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[Esta é a terceiro parte de um ensaio em capítulos, a pretexto da edição pela Guerra & Paz de A religião woke, do filósofo francês Jean-François Braunstein. Aqui pode ler a primeira e a segunda.]

Da Guerra Civil Americana a Donald Trump

A eleição de Barack Obama, em 2008 e em 2012, para dois mandatos como presidente dos EUA, poderá ter sido interpretada por um observador com conhecimento superficial da realidade americana como comprovativo de que a sociedade americana teria finalmente superado as graves desigualdades raciais que ensombraram a sua história e que nem a Guerra Civil de 1861-65 e a concomitante abolição da escravatura, nem o Civil Rights Act de 1964, que foi consequência da luta determinada dos afro-americanos em prol dos seus direitos cívicos, tinham conseguido eliminar. Terá mesmo havido gente suficientemente ingénua para pensar que a chegada de um afro-americano à presidência marcara o fim do racismo nos EUA.

Terminal de autocarros, Oklahoma City, EUA, 1939: Afro-americano num fontanário destinado a pessoas “de cor”

Porém, ver um negro como presidente foi algo que deixou abespinhados os brancos americanos mais conservadores, à semelhança do que acontecera em 1870, quando Hiram R. Revels logrou ser o primeiro afro-americano eleito para o Senado, ou em 1898, quando uma coligação bi-racial foi eleita em Wilmington, na Carolina do Norte. Na história americana posterior à Guerra Civil, é comum que a conquista pelos afro-americanos de algum direito ou posição de poder gere rancor e retaliações por parte de alguns sectores da sociedade branca – e até existe um termo para designar o fenómeno: “white backlash” ou “whitelash”.

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O facto de Obama ser carismático, desenvolto e intelectualmente brilhante e possuir invulgares dons oratórios só agravou o ressentimento branco e reforçou o receio de os EUA estarem a cair sob o controlo de não-brancos e de os “valores americanos” estarem a ser corrompidos. Não foi por acaso que a mais acalorada contestação a Obama durante a sua presidência tenha tido por alvo, não a sua política, mas o seu local de nascimento, que o movimento “birther” cria – ou queria fazer crer – ter tido lugar no Quénia ou na Indonésia, o que o desqualificaria, à luz da Constituição, para exercer o cargo de presidente (uma tese que tem subjacente uma mundividência racista: se Obama fosse branco ninguém se lembraria de questionar a sua cidadania americana). Apesar de os promotores desta teoria conspiracionista nunca terem apresentado factos que a sustentassem e de Obama ter tornado pública a sua certidão de nascimento em 2008 e, novamente, em 2011, nas vésperas das eleições de 2020 41% dos eleitores republicanos continuavam convencidos de que Obama não nascera nos EUA e 31% diziam estar indecisos sobre a sua naturalidade; entre os que questionaram publicamente a cidadania americana de Obama esteve Donald Trump.

“Onde está a certidão de nascimento?”: Painel publicitário promovendo a teoria de que Barack Obama não era cidadão americano. South Gate, Califórnia, 2010

Assim, pode ver-se a eleição de Trump, em 2016, e o recrudescimento da actividade de grupos supremacistas brancos, neo-nazis e neo-confederados (por vezes arrolados conjuntamente sob o “chapéu” do “nacionalismo branco”), como a reacção da América branca e conservadora à presidência Obama. Havia que repor a “ordem natural das coisas” e, não só “tornar a América grande de novo”, como “tornar a América branca de novo”.

Trump, que é astuto e conhece bem o seu eleitorado, sabe como explorar o ressentimento gerado pela presença de um afro-americano na Casa Branca. Quando, a 12 Agosto de 2017, em Charlottesville, na Virginia, um supremacista branco lançou deliberadamente o seu carro pelo meio de uma manifestação pacífica que protestava contra a realização do comício “Unite the Right” (uma designação enganadora, pois dizia respeito apenas a grupos de extrema-direita) e matou uma pessoa e feriu 35, o então presidente dos EUA declarou “Creio que houve culpa dos dois lados”. Manteve uma posição igualmente ambígua em relação aos Proud Boys, um grupo nacionalista de extrema-direita (por vezes classificado como neofascista) que se tem contado entre os seus mais entusiásticos apoiantes (e que, embora não se assuma explicitamente como racista e tenha tido um secretário afrocubano – Enrique Tarrio – como fachada “castanha”, é constituído quase exclusivamente por brancos). Em Julho de 2019, Trump sugeriu, no Twitter, que quatro mulheres congressistas de ascendência africana, pertencentes à ala esquerda do Partido Democrata, deveriam “regressar à sua terra [ainda que três delas tivessem nascido nos EUA] e dar um jeito nos lugares completamente arruinados e infestados de crime de onde vieram”. Num comício em Outubro de 2023, Trump desenterrou o “espantalho” Obama, tendo o cuidado de referir-se repetidamente a ele como “Barack Hussein Obama”, a fim de realçar a sua condição de “unamerican” e sugerir a sua associação ao islamismo e (na mundividência estereotipada e maniqueísta de muitos dos seus seguidores) até mesmo ao terrorismo islâmico. Trump poderá nunca ter incitado explicitamente à discriminação e à violência racial, mas quando alguém com a sua posição e popularidade tem este tipo de discurso e atitudes, é inevitável que alguns dos seus seguidores se sintam encorajados a dar rédea livre às suas pulsões racistas.

Charlottesville, 12 de Agosto de 2017: Fila para entrar no Emancipation Park, onde decorria o comício “Unite the Right”; como as bandeiras evidenciam, o comício unia várias “sensibilidades” políticas, do nazismo ao supremacismo branco

Se os anos da presidência Obama pouco fizeram para mudar os preconceitos e enviesamentos contra os afro-americanos, nomeadamente na forma como estes são tratados pelas forças da ordem, e se os anos da presidência Trump assistiram a um incremento da má-vontade, da hostilidade e até da violência contra os afro-americanos pela parte de grupos ou indivíduos ressabiados da população branca, torna-se compreensível o crescimento entre os afro-americanos, ao longo da segunda década do século XXI, da consciencialização para o combate à persistência (ou até intensificação) de formas mais ou menos encobertas de racismo e a sua cristalização no movimento Black Lives Matter (cujo início costuma ser fixado em Julho de 2013).

