“Os sonhos de marijuana e música rock que atraíram 300 mil fãs e hippies para as Catskills pouco mais sanidade tinham do que os instintos que levam os lemingues a marchar rumo à própria morte no mar. E acabaram num pesadelo de lama e estagnação que paralisou o condado de Sullivan durante um fim de semana inteiro. Que tipo de cultura é esta que é capaz de produzir uma tão colossal confusão? (…) Pais, professores e, no fundo, todos os adultos que ajudaram a criar a sociedade contra a qual estes jovens estão a rebelar-se de forma tão febril têm de aceitar a sua quota parte de responsabilidade neste episódio ultrajante. É difícil acreditar que erva, ácidos e outras drogas ilegais possam ter sido tão livremente trocadas e tomadas à escala reportada por testemunhas credíveis. Os organizadores deste evento, que aparentemente não tiveram a menor preocupação pelo caos que iriam provocar, devem ser responsabilizados por esta má gestão.”
Quando este editorial foi publicado, na manhã de segunda-feira, 18 de agosto de 1969, Jimi Hendrix ainda nem sequer tinha subido ao palco do festival que há exatamente 50 anos prometeu “3 dias de paz e música” mas acabou por oferecer quase quatro, graças a atrasos, engarrafamentos, invasões, chuvas e encores.
Pouco passava das 11h quando o guitarrista, que um ano depois fundaria à força o tristemente famoso clube dos 27, fechou o festival de Woodstock com “Hey Joe”, já a maior parte da multidão — a versão mais consensual aponta para que mais de 400 mil pessoas por lá tenham passado — tinha dispersado.
Nesse dia, no New York Times, que um ano antes até tinha sido o primeiro jornal generalista americano a contratar um crítico de rock, o festival teve direito a seis páginas de cobertura — incluindo a primeira. Mas pouco se escreveu sobre música e o Woodstock foi essencialmente descrito como um festim de drogas e lama que ainda assim, e não obstante 75 pessoas terem sido detidas por posse de substâncias ilegais e as vedações que delimitavam o recinto terem acabado no chão, juntou 300 mil jovens pacifistas e “bem comportados” num ambiente de entreajuda e amor, onde até um homem nu, que subiu ao palco entre concertos, foi aplaudido com entusiasmo.
Apesar de inicialmente ter sido destacado apenas um jornalista para cobrir o Woodstock Music and Arts Fair (assim se chamou oficialmente o evento), numa quinta na zona de Bethel, uma pequena aldeia do estado de Nova Iorque a cerca de 160 quilómetros de Manhattan, rapidamente se percebeu no New York Times que aquele não ia ser “só mais um festival”.
Assim que na sexta-feira 15 de agosto, o primeiro dia do evento, o repórter Barnard L. Collier se deparou com as centenas de milhares de pessoas que primeiro entupiram as estradas com filas de quilómetros e depois optaram por abandonar os carros para seguirem caminho a pé até à propriedade de Max Yasgur, (o temerário que depois de tantos recusarem aceitou acolher o festival), o editor de cultura do jornal soube que tinha de mandar mais gente. Na altura, até o redator principal de política, que andava em reportagem pela zona, a acompanhar a campanha do então mayor de Nova Iorque junto do eleitorado judeu em férias, foi arregimentado para a task force — eis quão importante foi para a imprensa americana o festival de Woodstock.
224 palavras, 1425 caracteres
Antes, durante e depois do festival, só no New York Times, foram publicadas dezenas de notícias sobre aquele que ainda hoje é o maior festival de música de todos os tempos, que juntou nomes grandes e em crescimento como Grateful Dead, Jefferson Airplane, The Who, Creedence Clearwater Revival, Crosby, Stills Nash & Young, Janis Joplin, Joan Baez, Joe Cocker e Santana. Os relatos sobre a multidão de jovens que se juntou à chuva para ouvir música, gritar contra a guerra e pregar o amor ecoaram na restante imprensa internacional e correram o mundo inteiro. Ou praticamente o mundo inteiro: em Portugal, foi quase como se o festival nunca tivesse existido.
Entre 15 e 31 de agosto, sobre o assunto, nos sete jornais que o Observador analisou (Diário de Notícias, Diário de Lisboa, Diário da Manhã, Diário Popular, República, Século e Capital) foram publicadas no total três notícias e uma foto-legenda — “A caminho do festival «hippy» de Aquarian Rock, nos Estados Unidos. Cerca de 300 mil jovens participaram no encontro”, escreveu o Diário Popular a 22 de agosto de 1969, na página semanalmente dedicada aos tops de música internacional, a acompanhar uma fotografia particularmente anódina, que tanto podia ter sido captada em Woodstock como num terminal de autocarros em qualquer parte do mundo. E nem mais uma palavra a contextualizar o assunto.
