Cinco anos depois dos ataques no teatro Bataclan e nas imediações do Stade de France, o terrorismo volta a dominar o debate público em França, recuperando velhas discussões sobre o islamismo, o lugar da religião na sociedade moderna e os limites da liberdade de expressão.
Um ataque em setembro e o discurso duro de Emmanuel Macron que se seguiu — anunciando um plano para combater o “separatismo islâmico” e dizendo que a república estava a ser atacada por uma “contrassociedade” — abriu um conflito não só interno, mas também internacional, cultural e religioso. E, desde então, sucedem-se atentados: a 16 de outubro, o professor Samuel Paty foi decapitado depois de ter mostrado cartoons de Maomé numa aula, a propósito da liberdade de expressão; esta semana, três pessoas foram mortas — uma delas degolada — por um jovem tunisino, num ataque à Catedral de Nice; horas depois, outro homem tentou um ataque em Avignon; e, num terceiro atentado, um homem ficou ferido no consulado francês da Arábia Saudita.
O que justifica a escala de violência — e de que forma a postura francesa pode abrir uma guerra, mais que inter-religiosa, também internacional, com apelos ao boicote económico? E o que se pode seguir, numa altura em que o país também luta para controlar a pandemia? Três pontos para perceber o que se passa em França.
O ataque de setembro, a morte de Paty e a reação dura de Macron
No final de setembro, um ataque às antigas instalações do jornal satírico Charlie Hebdo provocou dois feridos. O principal suspeito é um jovem paquistanês que terá imigrado para França no final de 2018 e recentemente teria tornado pública a sua fúria perante a persistente publicação de cartoons ilustrando Maomé.
O caso abalou o país, lembrando tensões nunca resolvidas. Desde 2015, em todos os anos se registaram ataques terroristas no território francês, com métodos cada vez menos sofisticados e eficazes, mas sempre presentes no quotidiano nacional.
Dias depois do ataque, Emmanuel Macron discursou para anunciar o seu plano de combate ao “separatismo islâmico”. A coberto do histórico compromisso francês com o secularismo, o presidente adotou uma postura dura, prometendo novas leis que combatessem a ameaça de uma “contrassociedade” formada pela minoria muçulmana, que em França é composta por 6 milhões de pessoas.
Diagnosticando uma “crise no islamismo por todo o mundo”, Macron prometeu a vigilância apertada do Estado sobre associações culturais, mesquitas e o financiamento desses grupos. O discurso foi rapidamente criticado, apontado como o fim do compromisso do poder público com a laicidade e uma porta aberta para a repressão do islamismo em França – de certa forma, uma cedência às pretensões da extrema-direita, motivada pelo interesse eleitoral.
Certo é que o discurso incendiou os ânimos franceses e, enquanto as redes discutiam, aconteceu o homicídio de Samuel Paty, um professor degolado por um jovem muçulmano de ascendência chechena. Na origem do ataque esteve também a exibição de um cartoon de Maomé numa aula de educação cívica sobre a liberdade de expressão. O ato do professor foi interpretado como uma provocação pela comunidade islâmica local, que desencadeou uma campanha de protestos nas redes sociais. No contexto mais amplo do debate nacional entretanto reiniciado, o caso teve um enorme impacto simbólico, sendo interpretado pelo presidente Macron, em mais um discurso, como um ataque direto à república e aos valores franceses.
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A morte do professor Paty levou a discussão para um nível há muito não atingido, envolvendo vários grupos de relevância social, políticos e cidadãos numa análise aos fundamentos da França contemporânea, dos seus valores e limites. Por outro lado, enquanto esse debate prossegue, o descontentamento islâmico perante as medidas restritivas e o discurso adversarial cresce e manifesta-se de forma cada vez mais agressiva, com apelos internos e externos a boicotes económicos, atos de combate e revolta contra o Estado francês. Esta semana, um ataque à Basílica de Nice conduzido por um jovem tunisino provocou mais três mortes. No limite, se a interpretação de Emmanuel Macron se provar correta, a “contrassociedade” pode estar a ser empurrada para uma guerra civil.