Numa fase inicial, a causa Black Lives Matter angariou simpatias entre gente de todas as cores de pele e em diversos países, mas não tardou a ganhar contornos excessivos e insensatos, alienando parte dos apoios. A sensibilidade exacerbada (que faz com que a frase ou gesto mais anódino possa ser interpretado como racista), a pulsão para condenar todas as figuras do passado cuja perspectiva racial não fosse conforme aos padrões actuais, o conceito de o “racismo sistémico” (que defende que o racismo está por todo o lado), a ideia de que os brancos são intrínseca e irremediavelmente racistas e o culto da vitimização converteram o que era uma causa legítima num activismo radical, divisivo e, por vezes, francamente lunático.

Quando é que Martin Luther King se tornou racista?

No seu programa televisivo Real Time de 13.10.2023, o comediante Bill Maher – de pendor liberal – denunciou nestes termos o carácter doentio e contraproducente que o wokismo assumiu no domínio racial: “Creio que as gerações mais novas têm um problema com a vontade de construir a sua identidade em torno da vitimização; eles querem tão desesperadamente ter um racismo para combater – não ‘combater o racismo’, mas ‘ter um racismo para combater’ – que, se não o encontram, inventam-no. Acontece que já há no mundo verdadeiro racismo quanto baste, não é preciso que se invente mais”.

Braunstein leu e analisou (louve-se-lhe a paciência) o pensamento dos sumos-sacerdotes da “teoria crítica da raça” (“critical race theory”) e de outros exaltados militantes racialistas e oferece uma ampla (e tóxica) selecção dos seus escritos e proclamações. À luz destes, Martin Luther King Jr. ganha contornos indubitavelmente racistas, uma vez que o seu sonho era que os seus filhos pudessem “viver numa nação em que seriam julgados não pela cor da sua pele, mas pelo seu carácter”, enquanto “o ‘novo anti-racismo’ é obcecado pela cor da pele” (Braunstein, pg. 124).

A cor da pele ocupa um lugar absolutamente crucial na mundividência woke, já que, segundo Ibram X. Kendi, “o único remédio contra a discriminação racista é a discriminação anti-racista” – ou seja, há que punir os brancos pela discriminações pretéritas, impondo-lhes novas discriminações. Curiosamente, alguns dos mais entusiastas defensores da teoria crítica da raça e da ideia de que o racismo é “sistémico” são brancos, como é o caso de Barbara Applebaum, professora na Universidade de Syracuse, que afirma que “todos os brancos são racistas ou cúmplices do facto de beneficiarem de privilégios a que não podem renunciar” (citada por Braunstein, pg. 111)

As cicatrizes resultantes do chicoteamento de um escravo numa plantação de Baton Rouge, Louisiana, 1863. Foto por McPherson & Oliver

Claro que nem todos os afro-americanos aceitam a visão do wokismo em relação à raça: entre os que denunciam a teoria crítica da raça como irracional e nefasta para brancos e negros está o especialista em cultura afro-americana (e linguista) John McWhorter, cuja obra mais recente, Woke racism: How a religion has betrayed Black America (2021), é mencionada em várias ocasiões por Braunstein. Um trecho (não citado por Braunstein) de Woke racism sumariza exemplarmente a evolução por que tem passado o anti-racismo nos EUA: “A primeira vaga anti-racista combateu a escravatura e legalizou a segregação. A segunda vaga anti-racista, nas décadas de 1970 e 1980, combateu as atitudes racistas e ensinou à América que ser racista é uma falha de carácter. A terceira vaga anti-racista, que se tornou mainstream na década de 2010, defende que, por o racismo estar embutido na estrutura da sociedade, a ‘cumplicidade’ dos brancos em viver integrados nessa sociedade é, em si mesma, racista, enquanto para os negros, lidar com o racismo que os rodeia representa a totalidade da sua experiência, o que deverá levar a que sejam tratados com excepcional sensibilidade, nomeadamente pela suspensão da aplicação aos negros de padrões de realização e de conduta”.

A ideologia anti-racista de terceira geração insinuou-se na linguagem corrente, não só nos EUA como no resto do mundo ocidental, levando, por exemplo, à difusão da expressão “pessoa racializada” para designar todos os não-brancos. O termo não se limita a constatar diferenças na cor da pele – confere automaticamente aos não-brancos o estatuto de vítimas de séculos de domínio branco, domínio que, mesmo após a supressão de distinções raciais na legislação, continua (supostamente) a exercer-se sob a forma de discursos hierarquizantes e pela aceitação tácita de que o branco é o padrão para toda a sociedade.

Também a lógica que preside à comunicação entre pessoas e às relações entre elas começa a ser permeada pela visão racial woke: esta está, por exemplo, subjacente à ideia de que se uma frase, uma imagem ou uma atitude são entendidas por uma “pessoa racializada” como sendo racistas, é porque efectivamente o são.

E quem ousar questionar este “raciocínio” (chamemos-lhe assim) arrisca-se a que os wokes respondam com um outro “raciocínio” igualmente estulto, que Rokhaya Diallo, jornalista, realizadora, professora de “estudos culturais” na Sorbonne, investigadora no campo da “justiça de género”, activista de causas identitárias e uma das 100 personalidades francesas mais influentes (de acordo com a revista Slate), explanou num tweet: “Se alguém vos pedir provas de racismo, basta responder que pedir provas de racismo é, por si só, uma prova de racismo” (citada por Braunstein).

