob proposta do Governo.
Está bem. Mas, em termos formais, quem assinou por baixo teve de ser o Presidente da República porque o ato formal é esse. A Procuradora-Geral da República, Joana Marques Vidal, elogiada por todos os quadrantes do setor da Justiça, estava disponível para continuar e o que teve de ser criado à pressa foi uma justificação que não foi de substância, foi formal, de dizer: ‘Ah, isto é suposto não haver renovações’. Apesar de a Constituição não dizer isso. Foi a única justificação dada para Joana Marques Vidal não ser reconduzida. A única que conseguiram encontrar foi: ‘Apesar de não estar escrito, achamos que estes cargos não deviam ser reconduzidos’. E, neste momento, estamos a ver Marcelo Rebelo de Sousa a recandidatar-se a um segundo mandato, apesar de já ter dito de viva voz que considerava que não devia acontecer.
Está a sugerir que houve vontade política de afastar Joana Marques Vidal?
Vou apontar um caso muito concreto, que foi tentado em fevereiro, e está a ser tentado outra vez: a diretiva da PGR que permite dar ordens diretas em processos de investigação que estejam em curso. Ordens diretas que nem constariam do processo e que depois não poderiam ser sindicadas pelas partes. Isto foi tentado em fevereiro, foi criado um grande bruaá e pôs-se na gaveta. Mas a ideia está a voltar outra vez esse tipo de ordem. A antiga PGR até já se veio a pronunciar, a dizer que, de facto, aquilo vai muito além da lei. Como Presidente iria preocupar-me muito mais. Preocupa-me muito que possa haver uma intervenção direta de hierarquias do Ministério Público e da PGR nos inquéritos em curso.
Mas quem está a fazer o quê e com que objetivo? Quem são essas pessoas? O Governo? A ministra da Justiça?
Estou a observar isto: a antiga PGR fez um trabalho absolutamente louvável. Estavam em curso, no momento de (re)nomeação, importantíssimos inquéritos em Portugal, nomeadamente do foro criminal. Foi decidida essa alteração e o que eu vejo de lá para cá são este tipo de coisas. Vejo uma diretiva nunca antes estabelecida na PGR. Isto são sinais. E já ouvi de viva voz da Joana Marques Vidal que uma diretiva deste género nunca iria existir no seu mandato.
Se fosse Presidente tomava alguma medida em relação a isso? Tentava promover uma demissão, eventualmente da procuradora?
Não. Isso não é possível. Isso seria uma interferência, uma usurpação de poder. Estamos a falar do foro do poder judicial. Agora, isto são sinais de alarme.
E em relação ao poder político? Nestes cinco anos, se tivesse sido Presidente, em algum momento teria decidido dissolver a Assembleia da República?
O que lhe posso dizer é o seguinte: o atual Governo, com o atual apoio Parlamentar, só poderia estar suportado em acordos escritos, como se fez antes.
Houve algum momento em que o Governo tivesse feito as coisas tão mal que o tivessem levado a dissolver a Assembleia da República?
Marcelo Rebelo de Sousa não levou a quedas de Governos, mas, num raríssimo momento, levou à queda de uma ministra.
E achou mal?
Achei bem. O que achei mal foi que o tivesse feito em outubro e não em julho. Porque recordo que os incêndios de Pedrógão Grande que mataram mais de 100 portugueses ocorreram em julho e já na altura se verificava o total descalabro nas funções de proteção civil. Mas Marcelo Rebelo de Sousa não atuou aí, atuou em outubro. Foi preciso haver mais incêndios e mais mortes.
“Marcelo acha-se um homem providencial, mas andou desaparecido cinco anos”
Perante as críticas que tem feito, acha que está em causa o regular funcionamento das instituições?
Quando se corta cada vez mais a capacidade de escrutínio da Assembleia da República, quando se tem intervenções diretas em órgãos de supervisão e fiscalização, quando há uma porta giratória de um ministro das Finanças para governador o Banco de Portugal, quando vemos aquele ato risível, aquele simulacro de democracia que foram as eleições para as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR), em que aquilo é um pacto de divisão de poder entre os dois partidos do centrão, PS e PSD… Isto é um desequilíbrio dos vários órgãos, das várias funções, das várias entidades e instituições do Estado.