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O repto da Turquia e o início de um conflito internacional — cultural e religioso
A evolução dos termos no debate francês fez com que o assunto rapidamente se globalizasse. Com o presidente Macron a enquadrar as divisões no âmbito de uma grande questão civilizacional – a república atacada pela “contrassociedade” – o mundo islâmico não demorou a aceitar o repto. Na linha da frente surgiu o presidente turco, Recep Tayyip Erdoğan, velho adversário do presidente francês e grande defensor de uma união entre o islão e o poder do Estado, acusando Macron de perseguição ao islamismo antes de apoiar com veemência um boicote do povo turco aos produtos franceses e aconselhar o seu homólogo a procurar “tratamento mental”.
Erdogan acusa Macron de querer criar “cidadãos muçulmanos cobardes”
O boicote económico, que conseguiu grande popularidade nas redes sociais, foi já apoiado também pelo primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan. A postura de Macron, aliás, justificou protestos em vários países, do Paquistão à Turquia, mas também no Reino Unido, em Londres, onde vive uma grande comunidade islâmica, ou no Bangladesh. No Irão, um jornal aproveitou a temática dos cartoons para publicar uma representação do presidente Macron como “diabo de Paris”. Para muitos no lado oposto da discussão, trata-se de mais uma expressão de arrogância europeia e do velho espírito do colonialismo, desta vez com a vontade de ensinar aos muçulmanos a forma correta de praticar a sua religião, tentando proibir tudo aquilo que pareça excessivo ao olhar europeu.
Os líderes europeus, aliás, foram rápidos a tomar o partido de Macron, sobretudo numa altura em que as relações com a Turquia atravessam um péssimo momento, com tensões no Mediterrâneo e no conflito entre o Azerbaijão e a Arménia. Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, Ursula von der Leyen, presidente da Comissão Europeu e Josep Borrell, Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, publicaram no Twitter mensagens de reprovação à resposta turca e de apoio à França no meio de uma crise que começa a deixar de ser nacional e a atingir a dimensão civilizacional defendida pelo presidente francês.
Em França, a preocupação da crítica passa também pela dificuldade que o governo tem exibido para separar aquilo a que chama “islamismo radical” de todas as outras formas de prática religiosa, que conseguem conviver normalmente em comunidade. Essa distinção não é fácil na prática, mas a ideia de um conflito de civilizações e a formação de uma contrassociedade também parece ser incompatível com a noção de que se trata de um combate contra uma minoria dentro da minoria islâmica. A esse propósito, vários ativistas insistem que a linguagem de alguns ministros, trazendo para a esfera pública expressões anteriormente marginais como “islamo-esquerdismo” prejudica gravemente a vida da comunidade islâmica e serve apenas como instrumento de repressão do exercício religioso, uma liberdade fundamental numa democracia liberal como a francesa.
Jean-Luc Melenchon, derrotado presidencial e líder da oposição à esquerda, foi um dos que não se juntou ao coro de apoio a Macron na luta de palavras com Erdoğan, por considerar que o presidente teria perdido o controlo da situação e estaria a prestar um mau serviço ao país com a sua resposta. Do outro lado, Marine Le Pen, tida nas sondagens como principal adversária nas eleições de 2022, declarou logo após a morte de Samuel Paty que a França teria de “despejar pela força” o islamismo, que considerou uma “ideologia em guerra” com o país.
As consequências internas e o impacto da pandemia
A aposta de Macron numa posição tão abertamente hostil marca um corte com a posição adotada por François Hollande entre 2015 e 2016, que já na altura tinha enfrentado críticas pelo seu perfil securitário. Com uma posição que não parece ter trazido amigos à esquerda ou no estrangeiro, o presidente francês veio dramatizar o tema islâmico numa altura em que a atenção pública estava quase totalmente concentrada na pandemia.