Há que reconhecer que o wokismo desenvolveu uma lógica argumentativa circular, tautológica, pueril, “self-righteous”, completamente impermeável à razão e, logo, irrebatível.

Rokhaya Diallo (n.1978)

Interlúdio ornitológico

Há poucos dias, a Sociedade Ornitológica Americana (AOS na sigla inglesa) anunciou que, a partir de 2024, irá alterar os nomes comuns de 70 a 80 espécies de aves cuja designação actual faz referência a figuras históricas com um passado racista ou cujo comportamento, escritos e crenças não correspondam aos padrões morais do presente. A presidente da AOS, Colleen Handel, realçou que “os nomes têm poder e os nomes em inglês de algumas aves estabelecem vínculos com o passado que continuam hoje a ser nocivos e discriminatórios”. Segundo Handel, a AOS “compreendeu que certos nomes têm conotações ofensivas ou depreciativas que magoam algumas pessoas e que é importante alterar isso e remover as barreiras ao seu envolvimento no mundo das aves”. Assim sendo, declarou Handel, “necessitamos de um processo científico muito mais inclusivo e empenhado, que foque a atenção na beleza e características únicas das próprias aves […] Todos os que são apaixonados por aves deverão poder desfrutar delas e estudá-las livremente”.

Este anúncio é consequência da campanha “Nomes de Aves para as Aves”, lançada por “grupos ornitológicos progressistas”, como o Feminist Bird Club, os Philly Queer Birders, o Anti-Racist Collective of Avid Birders ou o Black & Latinx Birders Scholarship, que tem vindo a denunciar alguns nomes de aves que fazem referência a pessoas como “problemáticos, na medida em que perpetuam o colonialismo e o racismo a elas associados”. A decisão da AOS é a primeira vitória retumbante da campanha “Nomes de Aves para as Aves”, mas esta já lograra um êxito em 2020, quando forçou a AOS a rebaptizar a espécie Rhyncophanes mccownii (da família Calcariidae), conhecida em inglês por “McCown’s longspur” (sem equivalente em português, por ser uma espécie endémica dos EUA), como “thick-billed longspur”, uma vez que o nome original aludia a John P. McCown (1815-1879), um entusiasta da ornitologia que foi também general no Exército Confederado.

Rhyncophanes mccownii: sob uma aparência fofa, discreta e inocente oculta-se um passado racista e esclavagista

Irby Lovette, professor de ornitologia na Universidade de Cornell e membro da comissão de classificação e nomenclatura da AOS, assegurou que esta entidade “está efectivamente disposta a ouvir diferentes opiniões, especialmente as dos grupos marginalizados que não têm tido voz até agora, e pretende trabalhar cuidadosamente em prol da modernização da nomenclatura ornitológica”.

Entre as aves “na calha” para o rebaptismo estão “Anna’s hummingbird” (Calypte anna, um beija-flor baptizado em honra de Anne d’Essling, grand-maitresse (primeira aia) da imperatriz Eugénie de Montijo), “Bewick’s wren” (Thryomanes bewickii, uma carriça baptizada em honra do gravador Thomas Bewick), “Bullock’s oriole” (Icterus bullocki, um parente americano dos melros do Velho Mundo, baptizado em honra do naturalista, ourives, coleccionador e antiquário William Bulllock), “Cooper’s hawk” (Accipiter cooperii, um falcão baptizado em honra do naturalista William Cooper), “Gambel’s quail” (Callipepla gambelii, uma codorniz baptizada em honra do naturalista e médico William Gambel), “Lewis’s woodpecker” (Melanerpes lewis, um pica-pau baptizado em honra do explorador Meriweather Lewis), “Steller’s jay” (Cyanocitta stelleri, um gaio baptizado em honra do naturalista Georg Wilhelm Steller) e “Wilson’s warbler” (Cardellina pusilla, um parente das felosas e toutinegras, baptizado em honra do ornitólogo Alexander Wilson).

Melanerpes lewis, até agora conhecido como “pica-pau de Lewis”

Terão todas estas figuras cujos nomes foram imortalizados nos nomes comuns ingleses de aves sido proeminentes traficantes ou proprietários de escravos, genocidas e agentes do imperialismo ocidental? Terão chacinado ameríndios? Terão pleiteado publicamente contra a abolição da escravatura e a emancipação das mulheres? Terão sido monstros sádicos e sem escrúpulos?

As respectivas informações biográficas não fazem referências a tais actos ou palavras nem apontam graves falhas de carácter. A maioria deles distinguiram-se como homens de ciência, que deram relevante contributo para o conhecimento do mundo, e é quase exclusivamente por essa razão que são conhecidos. Thomas Bewick até foi pioneiro na defesa dos direitos dos animais; William Gambel morreu ao tentar conter uma epidemia de febre tifóide numa aldeia mineira na Califórnia; e Meriweather Lewis gozou (em tempos) da aura de herói nacional americano (Thomas Jefferson teceu-lhe arrebatados elogios), sobretudo por ter sido co-líder da ousada expedição Lewis & Clark de 1804-06, um empreendimento pioneiro na exploração e mapeamento do Oeste americano e na construção dos EUA. Mas talvez a expedição Lewis & Clark seja hoje vista como marco decisivo num vasto e tenebroso plano de genocídio e espoliação visando os povos nativos americanos e Lewis e Clark sejam, aos olhos do wokismo, tão obnóxios e odiosos quanto Cristóvão Colombo. Quanto a Anne d’Essling, que não faz parte do patriarcado, é de supor que foi incluída devido ao “crime” de imperialismo por associação, na condição de aia da esposa de Napoleão III.