Os três textos publicados — no Diário de Lisboa, na Capital e no Século — todos breves, terão sido compostos a partir do mesmo take de agência e, ao contrário do que se poderia esperar, num Portugal com Marcello Caetano em vez de Salazar mas em pleno Estado Novo, no oitavo de 13 anos de guerra do Ultramar, não têm um tom acintoso nem reprovador como o editorial do New York Times. Em vez disso sublinham, não deixando de referir o uso de drogas e as duas mortes declaradas no recinto, a forma como o festival decorreu de forma pacífica e ordeira — sem qualquer tipo de referência a lemas hippies como sexo, drogas e rock and roll ou make love not war.
Apesar do excesso de vírgulas, a do Século é a descrição mais vívida. Por muito que seja também a mais longa, vale a pena a transcrição: “No encontro da música «Pop» desta pequena localidade do Estado de Nova York, de 3000 habitantes; tudo (ou quase) se passou bem, apesar da presença de 400 000 jovens vindos dos locais mais diversos e vestidos das mais diversas maneiras. A chuva torrencial, que transformou no sábado, à noite, a vasta esplanada do festival num enorme mar de lama, onde as pessoas se enterravam até aos joelhos, deve ter arrefecido os ânimos, mas não estragou o bom humor da assistência. Uma verdadeira ponte aérea foi organizada para trazer víveres, sendo a água transportada em camiões. Felizes e inebriados pela música folclorista, bem como pela «marijuana», «todos esqueceram tudo», e, só hoje, muito lentamente, começaram a sempre triste operação que é o «regressar da festa». Cansados, suados, sujos e cheios de fome, os entusiastas, que já não o eram, deixaram atrás de si dois mortos: o primeiro, esmagado por um tractor, quando dormia tranquilamente no campo; o segundo, intoxicado pelas drogas. Porém, em jeito de compensação — dentro de um automóvel e no hospital (para onde levaram a parturiente) — nasceram dois bebés. Entretanto, cerca de 3000 jovens tiveram de receber tratamento médico, em tendas clínicas levantadas para o efeito, na sua maior parte, por estarem fortemente drogados. Oitenta pessoas foram presas, acusadas de tráfico de estupefacientes, muito embora a «marijuana» tivesse ampla utilização durante o festival”.
224 palavras, 1425 caracteres — foi este o máximo escrito na imprensa portuguesa de 1969 sobre o maior festival de música de todos os tempos, sem que fosse sequer feita uma única referência a bandas ou cantores, quanto mais a movimentos anti-guerra, gritos de liberdade ou nudistas. Em compensação, nesse mesmo dia, na secção de cultura, o Diário da Manhã deu “Bom” ao novo álbum do Rancho Folclórico das Lavadeiras da Trofa. Principais hits em destaque: “Seixinhos do Monte”, “Bendita sejais Senhora das Dores”, “Por vossa Paixão Sagrada” e “Aleluia”.
Os jornais da censura e dos incêndios em estrumeiras
A guerra civil na Irlanda do Norte e o conflito do Vietname; as manifestações anti-soviéticas na Checoslováquia ocupada, os avanços das Forças Armadas no Ultramar; a Volta a Portugal em Bicicleta e a visita dos duques de Windsor ao País; a morte de Philip Blaiberg, o terceiro transplantado de coração em todo o mundo, o assassinato de Sharon Tate, e o desaparecimento do pequeno Miguel Borrego, filho de 7 anos de um casal de emigrantes em França que se perdeu algures perto de Valladolid, durante a viagem de férias para Portugal. Estes eram, na segunda quinzena de agosto de 1969, os principais temas em destaque na imprensa nacional.
Numa altura em que se publicavam listas de carros roubados e cotações dos leilões de lãs, em que a “terceira fase da Reboleira” marcava a agenda do imobiliário, em que certames como a eleição da “Rainha do Sado” ou da “Mãe Portuguesa do ano no Brasil” tinham páginas garantidas nos jornais, e em que até um incêndio numa estrumeira (no caso, na zona de Paço de Arcos) era notícia, o interesse nas histórias que chegavam dos Estados Unidos já era, ainda assim, grande.