Não existe um regular funcionamento das instituições, portanto. Se fosse Presidente da República ao dia de hoje e o calendário permitisse dissolveria a Assembleia da República.
O Presidente da República pode fazer mais antes de dissolver um Parlamento. Podia vetar, por exemplo, a lei que levou a essas eleições nas CCDR.
Vetaria essa lei?
Vetaria esse simulacro da democracia.
E que outras leis é que teria vetado?
Tenho de fazer uma palavra de elogio a Marcelo Rebelo de Sousa: finalmente lembrou-se do poder de veto. Penso que nos últimos seis meses ele já vetou tantas vezes quanto nos quatro anos e meio anteriores.
Acha que é por causa das eleições?
Mais do que achar, tenho a convicção. Marcelo acha-se um homem providencial, saiu de um enorme nevoeiro em que andou desaparecido nestes cinco anos e apresentou-se como o D. Sebastião perante todos os portugueses. O discurso que ele fez, das suas preocupações, é exatamente igual ao que ele fez há cinco anos. Fica a questão: então o que é que ele andou a fazer durante cinco anos se os problemas continuam a ser os mesmo, se o Estado do país continua a ser o mesmo? O que move Marcelo é a popularidade. O que aconteceu de há seis meses para cá? A sua popularidade estava nos píncaros e começou a descer. É ainda muito popular, não haja dúvidas; mas começou a descer. E, de repente, vemos um Presidente ativo, mais preocupado. A vetar mais. O que o move é mesmo isso: a popularidade.
“Além de ser xenófobo e racista, André Ventura também despreza a democracia”
Disse numa entrevista que André Ventura tem posições xenófobas e racistas. Acha que o Chega respeita a Constituição? Ou devia ser ilegalizado como tem sido defendido por algumas pessoas, nomeadamente por Ana Gomes?
André Ventura é isso tudo. Já tomou posições relativas a confinamento étnico de portugueses, já mandou uma deputada desta nação para a terra dela. É claro que André Ventura e o Chega confundem-se muito, é quase uma unipessoal, mas quem decide sobre a existência de um partido não é o Presidente da República, é o Tribunal Constitucional.
Mas terá uma opinião, não?
Quanto ao que André Ventura diz, tenho.
Sobre se o Chega respeita a Constituição e se reúne as condições para ser um partido legal ou se devia ser ilegalizado.
Quem tem de analisar isso é o Tribunal Constitucional e o Tribunal Constitucional analisou isso há relativamente pouco tempo, porque o Chega não tem assim tanto tempo de existência. Analisou programas políticos, analisou estatutos e considerou que sim [que devia ser legalizado].
Deu a sua opinião sobre coisas relativas à Procuradoria-Geral da República, que também não cabem nas funções do Presidente, podia ter uma opinião sobre isto também.
O que acho, e continuo a achar, é que além de ser xenófobo e racista, André Ventura também despreza a democracia e a liberdade de expressão. Até dentro do seu próprio partido. Eliminou eleições internas e determinou nomeações de cargos, impôs uma lei da rolha dentro do próprio partido. André Ventura, que é o Chega, tem todos estes sinais e é alguém em quem não se pode confiar.
Se fosse Presidente daria posse a um governo onde estivesse o Chega?
Quem tem que garantir a viabilidade de um governo é o Parlamento. É o Parlamento que tem de garantir a maioria que sustentará a existência de um Governo. Mas um Presidente não nomeia só um governo, está permanentemente vigilante. Tudo depende do que seja um programa de governo. Um programa que preconizasse medidas de confinamento étnico ou medidas de discriminação de qualquer contexto, naturalmente iria merecer um chumbo, um veto do Presidente da República. Eu diria de qualquer um.
Se houver uma maioria no Parlamento com o apoio do Chega não tem problemas em viabilizar um governo com essa maioria.