Outubro de 1805: Meriweather Lewis e William Clark encontram-se com índios Chinook no curso inferior do Rio Columbia; quadro por Charles Marion Russel, c.1905

Dada a natureza do wokismo, é previsível que, após ter conseguido expurgar os nomes comuns ingleses das espécies de organismos de todas as máculas colonialistas e racistas, pretenda fazer o mesmo com os nomes científicos (a “nomenclatura binomial” em latim) das espécies, uma tarefa bem mais árdua, por requerer o consenso da comunidade científica internacional, mas não impossível. Também não é de excluir que a reprovação dos “grupos ornitológicos progressistas” se abata, em seguida, sobre os nomes de aves potencialmente ofensivos para pessoas portadoras de algum tipo de limitação ou deficiência física, como sejam pato-marreco, marrequinha, calhandra-cornuda, cisne-mudo, escrevedeira-pigmeia ou águia-careca. Quantas pessoas com estatura inferior à média não se sentirão excluídas dos prazeres da observação de aves por nomes como “andorinha-do-mar-anã”? Por outro lado, um nome como “águia-imperial” pode ser interpretado como sinal de aprovação do domínio imperial exercido pelas nações europeias sobre povos de África, América e Ásia.

Esta investida do wokismo contra as tradições ornitológicas americanas tem um aspecto particularmente irónico: um dos primeiros e mais proeminentes ornitólogos dos EUA (e também do mundo) foi John James Audubon (nascido em 1785 na colónia francesa de Saint-Domingue – hoje Haiti – e baptizado como Jean-Jacques Rabin), que, além de ter contribuído para dilatar os conhecimentos sobre a avifauna americana (descobriu 25 espécies e 12 subespécies), também a imortalizou em belíssimas gravuras coloridas, das quais 435 (representando 490 espécies) foram publicadas no monumental livro The birds of America (1827-38), que foi complementado por uma Ornithological biography (1831), em 5 volumes e 3000 páginas.

Capa de “The birds of America” (1827-38)

O mérito de Audubon como ornitólogo e ilustrador científico justificou que o seu nome fosse dado à National Audubon Society, uma das mais antigas organizações de conservação da natureza dos EUA (e do mundo), fundada em 1905, bem como a várias localidades, escolas, vias públicas, parques e acidentes geográficos, um pouco por todos os EUA. Acontece que Audubon, como tantos contemporâneos seus, foi, intermitentemente, proprietário de alguns escravos e nas suas cartas à esposa manifestou oposição ao movimento abolicionista e na Ornithological biography deu a entender que não considerava os africanos e os nativos americanos como iguais do homem branco. Estas falhas de carácter (à luz dos critérios morais actuais, mas que não o eram no tempo de Audubon) tornaram Audubon numa figura embaraçosa para a National Audubon Society, cujo website passou, neste “tempo crítico de ajuste de contas com o racismo” [sic], a incluir um texto, The myth of John James Audubon, que enumera e reprova as atitudes “politicamente incorrectas” do seu patrono e sublinha que “se celebramos o seu legado ambiental, temos também de enfrentar o seu legado racial”.

John James Audubon (1785-1851), retratado em 1826 por John Syme; o quadro está na Casa Branca – por enquanto

Quatro lições sobre o wokismo

Seria um erro considerar a purga aos nomes comuns de aves pela American Ornithological Society como uma anedota ou uma extravagância inconsequente, ridícula e até divertida do radicalismo woke. Na verdade, deste episódio aparentemente anódino podem retirar-se pelo menos quatro ensinamentos sobre a essência do wokismo.

O wokismo nunca dorme

Uma vez libertado da sua caixa, o wokismo calcorreia os campos, frenética e incansavelmente, de nariz colado ao chão, inspeccionando todas as tocas, fendas, troncos, moitas, recessos e penedias, como um perdigueiro sobre-excitado em busca, não de peças de caça, mas do rasto do detestável e irredimível cis-heteropatriarcado branco e das suas incontáveis malfeitorias e microagressões. A nomenclatura ornitológica só poderá parecer um alvo inesperado e insignificante aos que ainda não assimilaram verdadeiramente o conceito de racismo “estrutural” (ou “sistémico”) e os conceitos afins da homofobia, transfobia e misoginia “estruturais”: se são estruturais”, tal implica que inquinam todas – mesmo todas – as facetas da sociedade. E quem pense que “isso dos nomes dos pássaros é uma tolice não me diz respeito” poderá amanhã tornar-se na próxima vítima, pelo mais frívolo e inverosímil dos motivos.

O wokismo está a envenenar a nossa relação com a História

A pressão para a purga da nomenclatura ornitológica parte do princípio de que todos os homens brancos de alguma proeminência que viveram antes da “Era Desperta” foram canalhas, ou, pelo menos, carregam o pecado do “privilégio branco”. Como já aqui se defendeu em artigos anteriores, a História, com tudo o que teve de sublime e atroz, não deveria ser vista como motivo de orgulho e celebração nem de vergonha e remorso, mas sim como fonte de iluminação e sabedoria. Porém, a constante pressão para julgar todo o passado à luz dos critérios morais do presente (ver capítulo “Apropriação cultural e anacronismo moral” em “Somos perfeitos sem ter de fazer nada”: O wokismo e as redes (ditas) sociais) está a converter o passado num terreno extremamente instável, escorregadio e traiçoeiro, em que tudo pode ser motivo para lançar acusações e vilipêndios e reclamar retractações e reparações. Ao contrário do que se passa na justiça “tradicional”, na justiça woke os “crimes” nunca prescrevem e cada nova “leis” que se promulga tem efeito retroactivo até aos alvores da civilização.

O wokismo é divisivo

Apesar de o wokismo se arvorar em paladino da inclusividade, na verdade, tem como um dos seus principais desígnios a exclusão e a segregação por linhas identitárias. O que há na ornitologia e na observação de aves que justifique que, como se depreende dos nomes dos “grupos ornitológicos progressistas” acima mencionados, tais actividades sejam exercidas em blocos separados e homogéneos, definidos de acordo com origem étnica, sexo, género e orientação sexual? O que haverá de especificamente feminista na observação de aves e que provas de feminismo será preciso apresentar para se ser admitida no grupo? Poderá a presença de um membro do cis-heteropatriarcado num grupo de birdwatchers gay fazer os flamingos debandar em alvoroço?