Na mesma altura, quase todos os sete jornais analisados pelo Observador replicaram de forma minuciosa a cobertura dos crimes que em breve viriam a tornar Charles Manson famoso. Mas o apetite pelas notícias que chegavam do outro lado do Atlântico não se esgotava nas parangonas. Por exemplo, no mesmo Diário Popular de dia 19 de agosto de 1969, onde Woodstock aparece em modo foto-legenda, há uma notícia a dar conta da “brincadeira inconcebível” que fez com que em Quincy, no Illinois, um homem de 31 anos tivesse atingido a tiro, “entre os olhos”, o filho de apenas 8, “quando experimentavam, na cozinha de sua casa, qual dos dois era capaz de «sacar» mais depressa do revólver”.
Júlio Isidro garante ao Observador que a ausência de notícias na imprensa portuguesa não é prova da falta de interesse nacional no que se passava em Woodstock, apenas da eficácia da máquina censória do antigo regime. Na altura, tinha 24 anos e acumulava o emprego diurno como delegado de informação médica com a apresentação de noticiários no Rádio Clube Português, por 25 escudos por noite.
Recorda-se de ver chegar telexes com informações sobre Woodstock, mas não consegue precisar se chegou sequer a ler algum deles no ar: “Acho que a maior parte ficou suspensa. Para além da Comissão de Censura, que estava no Palácio Foz, o Rádio Clube Português tinha censura própria, havia um gabinete com três pessoas só para isso. Ainda por cima os telexes vinham com fotografias horríveis de maminhas à mostra — numa altura em que era proibido mostrar decotes na televisão, imagine! — e como se não bastasse ainda falavam sobre droga, que era uma coisa horrível que não se podia mostrar! Para o regime cinzento e bem comportado em que vivíamos, coisas como o Woodstock eram perniciosas, de evitar, quanto menos se soubesse sobre o que se estava a passar lá fora, melhor. Os jovens tinham de se manter burros e ignorantes.”
Os contributos dos comissários de bordo para a música em Portugal
Quando o Woodstock arrancou, Tozé Brito estava a dez dias de completar 18 anos. Era jovem, não ignorante: já membro do célebre Quarteto 1111, sabia que o Woodstock ia acontecer, só não sonhava que se tornasse — muito menos que se mantivesse até hoje, 50 anos mais tarde — o evento musical mais importante da história.
“Foi o pontapé de saída para tudo o que vemos ainda hoje no mundo dos festivais e o cartaz era brutal, ótimo. Ainda assim, parece-me que foi ainda mais importante enquanto movimento de massas, de uma geração anti-belicista contra o poder instituído. O nosso baterista, o Michel Silveira, era chefe de cabine da TAP, viajava para os Estados Unidos e para toda a parte. Para além de nos trazer notícias, trazia-nos as revistas que na altura não chegavam a Portugal. Fomos sabendo tudo sobre o festival, sobretudo a posteriori — quando apareceu era para ser uma coisa muito mais pequena, eram cinco amigos a organizar, pensavam que iam ter 50 mil pessoas e acabaram com 500 mil. O Woodstock teve um impacto gigante, tanto na sociedade americana como a nível mundial, mas cá as notícias não chegavam porque eram censuradas”, explica ao Observador.
A música também não, acrescenta Júlio Isidro. Em 1969, em Portugal, não era fácil comprar discos de Janis Joplin, Grateful Dead ou Jimi Hendrix, muito menos de Carlos Santana, que à data só tinha 22 e estava ainda a começar. “Na altura existiam discotecas, lojas de música que eram simultaneamente editoras, como a Valentim de Carvalho e a Sinfonia, mas havia muito pouca música do género disponível. Aquilo que chegava era por importação”, revela o apresentador, que em 1969 estava ainda a um ano de integrar a equipa que fazia o “Em Órbita”, o programa que mantinha, todos os dias, das 19h às 21h e da meia-noite à 1h, os fãs portugueses da nova música anglófona agarrados à antena do Rádio Clube Português.
“Quando foi o Woodstock ainda não fazia o programa, mas já era companheiro de cabine deles. As bandas e os músicos que atuaram no festival eram as que passavam no «Em Órbita» — e em mais lado nenhum em Portugal. Tínhamos um correspondente, o Manuel Espinho, que era comissário de bordo e nos trazia de Londres e de Nova Iorque os discos todos que lhe encomendávamos. Líamos a New Musical Express, a Billboard, ouvíamos a Voz da América e a BBC Overseas, e dizíamos-lhe o que queríamos. E depois havia ainda uma tabacaria, a Havaneza de Campo de Ourique, que tinha o privilégio — ou corria o risco! — de ter alguns desses discos à venda. Ao programa emprestava, só pagávamos se voltasse picado”, revela o apresentador, hoje com 74 anos.
