Marcelo dormiu “pouquinho” e só conseguiu esticar as pernas no vagão-quarto por pouco tempo no início e no fim da viagem de dez horas da fronteira polaca até Kiev. A visita do Presidente português a Kiev teve o roteiro standard desenhado pelo Governo ucraniano para líderes políticos — Bucha, Irpin, centro de Kiev — mas o português deu-lhe um toque pessoal: tentou uma ida ao mercado, agachou-se numa trincheira e fez algumas traquinices diplomáticas. O primeiro capítulo de ‘Marcelo na Ucrânia’ teve promessas, exageros e charme ao anfitrião — que lhe fez um reparo bem-humorado.
Os exageros. Um ultimato à Rússia, um Eurostat empolado e a NATO
O Presidente da República começou por dizer que tinha sido uma escolha da diplomacia portuguesa estar presente naquela que é conhecida como a cimeira dos amigos da Crimeia. A representar o Estado português, Marcelo tornou-se protagonista acidental quando Volodymyr Zelensky se preparava para falar e não conseguia encontrar o canal em inglês no aparelho de tradução. O presidente da Ucrânia pediu desculpa à audiência e disse: “Desculpem, tenho de ajudar o nosso amigo. Só um segundo”.
Quando Zelensky começou à procura do canal, Marcelo Rebelo de Sousa disse: “Não está a funcionar”. Ao que o Presidente ucraniano retorquiu de imediato: “Está a funcionar, sim. Na Ucrânia, tudo funciona”.
O Presidente português sorria, mas faria Zelensky ainda mais feliz com um discurso mais-do-que-duro para a Rússia. Não no que disse, mas nos termos. O chefe de Estado português chega a dizer na primeira pessoa do plural: “Exortamos a Rússia a retirar imediatamente as suas tropas de todo o território ucraniano”. A posição portuguesa é esta, a forma é que é mais dura do que o habitual. Zelensky não escondeu a satisfação. Minutos depois das declarações de ambos, as sirenes soaram em Kiev por suspeitas de lançamentos de mísseis do Mar Negro, onde está a península da Crimeia.
Em matéria de exageros presidenciais, minutos após sair do comboio, numa declaração em inglês após uma pergunta de uma jornalista ucraniana, Marcelo Rebelo de Sousa faria uma simplificação da posição portuguesa quanto à adesão de Kiev à NATO. A posição de Portugal é que esta deve acontecer “quando as condições assim permitirem”, mas Marcelo não colocou essa condição: “Vocês [ucranianos] têm um futuro também em conjunto com a NATO, para criarmos um cordão de segurança para que invasões como esta não voltem a ocorrer”.
Um terceiro momento de exagero redundou mesmo numa falta de rigor. O Presidente da República disse que, “segundo o Eurostat, Portugal é o país europeu em que a percentagem da população que está ao lado da Ucrânia é a mais elevada. Mais elevada do que nos países de Leste vizinhos e do que nos países bálticos”. Ora, é verdade que Portugal é dos países europeus mais favoráveis ao apoio à Ucrânia, mas não é o primeiro nesse ranking.
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De acordo com o último Eurobarómetro, de junho, que o Observador consultou (ver gráfico em baixo), à pergunta sobre se aprova o apoio dado pela União Europeia à Ucrânia, a Suécia (97%), a Finlândia (96%) e a Holanda (95%) surgem à frente de Portugal.
As traquinices. Os políticos atrasados e as trincheiras
Voltando ao terreno, Marcelo cometeu outra inconfidência, pouco diplomática. À chegada a Kiev, o Presidente da República disse que houve “alguns atrasos”, sugerindo que o “Presidente da Lituânia e o primeiro-ministro da Finlândia” foram responsáveis pelo arranque mais tardio do comboio que o levou da Polónia à capital ucraniana. E ainda atribuiu a esse detalhe o facto de ter dormido menos: “O comboio veio a uma velocidade maior do que o normal” e tornou o ambiente menos friendly para um sono descansado. Ainda assim, admitiu que o dormir pouco era mais culpa de uma definição de origem: “Eu já durmo pouco… começar a dormir às 22h00 ou 23h00 de Lisboa é uma coisa impensável para mim”.