Uma actividade do Feminist Bird Club de Nova Iorque

O wokismo alimenta-se da cobardia

O texto sobre os “pecados” de John James Audubon no website da sociedade de que é patrono, as declarações acima transcritas dos responsáveis da American Ornithological Society e, em particular a promessa de “trabalhar cuidadosamente” para que ninguém se sinta excluído ou ofendido pelo nome de uma gralha ou de um pisco, ressumam medo, subserviência e santimónia e são reveladores da atmosfera emocional que o wokismo instaurou. “Cuidado” é a palavra-chave para se sobreviver no espaço mediático do século XXI patrulhado pelos activistas woke, a versão ocidental, informal e digital da “polícia da moralidade” de alguns países islâmicos. Os wokes são (ainda) uma pequena minoria, mas são extraordinariamente activos, desabridos e insolentes e beneficiam do poderoso efeito amplificador das redes (ditas) sociais, pelo que todos temem tornar-se no seu próximo alvo. Como a “cotação” nas redes sociais é hoje o bem supremo, todos os “alvos”, aterrados com as consequências para a sua reputação de uma acusação de racismo, transfobia, homofobia ou misoginia, se apressam a capitular perante as acusações dos wokes, por mais tolas e frágeis que sejam. E cada uma destas capitulações serve para dar mais força ao wokismo e desencorajar a resistência dos “alvos” seguintes.

Pica-pau-bico-de-marfim (Campephilus principalis), uma espécie hoje considerada extinta, numa ilustração de The birds of America

O wokismo como motor da polarização da sociedade americanas

No capítulo “A nova ‘guerra de culturas’”, Braunstein dá conta de como alguns sectores da sociedade americana têm vindo a reagir aos avanços do wokismo, sobretudo na área da educação, gerando “uma ‘guerra cultural’ na política americana, que vai além das clivagens habituais entre democratas e republicanos” (pg. 174). Se é verdade que muitos americanos que se opõem aos excessos do wokismo não se identificam como republicanos, a verdade é que o Partido Republicano tem aproveitado a aceitação – ou, pelo menos, a simpatia – do Partido Democrata por vários aspectos da doutrina woke para assumir posições e tomar medidas de sinal contrário. Estas são, por vezes, tão obtusas, dogmáticas e ridículas como as dos wokes, fomentando assim a polarização da política americana, com as divergências entre os eleitos democratas e republicanos (nomeada mente no Congresso) a alargarem-se até ao ponto de porem em causa o funcionamento do Estado, ao mesmo tempo que, nas bases, o crescente afastamento entre eleitores democratas e republicanos dilacera famílias, incompatibiliza vizinhos e põe termo a velhas amizades.

O retrato das “guerras culturais” feito por Braunstein não é equilibrado, pois omite completamente a componente sectária e radical da reacção ao wokismo pela parte do Partido Republicano, sobretudo no que respeita à facção alt-right deste. Aliás, a fúria anti-woke que tomou conta dos republicanos radicais é tal que está a abrir graves clivagens dentro do Partido Republicano, entre a facção alt-right e os republicanos “moderados”, ainda que os republicanos “moderados” de hoje tenham posições e atitudes comparáveis às dos republicanos “conservadores” de há três ou quatro décadas, o que é sintomático do apreciável deslizamento para a direita sofrido pelo Partido Republicano.

Para fazer contraponto aos exemplos de desvarios woke apresentados por Braunstein, tome-se este comprovativo, entre muitas possíveis, do radicalismo que tomou conta do outro lado da barricada: a 25 de Outubro, após um laborioso, conflituoso e embaraçoso processo, a maioria republicana na Câmara dos Representantes cedeu à ala alt-right e elegeu como líder (e, logo, como terceira figura do Estado americano) Mike Johnson. Quando questionado sobre o que “pensa sobre todo e qualquer assunto”, Johnson respondeu “peguem numa Bíblia e leiam-na; é essa a minha mundividência, é nela que creio”. A crença parece ser literal, uma vez que Johnson, num podcast, elogiou o parque temático Ark Encounter, que recria a narrativa da Arca de Noé, afirmando que “aquilo que lemos na Bíblia são eventos históricos reais”. Além de ter trabalhado para a Answers in Genesis, a empresa que criou e gere o Ark Encounter, Johnson foi conselheiro jurídico principal da Alliance Defending Freedom, uma organização que almeja recuperar a “robusta teologia cristã dos séculos III, IV e V” e defende a criminalização de actos homossexuais entre adultos.

1 de Março de 2023: Mike Johnson (à direita) recebe o True Blue Award, galardão atribuído pelo Family Research Council, um think tank e grupo de lobbying evangélico que pugna pelos “valores familiares” e se opõe aos direitos LGBTQ+

Johnson assume-se como firme opositor dos direitos LGBTQ+ e tem assinado vários artigos de opinião em que 1) classifica as relações homossexuais como “inerentemente não-naturais” e um “estilo de vida perigoso”, 2) realça que “é muito claro que o ‘direito à sodomia’ não está previsto na Constituição”, 3) entende que legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo equivale a “perverter a ordem criada por Deus” e abre as portas para que também polígamos, pedófilos e zoófilos reivindiquem direitos análogos, e 4) adverte para o facto de “os peritos [?] preverem que o casamento homossexual é o lúgubre prenúncio do caos e da anarquia sexual que poderão fazer soçobrar até a mais robusta nação”. As asserções atrás transcritas, produzidas há uma vintena de anos, não são meros devaneios de juventude, já que o assassínio em massa em Lewiston, no Maine, a 25 de Outubro de 2023 (18 mortos, 13 feridos), suscitou a Johnson esta explicação: tal acto resultou de mudanças ocorridas na sociedade “no final dos anos 60, quando se inventaram coisas como legislação facilitadora do divórcio, a revolução sexual, o feminismo radical, e, em 1973, a legalização do aborto, ou seja o assassinato, aprovado pelo Estado, de crianças por nascer”, que geraram a “sociedade completamente amoral” em que vivemos. “Perguntam-me ‘como é possível que um jovem entre numa escola e comece a disparar sobre os seus colegas?’. É porque ensinámos a várias gerações de americanos que não existe bem e mal”.