“O «Em Órbita» passava exclusivamente música anglo-americana, mas não passávamos as musiquinhas dos tops, o lema era «menos comércio e mais espírito de iniciativa», com textos curtíssimos e uma linguagem muito despida, muito crua. Era um programa anónimo, não havia nomes, como costumávamos dizer — «o programa é feito por nós e dito por mim». Passávamos as músicas por inteiro, não havia cá disc-jockeys saloios a falar por cima da música. E todos os anos elegíamos — com o rigor da eleição de um papa — os dez melhores álbuns, as dez melhores músicas e a pior música do ano. Num ano elegemos o Frank Sinatra, esse grande piroso, como o pior! Está a ver a peneirice que nós tínhamos?! Hoje amo o Sinatra mas naquela altura pareceu-me muito bem”, ri-se o histórico apresentador de televisão. Que também garante: muitos dos álbuns editados na época em Portugal só o foram graças ao histórico programa, criado em 1965 por Jorge Gil e Pedro Soares Albergaria, ambos já falecidos. “As editoras penduravam-se em nós, no final do ano era uma correria para saberem quais, de entre a nossa lista de dez álbuns, é que lhes pertenciam. Nessa altura imprimiam quase de um dia para o outro e vendiam uma série de discos, muita malta nova parava todos os dias para ouvir o programa, que era sempre em direto, sete dias por semana.”
É Tozé Brito, um dos muitos que “religiosamente” paravam a escutar o programa do Rádio Clube Português, quem acrescenta: se as músicas fossem cantadas em inglês, em princípio estariam a salvo da censura. “Em inglês passava tudo, não sei se porque havia o entendimento da PIDE de que os portugueses não percebiam a língua ou se porque eles próprios é que não a entendiam. O Quarteto 1111 tinha uma série de discos censurados, a certa altura a forma que encontrámos de contornar isso foi passar a cantar em inglês. Em 1971 e 1972 dizíamos as maiores barbaridades, coisas dez vezes piores, e não éramos censurados.”
Da bronca dos Salesianos ao “nosso Woodstock”
Graças à ditadura, além do fluxo de informações, de lá para cá, também o de pessoas, no sentido inverso, era muito dificultado. Por isso mesmo, nem Júlio Isidro nem Tozé Brito conhecem um único português que tenha estado na zona de Bethel em agosto de 1969 — tirando Jorge Braga de Macedo, ex-ministro das Finanças de Cavaco Silva, que em 2009 contou à Lusa que, apesar de ter sido uma das 186 mil pessoas a comprar bilhete para o festival, acabou por desistir de tentar chegar ao recinto, por causa do trânsito e da “chuva absolutamente torrencial”. “Estava em casa de amigos no Tennanah Lake, na parte norte do estado de Nova Iorque… Era muito perto, vimos os anúncios do concerto e comprámos os bilhetes. Parecia muito bom e valia a pena”, recordou o economista, que no verão de 1969 tinha 22 anos e estaria a preparar-se para estudar na Universidade de Yale.
“Conseguir passaporte nessa altura era complicadíssimo; só a elite social, que tinha pais com conhecimentos, ou as minorias que iam estudar ou trabalhar para fora, é que tinham passaporte e viajavam para o estrangeiro. Estávamos em guerra, qualquer homem ou rapaz que não tivesse cumprido ainda o serviço militar obrigatório não conseguia que lhe atribuíssem passaporte”, contextualiza Tozé Brito que em 1971, graças a uma digressão do Quarteto 1111 pelo Japão, acabaria por conseguir de forma legal o documento com que, um ano mais tarde, sairia de Portugal rumo ao exílio em Inglaterra.
“Para além de ser contra a guerra, era contra o regime colonialista, se tivesse de combater seria do outro lado. Ainda fiz os primeiros três meses de recruta, porque me disseram que ia fazer parte do Alerta Estar, a unidade militar onde se juntavam os artistas para depois irem atuar para as tropas no Ultramar — e onde na altura estavam o Paulo de Carvalho, o Fernando Tordo e todos os meus amigos. Mas entretanto em dezembro de 1972 saiu a especialidade e eu não estava lá, porque o Quarteto 1111 tinha músicas censuradas. Foi muito complicado, já era casado nessa altura, tinha responsabilidades, mas fui-me embora para Inglaterra e só voltei em 1974.”