Não sei se esse cenário é sequer possível. Parece que estão a pressupor que todos os outros são seguidistas e que farão o que o Chega diz. Eu sei que [André Ventura] já anda a pedir Ministérios e tudo isso, mas assim de repente parece que não é preciso haver outros para isso acontecer.
Na lógica de construir uma maioria no Parlamento, o Chega não é um fator que inviabilize. É isso?
É um partido que tem um deputado, que o Tribunal Constitucional aceitou e permite que exista no sistema partidário português. É um partido em que não me revejo em nada, mas o Tribunal Constitucional determinou que ele exista.
Tem uma visão pragmática, portanto. Se o Chega for instrumental para uma maioria de direita, sentir-se-ia confortável com isso.
O que lhe posso dizer é que a Iniciativa Liberal não entra numa solução em que o Chega seja governo.
Voltamos à nossa primeira pergunta: se fosse Presidente da República teria muitas reservas em dar posse a um governo com o Chega?
Estaria especialmente vigilante. Quem tem que garantir uma maioria parlamentar que suporte um programa é a Assembleia da República. Seria uma usurpação de poderes o Presidente fazer isso. Depende do que seria esse programa do governo. O Presidente pode vetar, ou pode destituir, no limite, se insistissem num programa de governo que considerasse que continha medidas de discriminação, de racismo, de xenofobia, de ataque à democracia ou à liberdade de expressão.
Nos Açores, a Iniciativa Liberal apoia o mesmo governo que o Chega. Isso é confortável para si? Imagina esta situação a repetir-se na Assembleia da República?
Nos Açores, a Iniciativa Liberal não tem nenhum apoio com mais ninguém a não ser o PSD e esse acordo é um acordo escrito. Está tudo lá escrito. O acordo da Iniciativa Liberal com o PSD são 10 pontos que desenvolvem todo um conjunto de medidas de liberalização dos Açores. Se o PSD, enquanto lidera essa coligação, levar avante as medidas de liberalização terá a viabilização do seu governo. O importante de um acordo escrito é também o que não está lá escrito. Não está lá escrito a Iniciativa Liberal venha a apoiar outras medidas, nomeadamente que ataquem os nossos valores ou as nossas ideias. A Iniciativa Liberal é oposição nos Açores, tal como é aqui no continente e será oposição a toda e qualquer medida que seja atentatória de direitos, liberdades e garantias.
Portanto partilha da ideia de que é importante combater a subsidiodependência.
Isso é semântica…
Estamos a simplificar, mas foi vendido como um “combate à subsidiodependência”.
É importante não simplificar, as palavras não são inocentes.
As palavras são de André Ventura, de José Manuel Bolieiro…
O que o Chega negociou nos Açores foi a criação de mais um gabinete, um acordo para uma possível revisão constitucional, algo absolutamente inútil face ao que os Açores necessitam nos próximos cinco anos.
Mas não gosta da expressão subsidiodependência, acha que é uma expressão contaminada?
Sejamos claros, estamos a falar do Rendimento Social de Inserção (RSI). O RSI, em primeiro lugar, tem uma característica que é o chamado contrato de inserção, não é entregue sem mais nada. Poderá haver correções, ajustamentos, poderá ser revisto para ver se realmente está a cumprir com o que se pretende, mas representa uma migalha dentro do que são os apoios sociais.
Não gosta da palavra “subsidiodependência”, é isso?
Não gosto da palavra, não.
A palavra está no documento que foi assinado pela Iniciativa Liberal.
A questão é que o RSI não está a funcionar para o que deve servir que é para inserir as pessoas outra vez no mercado de trabalho, inseri-las socialmente. E isso torna-os permanentemente dependentes do Estado. Eu não gosto dessa expressão, mas é isso que se quer dizer. O que diria nesse contexto é que temos de garantir que aquele apoio, necessário para muita gente, está a contribuir para o que se pretende: para a inserção das pessoas no mercado de trabalho.
