Mesmo ao lado do auditório, no centro de exposições de Santarém onde decorre a Convenção do Chega, fica a sala onde, em plena campanha para as legislativas, António Costa deixou de pedir publicamente a maioria absoluta — uma tentativa de não afugentar o eleitorado que parecia estar a fugir para o PSD. Um ano depois, na porta ao lado, o Chega tenta enfiar o seu discurso mais radical na gaveta para não assustar potenciais eleitores, na esperança de saltar para um novo patamar eleitoral e alcançar o grande objetivo: ultrapassar o PSD.
Dois opostos, André Ventura e António Costa, e a mesma estratégia para conquistar o que se quer sem dizer o que pode intimidar — e já resultou para um deles. De resto, pelo palco do Chega passaram mais avisos e ataques ao PSD do que ao PS, numa dose agridoce: ora porque faz pouca oposição e não serve; ora porque se ganhar eleições tem de disponibilizar lugares no Governo para o Chega.
É no equilíbrio entre as duas ideias, que o partido de André Ventura segue nesta fase, com o tiro de partida a ser dado pelo próprio líder. Na sua intervenção de abertura dos trabalhos, quando definiu a meta que se segue, Ventura foi claro: “Se em 2019 tínhamos de estar preparados para nos afirmar, se em 2021 tínhamos de estar preparados para nos implantar, de 2023 para a frente, temos de estar preparados para governar. Os números não mentem e eles são a expressão maior de um país que quer mudança”.
É aqui que entra o PSD. O Chega quer governar e vê duas maneiras de lá chegar. A primeira é através do objetivo que até Ventura admite ser ambicioso — embora não o descarte — de tomar o lugar dos sociais-democratas como o partido líder da oposição, a força mais votada à direita. A segunda forma de chegar ao poder é por via indireta: o PSD forma um governo de direita e vai ter de dar lugares ao Chega. É esse o preço que Ventura e todos os dirigentes que intervieram durante a Convenção definiram — e é inegociável.
Ventura nas entrelinhas. Uma nova meta, um novo inimigo e um ex-amigo
Passo um. Suavizar discurso, mas ocupar a rua
Enquanto esse dia não chega, Ventura vai construindo a estratégia de encostar o mais possível ao PSD, embalado pela sondagem mais recente da TVI/CNN Portugal que coloca o partido com 14,3% nas intenções de voto em legislativas. Para tal, em primeiro lugar, o caminho do líder do Chega passa por uma certa suavização do discurso e na forma de estar.
Na manhã de sábado, do púlpito da Convenção e já depois de ter anunciado que ia furar os três minutos de limite de tempo para as intervenções, o vice-presidente António Tânger Corrêa pedia aos militantes “assertividade” mas não “agressividade” nas “conversas privadas”. Um recado deixado numa intervenção muito aplaudida pelo líder — sentado mesmo ali atrás na Mesa da Convenção.
O que é certo é que, nesta Convenção, o discurso mais extremista sobre temas como o nacionalismo, o racismo, a xenofobia ou os imigrantes esteve longe de ser maioritário nas várias intervenções. Não deixou de existir, mas esteve longe de ter o relevo de outras convenções. O tempo agora é outro: importa agarrar bandeiras e causas sociais e conquistar as ruas.
“Temos de sair do sofá, da lareira e do aconchego e ir para a rua”, desafiou António Tânger Corrêa. Mais tarde, Ventura iria mais longe. “Não somos o tradicional partido português. O nosso objetivo é ganhar a rua à esquerda. Conquistaremos as ruas deste país. Venceremos no sindicalismo. As ruas não são do PCP, nem do Bloco de Esquerda. As ruas serão do terceiro maior partido de Portugal”, disse o líder do Chega, já depois de ter defendido que o Chega era “a primeira direita que não teve medo de quebrar essa barreira”.
Pacheco Amorim: “Ou estamos no Conselho de Ministros, ou não estamos”
Passo dois. Provar que o PSD é incapaz de liderar oposição
Numa outra linha paralela a esta, o Chega vai tentando diminuir o poder efetivo do PSD. Seja pela referência à ausência social-democrata dos palcos de protesto contra o Governo, seja pela oposição “tíbia” de Luís Montenegro ao PS, como a classificou Pedro Frazão, em entrevista ao Observador.
André Ventura, aliás, marcou o ritmo logo na intervenção inicial, quando colou os sociais-democratas ao PS numa “teia de cumplicidade” enquanto falava na luta contra a corrupção e das hesitações do PSD nesta matéria. Isto sempre em comparação com a atitude do Chega, em casos tão diferentes como o de Alexandra Reis, o do Hospital Militar de Belém, do Banco de Portugal e até mesmo no caso do altar-palco da Jornada Mundial da Juventude.
Para sintetizar a ideia, o líder do Chega chegou a dizer, nesta senda da medição de forças com o PSD, que “um deputado do Chega vale por cada 20 do PSD”. Mais adiante, Ventura arriscou mesmo dizer que “as pessoas não acreditam que Luís Montenegro vá resolver os problemas do país”.