Aliás, de forma anticlimática, Macron voltou a falar à nação pouco depois do atentado em Nice, mas desta vez para anunciar um novo confinamento, destinado a durar até dezembro. Numa altura em que a vida pública estava presa num debate fraturante que já deixava marcas profundas de polarização, as medidas de contenção sanitária arriscam-se a tomar novamente toda a atenção mediática e as ordens para reduzir as deslocações podem ter como efeito secundário a diminuição dos ataques e protestos que vinham ocorrendo em reação ao clima político e social adverso. Com um discurso duro e o provável bloqueio das respostas mais dramáticas, cresce o grupo daqueles que veem neste novo ambiente uma mera estratégia eleitoral.
Politicamente, não é certo que a acusação de colagem à extrema-direita venha a provar-se. Se é verdade que as sondagens para uma primeira volta presidencial têm apontado para um empate entre Macron e Le Pen, a verdade é que a popularidade do presidente tem estado em máximos históricos desde o início da pandemia e os números parecem dar-lhe uma posição bastante confortável a dois anos das eleições.
Tornar a insegurança nacional o principal tema político é também uma estratégia extremamente arriscada para um presidente em funções, na medida em que a insegurança pode facilmente ser-lhe atribuída como responsabilidade própria da sua inação, especialmente quando na oposição se encontra alguém como Marine Le Pen, em quem, segundo as sondagens, os eleitores confiam especialmente nas matérias de combate ao terrorismo.
Mais do que isso, numa altura em que o país parece incapaz de lidar com a segunda vaga da pandemia, ser visto como o promotor de uma guerra cultural contra a religião pode rapidamente virar-se contra si, porque pode ser interpretada como uma distração presidencial ou uma forma mais ou menos evidente de desviar atenções do principal problema nacional.
No tema do terrorismo, separado da religião e considerado apenas nos seus efeitos diretos, os últimos anos parecem ter apenas mostrado que não há ainda uma solução operacional que possa aplicar-se eficazmente. Ataques cada vez mais simples, com facas ou veículos, tornam difícil a atuação preventiva das autoridades policiais e a ideia de jovens que se radicalizam com publicações nas redes sociais de escopo local, como na questão do cartoon na sala de aula, é demasiado abrangente. Sendo todos os autores dos recentes ataques imigrantes, para além de muçulmanos, são já muitos os que exigem um processo mais cuidadoso à entrada no país, identificando melhor e mais cedo indivíduos que possam vir a representar um risco para a segurança nacional.
Essa reclamação aproxima-se de uma outra, reconhecida pelo presidente Macron sem que tenha apresentado uma estratégia para a resolver, e que se prende com a mobilidade social dos imigrantes, a sua ansiedade económica e o vazio que é deixado para o radicalismo preencher quando a comunidade falha. A França, como outros países europeus e até ocidentais, tem sido incapaz de assegurar uma integração plena das suas últimas gerações de imigrantes, condenando-os a uma vida nas margens, em bairros isolados como guetos, sem um claro propósito ou uma via evidente para a ascensão social. Nos seus discursos, o presidente francês tem concedido espaço a essa interpretação, considerando que o país não pode ceder nos cartoons, mas também precisa de garantir prosperidade e oportunidades para todos os seus cidadãos, diminuindo o incentivo do apelo radical.
França tem um debate sobre o islamismo que é mais antigo do que muitos países. Agora, provavelmente mais do que em qualquer outro tempo recente, poderá passar pela experiência de um poder estadual disposto a intervir, regular e proibir a prática religiosa. Emmanuel Macron começou por se apresentar como a última esperança do liberalismo, mas poderá acabar o seu (primeiro) mandato como o presidente que atacou o islão. No final de contas, talvez a melhor forma de o julgar seja vendo-o como um político entusiasmado pela hipótese de uma guerra civilizacional – quer uma que exista, quer uma que ele possa criar.