“Marta Temido e Graça Freitas já não têm condições”
Tem sido muito crítico em relação à resposta do Governo a esta crise pandémica. Se fosse Presidente teria pressionado o Governo a afastar Marta Temido?
Penso que neste momento já é evidente que Marta Temido e a senhora diretora-geral da Saúde, Graça Freitas, já não têm condições. A obsessão ideológica em não usar privados foi fatal para muitos portugueses. Já temos plena consciência de que vamos necessitar desta ajuda, de conceber a oferta de saúde como um sistema integrado que inclua público, privado e, acima de tudo, o setor social. De facto, foi uma obsessão ideológica e isso matou pessoas, sejamos claros.
Está a acusar Marta Temido de, por omissão ou falta de ação, ter contribuído para a morte de pessoas?
Foi o efeito disso. Há mais de 8 mil mortos não-Covid que, neste momento, não seriam expectáveis.
Tem consciência de que essa é uma acusação grave?
Não é a primeira vez que a estou a fazer. Acho que foi a atitude negligente e de cegueira ideológica que levou a que não usássemos os privados em tempo útil para, por exemplo, realizar cirurgias que não foram realizadas; realizar diagnósticos, de doenças graves como doenças oncológicas, que não foram realizados; e isso levou a que tenhamos, ao dia de hoje, perto de 8 mil mortes não-Covid que não seriam expectáveis neste contexto.
Uma das competências do Presidente é decretar o estado de emergência. A Iniciativa Liberal tem votado sempre contra. Não o teria decretado se fosse Presidente?
A questão do estado de emergência é que nós estamos a enfrentar uma emergência de saúde pública, e para emergências de saúde pública temos de aplicar medidas de saúde pública. Há aqui algumas questões como a medição de temperatura e a questão da realização de testes, que são, dentro de certa medida, limitações a direitos, liberdades e garantias, que poderiam implicar uma declaração de estado de emergência. Mas um estado de emergência não é só ligar e desligar, é todo um conjunto de medidas.
Não acha que limites à circulação façam sentido?
Estamos a ver pessoas a serem concentradas em espaços fechados num curto espaço de tempo. Isto é eficaz para combater o vírus?
Era mais eficaz um confinamento total?
Isso fizemos em março e isso destrói vidas também.
Então neste momento devíamos estar a fazer o quê?
Devíamos estar a testar, a isolar e a confiar nas pessoas.
Confiar nas pessoas é suficiente?
Elas demonstraram isso em março quando foram as primeiras, antes de qualquer ordem de qualquer governo, a confinar-se. O Governo tem é de começar a testar realmente, começar a detetar as cadeias de contágio, que foi um trabalho que foi abandonado nestes meses — não se treinaram equipas, não se contratou mais gente para fazer este trabalho. E quando vemos o Governo a apresentar um queijinho para justificar o primeiro estado de emergência nesta nova fase, vemos que esse queijinho é falso, transmitia informação falsa, ou pelo menos errónea.
Para ficar claro: é contra o recolher obrigatório?
Acho que estas medidas estão a ser contraproducentes.
Apesar de serem seguidas de forma praticamente idêntica por grande parte dos países europeus?
Isso não é verdade. Há muitos países europeus que nunca aplicaram medidas de confinamento.
A Suécia, por exemplo, e não tem números fantásticos.
Há países que aplicaram medidas de confinamento localizadas, há variadíssimas opções.
Que países são esses?
A Eslováquia, por exemplo, fez algo que parece mais razoável no sentido de testar, isolar e confiar. A Eslováquia testou praticamente toda a sua população e os positivos tomou as medidas de confinamento adequadas. A Áustria também fez isso. São opções diferentes.
Portanto, em vez de proibir as pessoas de circular, ou de restringir a circulação, achava preferível forçá-las, ou incentivá-las, a fazerem um teste, é isso?
A questão não é forçar.
Foi o que aconteceu na Eslováquia.
Ninguém era obrigado a fazê-lo.
Havia incentivos muito fortes.
Ninguém era obrigado a fazê-lo. A verdade é que houve uma adesão maciça porque as pessoas o quiseram fazer.