O fervor anti-woke entre os republicanos não arregimentou apenas o cristão fundamentalista, também o morcão oportunista fez dele a sua bandeira. A ascensão do wokismo acabou por revelar-se útil a alguns políticos republicanos destituídos de carisma, substância ideológica e uma visão para a América, que, na falta de qualidades positivas capazes de seduzir o eleitorado, tentam afirmar-se pela negativa, estribando todo o seu programa e imagem pública na luta contra o wokismo. É o caso de Ron DeSantis, governador da Florida (onde desfruta de elevada taxa de aprovação) e o menos mal colocado dos republicanos que disputam com Donald Trump a nomeação como candidato às eleições presidenciais de 2024 (os eixos principais da cruzada anti-woke de DeSantis e das “guerras culturais” americanas foram tratados no capítulo “As ‘guerras culturais’ na América do século XXI” em Platão, Nietzsche e Mick Jagger: Entre guerras culturais e crises civilizacionais).

O retrato que DeSantis faz do Estado de que é governador no seu livro The courage to be free: Florida’s blueprint for America’s revival (2023) – um híbrido de manifesto eleitoral e autobiografia repulsivamente autolisonjeira – espelha bem a indigência intelectual e a visão maniqueísta de muitos militantes anti-woke: “Num mundo cada vez mais louco, a Florida é a testa-de-ponte da sanidade […] A Florida é a cidadela de liberdade num mundo enlouquecido […] A Florida é um reduto de sanidade […] onde a ideologia woke vai morrer”.

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Alunos expressam repúdio pela “teoria crítica da raça” (CRT) e apoio a Ron DeSantis numa conferência de imprensa/comício que antecedeu a assinatura pelo governador da Florida da Individual Freedom Bill (informalmente conhecida como Stop Woke Act), Hialeah Gardens, Florida, Abril de 2022

E se a “teoria crítica da raça” (CRT), cujo ensino DeSantis pretende banir das escolas da Florida, tem aspectos muito contestáveis – como a ideia de que, em vez de sermos “cegos” em relação à cor da pele, devemos antes “encarar e tratar os seres humanos de forma diferente em função da sua raça” (Braunstein, pg. 107), ou a de que a legislação e a sociedade do mundo ocidental estão impregnadas de “racismo sistémico” –, o programa de Estudos Sociais que DeSantis pretende impor, como alternativa à CRT, nas escolas do seu estado e que foi aprovado pela comissão estadual de educação (Florida Board of Education) em Julho de 2023, inclui aspectos não menos contestáveis, como sugerir que a escravatura a que os africanos foram sujeitos nos EUA não foi inteiramente má para eles, uma vez que lhes permitiu ganhar competências e aprender ofícios que acabaram por lhes ser úteis e proporcionar “benefícios pessoais”. Nesta linha de “raciocínio”, os neonazis alemães de hoje poderiam apontar que os 12 milhões de trabalhadores-escravos arregimentados pelo III Reich para o seu esforço de guerra também beneficiaram de formação profissional gratuita.

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Fevereiro de 2023: Manifestação de estudantes da Florida International University contra as medidas do governador Ron DeSantis no campo da educação, em particular as que envolvem questões raciais e de género

A reacção conservadora ao wokismo

A sociedade americana está hoje profundamente enredada em quezílias mesquinhas e intermináveis sobre quem pode usar determinadas casas de banho nas escolas e universidades e sobre o dever ou a obrigatoriedade de as pessoas transgénero serem tratadas pelos “pronomes” que escolheram para si. Estudantes universitários movimentam-se para impedir a realização de palestras por oradores cujas ideias divirjam das suas, ainda que nada nem ninguém os obrigue a assistir. Associações de pais, instituições do sistema educativo e políticos de convicções conservadoras tentam erradicar das bibliotecas e programas escolares livros (geralmente recentes) considerados “impróprios” por, supostamente, promoverem a homossexualidade e a mudança de sexo, enquanto activistas woke tentam suprimir livros (geralmente antigos) por, supostamente, estarem impregnados de ideias racistas, colonialistas, imperialistas, sexistas, homofóbicas ou transfóbicas, e pessoas de variadas orientações políticas tentam expurgar (ou, pelo menos, amputar) livros que incluam passagens cuja natureza violenta ou sexual poderão (julgam elas) induzir traumas duradouros nos jovens leitores (ainda que muitas das louras cabecinhas contabilizem já muitos milhares de horas passadas a chacinar gente em vídeojogos e a ver pornografia na Internet). E, em torno destas disputas extenuantes, os dois lados trocam acusações mútuas de censura, doutrinação dos jovens e limitação da liberdade de expressão. O uso sistemático de estratégias de silenciamento do adversário é conhecida, no âmbito das “guerras culturais” como “cultura de cancelamento” (“cancel culture”), uma estratégia desenvolvida pelos movimentos MeToo e Black Lives Matter, com o fito de, recorrendo essencialmente às redes sociais, expor, humilhar e boicotar figuras poderosas que fizessem ou dissessem algo entendido como sexista ou racista. Porém a estratégia tem sido amplamente usada também pelos conservadores, ainda que estes gostem, ao mesmo tempo, de posar como vítimas da “cultura de cancelamento” dos liberais (no sentido americano deste termo).