O Presidente lituano ainda contaria com mais uma traquinice do Presidente português. No fim da cimeira da Crimeia, Marcelo Rebelo de Sousa comentava com os jornalistas que Volodymyr Zelensky esteve durante as várias horas que durou a reunião a conversar com ele e a fazer comentários laterais. Mas acrescentaria: “Mais comigo do que com o Presidente lituano, que é mais circunspecto“.
A maior fuga à pose de Estado já valeu um meme nas redes sociais. Numa visita matinal à aldeia de Moshchun, perto de Bucha, Marcelo não se limitou a colocar uma coroa de flores e a estar presente numa cerimónia de Homenagem aos Defensores da Ucrânia. Perante as trincheiras, onde os soldados ucranianos resistiram nos primeiros e difíceis dias da invasão russa, Marcelo quis fazer o percurso de uma trincheira por dentro, o que obrigou um dos seus seguranças a fazer toda a passagem com uma mão por cima da cabeça do chefe de Estado para evitar uma ferida presidencial. Durante a visita, a vice-governadora para a região de Kiev, Lesya Arkadievna, comentaria à Agência Lusa que já ali levou muitos chefes de Estado, mas que este foi o primeiro a descer à trincheira.
Promessas. Ajuda nas investigações, a desminagem e os elogios de Zelensky
Logo na primeira visita que fez, ao memorial das vítimas em Bucha, Marcelo Rebelo de Sousa ouviu um pedido do procurador-geral da Ucrânia, Andriy Kostin, para que a Procuradoria-Geral da República portuguesa pudesse dar ajuda forense para investigar os crimes de guerra cometidos em Bucha e noutras cidades ucranianas. Marcelo Rebelo de Sousa disse que era “possível essa ajuda” e elogiou a PGR portuguesa. O ministro João Gomes Cravinho, que ali estava ao lado, secundou o Presidente e confirmou que é “possível” dar esse tipo de ajuda.
Ainda antes disso, mal colocou o pé fora do comboio, o Presidente tinha sido questionado sobre o pedido do ministro da Defesa da Ucrânia, Oleksii Reznikov, para que a Marinha portuguesa participasse na desminagem no Mar Negro e no Mar de Azov. Marcelo Rebelo de Sousa admitiu essa possibilidade. “Porque não? Essa é uma questão tratada pela ministra da Defesa e o ministro dos Negócios Estrangeiros sob orientação do primeiro-ministro, mas estamos a fazer tanta coisa no domínio militar para colaborar naquilo que é a contra-ofensiva ucraniana, porque não também a Marinha?”. Mais uma promessa.
Já o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, não quis especificar na conferência de imprensa que se seguiu à cimeira da Crimeia qual o apoio de Portugal, para “não dar informações à Rússia”. Ainda assim, Zelensky disse que o apoio de Portugal é “relevante” e que sem “parceiros” como Portugal a luta da Ucrânia seria “mais difícil”. O Presidente ucraniano chegou a dizer que Portugal tem uma “voz política importante” e lembra o apoio incondicional de Portugal nas Nações Unidas (onde o secretário-geral é, curiosamente, um português).
Zelensky fez ainda elogios a Marcelo Rebelo de Sousa ao dizer que estava “contente” pelas declarações do português na cimeira (em que defendeu incondicionalmente a posição da Ucrânia sobre a Crimeia), mas também “pela primeira visita do Presidente português a Kiev”. Marcelo, que já falou sete vezes ao longo desta quarta-feira (e é previsível que ainda o volte a fazer), retorquiu que gosta do estilo de Zelensky e fez uma espécie de pré-convite para que viaje até Portugal. “Provavelmente, é um dos assuntos tratados amanhã”, antecipou Marcelo.
Quanto a sustos próprios de um país em guerra, Marcelo Rebelo de Sousa previa deslocar-se a um mercado, mas tal não foi possível porque as sirenes tocaram em Kiev. O próprio admitiu: “Foi uma situação que nunca tinha vivido”. Por isto, teve de ficar retido no edifício em que estava. O que levou a nova inovação: decidiu sentar-se na zona dos jornalistas e assistiu a toda a conferência de Voldymyr Zelensky.