Bem antes disso, com o Quarteto 1111, de que José Cid era vocalista, Tozé Brito atuou no primeiro festival de verão em Portugal, Vilar de Mouros, ainda hoje conhecido como “o nosso Woodstock”.
“O lado musical do Woodstock foi riquíssimo, mas depois houve todo o lado político, o «make love not war», o slogan do movimento hippie contra a guerra do Vietname, que, para nós, que também tínhamos uma guerra a decorrer, também era um princípio de vida. Foi a primeira vez que se juntou meio milhão de pessoas em protesto contra a guerra, com o Jimi Hendrix a imitar bombas com a guitarra! E ninguém se atreveu a fazer nada — era meio milhão de pessoas! Foi a vontade enorme que tivemos de ver aquilo repetido, o mais perto possível, que nos levou a Vilar de Mouros, dois anos depois”, diz ao Observador.
Se Woodstock teve lugar a cerca de 160 quilómetros de Nova Iorque, a versão portuguesa aconteceu a 400 quilómetros de Lisboa, no Minho, quase em Espanha, no fundo, num tempo em que não existia A1 nem alfas pendulares.
Na realidade, se calhar por isso mesmo é que aconteceu, racionaliza Tozé Brito, recuperando a crise académica de 1969 e o incidente do festival falhado no Estoril, em agosto de 1970. “As crises estudantis deixaram marcas muito fortes, sobretudo em Coimbra mas também em Lisboa e no Porto, e no ano anterior tinha havido a bronca enorme do festival que ia acontecer nos Salesianos do Estoril e acabou com uma carga da polícia de choque. Houve um rumor de que o Zeca Afonso ia aparecer para atuar e a polícia soltou os pastores alemães, houve pessoas a fugir até à praia do Tamariz, que estava cheia de turistas que também foram mordidos. As queixas nas embaixadas foram muitas, o próprio regime, com a entrada de Marcello Caetano, também já não estava na sua fase mais dura, e acho que no ano seguinte houve uma necessidade de que aquilo não se repetisse. «Isto é lá longe, no Minho, vamos controlar, mas vamos permitir».”
Pelo mão do médico António Barge, também já falecido, fez-se, apenas dois anos depois do original, o Woodstock à portuguesa, com Elton John e Manfred Mann como cabeças de cartaz internacionais e Jorge Palma, Rão Kyao, Duo Ouro Negro, Amália Rodrigues e Quarteto 1111 como representantes nacionais.
“Apesar dos pides que andavam por lá e se topavam bem, de fato cinzento, também houve meninas e meninos nus, a tomar banho no rio que passava ali perto. Começou a perceber-se que a juventude portuguesa queria viver em liberdade”, recorda Júlio Isidro, que ainda fez de motorista da estrela inglesa, ao volante do seu Fiat 128, desde o aeroporto do Porto até ao recinto do festival. “O Dr. Barge tinha uma carrinha pão de forma para transportar os artistas, mas como a bateria do Nigel Olsson ocupou o espaço todo, acabou por pedir-me para levar o Elton John. E eu lá o levei, mais ao empresário, sem nunca lhe dizer que era jornalista. Quando à noite lhe apareci de microfone, para o entrevistar, fez uma cara: «Então mas você não era o motorista?!». Deve ter pensado que isto era um circo de província, em que o trapezista também faz malabarismo e ainda vende algodão doce.”
À escala, reforça Tozé Brito, Vilar de Mouros foi tal e qual como nos Estados Unidos — com 20 mil pessoas em vez de 400 mil. “Na altura eram proibidos ajuntamentos, nunca se tinham juntado 20 mil pessoas num evento, tirando os jogos de futebol não era permitido, não havia nada disso. Todos nós, quando percebemos o que se ia passar em Vilar de Mouros, numa pequena aldeia do Minho, ficámos muito entusiasmados. Não tocámos as nossas músicas censuradas, não nos arriscámos, sabíamos que se o fizéssemos saíamos diretos para dentro de uma carrinha, mas houve alguma liberdade. Consumiu-se erva e haxixe, toda a gente tinha consciência disso e a polícia não fez nada, houve ali ordens claras para não haver confusão. Não terá sido por acaso que três anos depois o regime caiu.”