A designação “guerra cultural” é um termo demasiado generoso para descrever a disputa em curso nos EUA entre wokes e anti-wokes – está menos próximo de uma “guerra” do que da modalidade “desportiva” conhecida como “luta na lama” (“mud wrestling”). A cada imbecilidade lançada por uma tribo, responde a outra com uma imbecilidade de sinal contrário: de um lado temos activistas woke a apelar ao boicote de Avatar e Avatar 2 por serem filmes “racistas” (os Na’vi serão equivalentes aos nativos americanos) e por o realizador James Cameron ter cometido “apropriação cultural” (a fim de satisfazer o “complexo de salvador do homem branco”, segundo Yuè Begay, um artista Navajo). Do outro, há rednecks a apelar ao boicote da cerveja Bud Light e de todos os produtos da multinacional que a comercializa, a Anheuser-Busch, a enviar ameaças de bomba para as fábricas da empresa e a filmar-se a disparar com armas automáticas contra embalagens da dita cerveja ou a esmagá-las sob as rodas das suas pickups, tudo isto por, em Abril de 2023, a marca ter recorrido a Dylan Mulvaney, uma mulher transgénero e uma vedeta das redes sociais, para promover a cerveja num vídeo no TikTok.

[O anúncio à Bud Light por Dylan Mulvaney:]

Todas estas desinteligências têm por palco quase exclusivo as redes sociais e nunca ganhariam a expressão empolada que têm sem elas: Mulvaney foi escolhida para promover a Bud Light por ter 10 milhões de seguidores no TikTok e o vídeo de Kid Rock a metralhar latas de Bud Light teve 11 milhões de visualizações em apenas um mês. Não é fácil perceber se as receitas dos filmes de Cameron terão sido afectadas pelo boicote, mas como Avatar (2009) e Avatar: The way of the water (2022) geraram 2.923 e 2.320 milhões de dólares, respectivamente (o que faz deles o 1.º e o 3.º filme com maiores receitas da história), é de crer que o efeito terá sido negligenciável. Já as vendas da Bud Light nos EUA caíram 11 a 26% no mês seguinte à difusão do anúncio de Mulvaney, o que a fez perder o 1.º lugar no top das marcas de cerveja mais vendidas no país, que detinha ininterruptamente há 20 anos; no mesmo período, a cotação em bolsa da Anheuser-Busch caiu 20%.

[A resposta de Kid Rock ao anúncio de Dylan Mulvaney:]

Os conservadores americanos já cunharam a expressão “go woke, go broke” (algo como “se te tornas woke, vais à falência”), que apela ao boicote de produtos e serviços de empresas que perfilham o ideário woke, embora nem sempre seja possível perceber qual possa ser esse ideário, já que, na presente acepção conservadora, o termo woke abrange tudo o que tenha a ver com a promoção de grupos historicamente oprimidos, desfavorecidos ou preteridos ou que vá ao arrepio da mundividência conservadora. O movimento “go woke, go broke”, que pode ser visto como reacção conservadora ao “capitalismo woke”, tem tido resultados variáveis: marcou pontos no mencionado caso Bud Light e também no caso Target, quando, em Maio de 2023, a megacadeia de retalho Target cedeu às pressões e ameaças dos conservadores nas redes sociais relativas a artigos da “colecção Pride” comercializados pela empresa no mês do Orgulho Gay (recuo que, por sua vez, valeu à Target, críticas vindas de organizações LGBTQ+). Porém, o boicote decretado pelo movimento “go woke, go broke” à United Airlines por esta companhia de aviação ter anunciado que iria incrementar a proporção de mulheres e afro-americanos nas equipas de pilotagem foi um fiasco. Do outro lado da barricada, o boicote de 2020 aos produtos da Goya Foods – lançado (entre outras personalidades) por Alexandria Ocasio-Cortez, da franja woke do Partido Democrata, em reacção aos elogios do CEO desta empresa do ramo alimentar ao então presidente Donald Trump – também não produziu efeitos.

A conjugação de anti-wokismo primário, estultícia e falta de sentido do ridículo levou Tucker Carlson (quando era um dos mais populares comentadores da Fox News e e toda a atelevisão americana) a criticar repetida e veementemente a rendição da marca de chocolate M&M ao ideário woke, por ter (aos seus olhos) alterado a aparência de duas das suas mascotes publicitárias de forma a retirar-lhes “sensualidade” e torná-la menos atraentes (ver capítulo “As ‘guerras culturais’ na América do século XXI” em Platão, Nietzsche e Mick Jagger: Entre guerras culturais e crises civilizacionais). Esta denúncia da (suposta) mancomunação da indústria de confeitaria americana com o wokismo foi secundada em Outubro passado pelo Consumers’ Research (que se apresenta como um grupo de defesa do consumidor contra produtos nocivos), que lançou um “alerta woke” sobre “três fabricantes de guloseimas woke a evitar neste Halloween”, visando as marcas M&M, Kit Kat e Skittles por apoiarem (ou terem algum tipo de parceria) com organizações LGBTQ+.

Skittles: Estranha-se que uma guloseima que exibe sem rebuço as cores do arco-íris desde a década de 1970 só agora tenha suscitado o escrutínio dos cruzados anti-woke. E o que esperará a direita radical deste lado do Atlântico para denunciar os Smarties como ameaça à “tradição civilizacional europeia e ocidental”?