As críticas ao PSD não seriam um exclusivo de André Ventura, pelo contrário. Entre militantes mais ou menos anónimos, coube a Diogo Pacheco Amorim resumir o ataque a Montenegro, um líder com “menos garra” do que o que se esperava na oposição
“A sensação que temos é que há qualquer coisa que falhou. Havia uma grande esperança numa oposição mais dura e eficaz com Montenegro e houve uma quebra, um anticlímax. Abre-se para nós uma janela de oportunidade”, admitiu em entrevista ao Observador, a partir da 5.ª Convenção do Chega.
Ao “anticlímax” de que falou Pacheco Amorim, à “tibieza” de Montenegro, como lhe chamou Pedro Frazão, Pedro Pinto, líder parlamentar do Chega, juntou-lhe outra característica: falta de coragem: “Percebe-se claramente que o esforço [do líder do PSD] não estar a ser conseguido. Para sermos líder de um partido supostamente de direita, temos de ter a coragem para quebrar as barreiras. E Montenegro não tem tido coragem para quebrar barreiras, como se viu na questão das moções de censura”.
A crítica ao PSD colou junto dos militantes do Chega. Este sábado, no púlpito da Convenção, ouvia-se que PS e PSD eram “duas faces da mesma moedas” (Luís Matias, do Chega de Lisboa) ou que o PSD está “sempre indeciso a medir as palavras, para não comprometer os seus interesses” (João Condesso, também do Chega de Lisboa). André Ventura juntaria todas estas críticas à falta de comprometimento do PSD numa imagem: à direita, também se desaparece quando se tem “medo de defender causas“. “Talvez por isso tenham desaparecido”, atirou Ventura, referindo-se indiretamente ao CDS.
“Foi um erro não entrar no Governo nos Açores e não se voltará a cometer esse erro”
Passo três. No Governo e com cinco ou seis pastas
De passo em passo até a um objetivo final que é assumidamente difícil, como reconheceu Ventura: chegar ao lugar de líder da oposição, hoje ocupado pelo PSD. Para tal, André Ventura prometeu dar tudo, até “sangue, suor e lágrimas” na conquista do grande desígnio que é “ultrapassar o PSD” num futuro próximo. Até lá, o plano é sempre chegar ao Governo — e isso implica uma aliança com PSD.
Se ficar à frente, não há discussão. Se ficar atrás do PSD, o plano não só está traçado como a direção de Ventura o tinha articulado para divulgar nesta Convenção. O líder foi o primeiro a avisar que não está para acordos: “A decisão será sempre vossa, mas, na minha perspetiva, o nosso acordo é com o povo português que se sente enganado há anos. É o único acordo que temos de fazer”.
Embalado pelas sondagens mais recentes, Ventura diz que o PSD não formará Governo sem o Chega e impõe já a condição: quer ir para o Governo e com pastas. “Queremos ser governo, não estamos dispostos a geringonças de direita em Portugal porque nunca funcionaram e connosco nunca vão funcionar”, repetiu o líder do Chega.
É uma evolução no discurso de Ventura, que foi sempre oscilando entre exigir lugares no Governo e admitir alianças sem pastas ministeriais. Agora, acreditando nas palavras de Ventura e demais destacados dirigentes do Chega, não há dúvidas: o partido só viabilizará um executivo do PSD se tiver lugar no Conselho de Ministros.
Aliás, Ventura não foi o único a dizê-lo. Em entrevista ao Observador, Pedro Frazão defendeu que o PSD está obrigado a ceder “entre cinco e seis pastas” ao Chega. “Não é possível apoiar um Governo de direita sem [o Chega] ter um lugar no Executivo. Queremos Agricultura, Defesa, Administração Interna e Justiça”, enumerou.
Também no Observador, Diogo Pacheco Amorim, grande ideólogo do Chega, foi taxativo: “Ou não há Governo ou há Governo com o Chega. Não haverá outra hipótese”. “Não nos venderemos”, concordou Pedro Pinto, líder parlamentar do Chega.
A lição dos Açores — onde a aliança com o Governo liderado pelo PSD já conheceu melhores dias — ficou aprendida e o próprio deputado regional do partido levou ao palco a experiência do terreno. “Esta coisa de levar meninos ao colo e de embalar meninos nunca foi para mim e não é para o Chega”, resumiu.
A admissão do “erro” nos Açores passou por vários discursos, como o de Pedro Frazão ou o de Pedro Pinto. E ficou claro que não há abertura por parte do Chega para negociar acordos de incidência parlamentar com o PSD. Nem mesmo em Regionais — o líder parlamentar afirmou que o Chega não estará disponível para entrar “numa solução governativa sem entrar no governo madeirense”.
Resta saber o que fará o PSD quando o momento chegar — ou se chegar. Apesar dos ataques a Montenegro, houve alguns elogios (tímidos e sempre com a intenção de daí retirar dividendos) à aparente abertura do líder social-democrata para possíveis acordos. Pedro Frazão, por exemplo, notou que agora há “maior permeabilidade” ao Chega do que havia no PSD de Rui Rio. Este domingo, na sessão de encerramento da Convenção, estará a representar o PSD Miguel Pinto Luz, vice que, nas últimas diretas contra Montenegro e Rio, em 2019, foi o único candidato a assumir a possibilidade de “uma aliança com o Chega”.
Pedro Frazão fala em “liderança tíbia” de Montenegro e define: “Queremos quatro a seis ministérios”