Porque os incentivos eram muito fortes. Quem não o fizesse tinha consequências na sua vida.
Tinha as consequências que temos em Portugal que é a consequência do confinamento. A nós não nos deram essa hipótese.
Então o que está a dizer, no fundo, é que as pessoas deviam estar em casa e só sair mediante teste?
O que estou a dizer é que há outras opções, nomeadamente o testar, identificar, isolar e tomar as medidas adequadas para essas pessoas. Isso e confiar nas pessoas. Porque se se cria uma regra, que é a regra vigente para todos, e depois cria-se todo um conjunto de exceções… As pessoas estão a ser travadas no trânsito para se verificar que em 99% dos casos não estão a fazer nada de mal. Quando há uma regra e 99% das pessoas está nas exceções, tem algum sentido?
“Deixaria cair a TAP”
Já na qualidade de candidato presidencial, criticou a posição de Marcelo Rebelo de Sousa e de António Costa na questão da Hungria e da Polónia, dizendo que Portugal é um defensor acérrimo do Estado de Direito” e que “se Costa e Marcelo não o são, então devem sair de cena”. Pressupomos então que se fosse Presidente pressionaria o Governo português a não abdicar do mecanismo de condicionalidade, mesmo que isso significasse um impasse em relação à bazuca europeia? Era preferível, no limite, perder os fundos europeus?
O problema de Portugal no contexto europeu é que pouco interessa o que queremos fazer lá. Nós somos os pedintes da União Europeia, estamos sempre em posição de favor, nós não determinamos nada na UE. Quem determina é a Alemanha, tanto que já falou com esses dois países.
Mas Portugal tem de ter uma posição. Ou não?
Tem, a posição deve ser essa.
Qual? É preferível não receber fundos europeus ou atrasá-los substancialmente?
Isso é uma dicotomia falsa.
Porquê?
Porque a Alemanha já resolveu o problema, fazendo permanecer esse mecanismo de respeito do Estado de Direito.
Então a Hungria e a Polónia cederam totalmente? Não houve aqui nenhuma concessão para resolver o impasse?
O que foi transmitido, eu não estive lá, é que o mecanismo de respeito do Estado de Direito mantém-se e a bazuca europeia foi desbloqueada.
Sem nenhuma suavização da questão do Estado de Direito?
Vamos ver. O que sei é que o mecanismo se mantém e vamos ter bazuca europeia.
Sendo que o Governo português aprovou esta versão final do mecanismo de condicionalidade.
Sim porque o seu acordo com a extrema-direita falhou. O acordo que António Costa tentou estabelecer com a extrema-direita de fazer cair o mecanismo de condicionalidade acabou por falhar, e ele agora veio retomar a posição de que é um grande defensor do Estado de direito e desse mecanismo.
Sobre a relação com a China chegou a dizer: “Não podemos abdicar da defesa intransigente dos nossos valores por troca de interesses económicos de circunstância. Como Presidente, exercerei sempre a minha magistratura de influência em favor da democracia e liberdade.” O que é que isto quer dizer? Pressionava o Governo a recuperar o controlo da EDP, por exemplo?
O que tem de acontecer relativamente à EDP, e a qualquer empresa privada, é a existência de entidades de regulação e supervisão fortes.
Mas qual seria o seu papel aqui? Disse que ia exercer a sua magistratura de influência.
A EDP é uma empresa privada, sei que tem acionistas chineses, mas a EDP trabalha no mercado da eletricidade, há reguladores desse mercado, e esses reguladores têm de ter capacidade de ação. Disso não tenho dúvidas. E a minha magistratura de influência destinar-se-ia a garantir que as entidades de regulação estão a funcionar.
Mesmo a terminar, uma resposta sim ou não. Esta quinta-feira é entregue o plano de reestruturação da TAP em Bruxelas. Se fosse Presidente, aconselharia o Governo a deixar cair a TAP e a fechar a companhia?
Sim. Se só tenho 30 segundos, a resposta é sim.
[Veja a entrevista na íntegra:]