A contabilidade de ganhos e perdas para cada um dos lados nas batalhas das “guerras culturais” é espúria, já que nelas não há vencedores e a lista de vítimas, directas ou colaterais, não pára de crescer. A célebre frase “A primeira baixa na guerra é a verdade” (que terá sido assim formulada pela primeira vez em 1918, pelo senador americano Hiram Warren Johnson, ainda que tenha antecedentes similares) também é válida para as “guerras culturais”: se Trump e os seus acólitos e fãs criaram o conceito de “factos alternativos” (ver capítulo “A cada um a sua verdade” em George Santos, a verdade da mentira e a política no século XXI), na esquerda americana há quem tente impor o conceito de “verdade emocional”. Recentemente, o comediante americano de origem indiana e fé islâmica Hasan Minhaj admitiu (após ter sido confrontado com uma investigação da revista The New Yorker) que “embelezara” ou fabricara episódios da sua vida, de forma a apresentar-se publicamente como vítima de discriminação religiosa e racial, e justificou-se alegando que, embora tais episódios não tivessem realmente ocorrido, eram uma “verdade emocional”. Esta desculpa levou Bill Maher a denunciar a “verdade emocional” no programa Real Time de 13.10.2023: “Esta ideia perigosa que ganhou raízes na América de que algo é verdade simplesmente porque nós queremos acreditar que é verdade tem de acabar. […] Quando a direita faz isto, dizemos – com toda a razão – que são ‘teorias conspirativas’. Quando é a esquerda a fazê-lo, dizemos que é ‘verdade emocional’”. A comparação de Maher não é justa, pois assenta numa falsa simetria: na verdade, entre os congressistas, governantes, ex-governantes líderes republicanos são muitos os que subscrevem teorias conspirativas, enquanto entre os seus homólogos democratas raramente se invoca a “verdade emocional”. Todavia a ideia central de Maher não deixa de ser válida: uma sociedade em que cada um está absolutamente convicto de ser o único detentor da verdade está condenada à desagregação.

A “traição” da Disney

Braunstein dedica meia dúzia de linhas (pg. 175-76) ao tortuoso e acirrado conflito que tem vindo a opor Ron DeSantis à Walt Disney Company, empresa que, como outras da indústria de conteúdos americana, 1) tem veiculado em alguns dos seus filmes recentes elementos alinhados com a doutrina woke; 2) tem expressado publicamente a sua desaprovação quanto à cruzada anti-woke de DeSantis; e 3) subscreve a teoria de género e a teoria crítica da raça (segundo Braunstein, pg. 173).

O que é irónico na zizânia Disney-DeSantis é que a Disney foi, durante boa parte do século XX, um dos mais activos e eficazes promotores do ideário conservador americano, produzindo filmes e bandas desenhadas com personagens assexuadas e castas, com divisões rígidas entre os papéis tradicionais masculinos e femininos, exaltando os “valores familiares” e o “American way of life” e difundindo uma visão estereotipada, superficial e, por vezes, sobranceira das culturas e etnias não-ocidentais – enfim, com tudo para agradar ao Partido Republicano. O próprio Walt Disney assumiu publicamente esse tipo de posicionamento e em 1946 foi um dos fundadores da Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals, entidade que tinha por propósito fazer face à “vaga ascendente do comunismo, fascismo e crenças similares, que procuram, por meios subversivos, minar e condicionar o [American Way of Life]” e de que fizeram parte figuras como John Wayne, Gary Cooper, Clark Gable, John Ford, Ronald Reagan, Cecil B. DeMille, Ginger Rogers e Ayn Rand.

Walt Disney, o irmão Roy e o governador da Florida, Haydon Burns, na conferência de imprensa em que foi anunciado o plano para construir o Walt Disney World em Orlando, Novembro de 1965

Nesse tempo, a Disney foi repetidas vezes acusada por pensadores de esquerda de, sob a fachada de um inócuo entretenimento para a família, promover o imperialismo cultural, o capitalismo e os valores conservadores americanos – uma das mais célebres, ferozes e descabeladas veio do ensaísta argentino Ariel Dorfman e do sociólogo belga Armand Mattelart, que, em 1971, publicaram “Para leer al Pato Donald”, que denuncia os produtos da Disney como propaganda do capitalismo, do conservadorismo e do imperialismo. Se Ron DeSantis (n. 1978) ocupasse em 1971 o cargo de governador da Florida, é bem provável que ocupasse lugar de honra, rodeado pela esposa e pelos filhos, na inauguração do Walt Disney World, em Orlando, e aproveitasse a ocasião para saudar a Disney como “reduto de sanidade e sólidos valores morais num mundo ameaçado pelos tenebrosos delírios do marxismo” e para atacar os esquerdistas que criticavam a Disney.

O Castelo de Cinderela, Walt Disney World, Orlando, Florida

Porém, na década de 1990, a Walt Disney Company foi das primeiras mega-empresas de conteúdos a promover a inclusão LGBT, quer nas histórias narradas nos écrans quer no tratamento dispensado aos seus empregados, o que suscitou enérgicas reacções pela parte das forças conservadoras, como se constata desta notícias publicada no Los Angeles Times de 15 de Agosto de 1996: “A Disney é alvo de um segundo boicote pela igreja: Na passada quarta-feira, os conservadores religiosos prosseguiram a sua cruzada contra a Walt Disney Company, com as Assembleias de Deus a exortar os seus 2.5 milhões de membros a boicotar o colosso do entretenimento por ‘ter abandonado o seu compromisso com os sólidos valores morais’”.

O encarniçamento com que Ron DeSantis tem combatido a Walt Disney Company pode explicar-se em parte por o governador da Florida estar consciente de que alguém tão baço e destituído de carisma quanto ele precisa desesperadamente de erguer uma bandeira espampanante e armar reboliço a fim de ter alguma hipótese de competir com uma figura tão histriónica e tão popular entre o eleitorado republicano quanto Donald Trump na luta pela nomeação a candidato do partido. Mas DeSantis é apenas a figura mais visível numa vasta campanha anti-Disney, em que militam vários nomes sonantes da direita radical americana, como sejam o comentador Tucker Carlson, que acusou a Disney de “ter uma agenda sexual para as crianças de seis anos”, ou Jesse Watters, outro dos comentadores-estrela da Fox News, que classificou os parques de diversões da Disney como “os lugares mais woke do planeta”.

Tucker Carlson, um dos mais notórios e veementes críticos da Walt Disney Company

É provável que a presente obsessão republicana com a Disney seja alimentada pela decepção e raiva de ver um bastião tradicional do conservadorismo americano passar-se para o campo “inimigo”.