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Há uma guerra a decorrer no leste da Ucrânia há oito anos. Nas trincheiras de Donbass, os soldados ucranianos continuam o seu trabalho de patrulha, como descrevia há menos de uma semana um repórter do BuzzFeed que esteve no local: “Segui os soldados pelo labirinto de trincheiras e encontrei o Oleh, um comandante de 43 anos que mexia na sua metralhadora quando me aproximei do seu buraco. Um sinal na entrada diz ‘O inferno está vazio. Os demónios estão todos aqui’. Vestido com um camuflado branco da cor da neve, apontou para uma vigia de madeira de onde se vê o seu inimigo, a apenas 50 metros de distância.”
Esta é a realidade no leste da Ucrânia, onde os soldados combatem a rebelião de independentistas de Donetsk e Lugansk, apoiados pela Rússia. Nos últimos meses, porém, o mundo pôs os olhos na Ucrânia, mas não por causa do que se passa na região de Donbass. A mobilização de tropas russas para vários outros pontos junto da fronteira ucraniana — e também para a Bielorrússia — deixou norte-americanos e europeus em alerta.
As conversações diplomáticas têm-se sucedido a um ritmo acelerado, mas parecem não estar a ter sucesso. Nos últimos dias, a NATO e os norte-americanos anunciaram um reforço das suas tropas no leste da Europa, perante o risco de uma “invasão” russa. O que se passa ao certo? E pode a Ucrânia vir a ter trincheiras noutros pontos do país para lá de Donbass?
Como tudo começou?
O ano de 2021 foi todo marcado por um reforço das tropas russas na zona de fronteira com a Ucrânia. Primeiro, foi em Donbass: mais cinco mil soldados foram enviados para Luganks e Donetsk ao longo do ano. E os últimos meses do ano assistiram a um reforço substancial não apenas de homens, mas também de equipamento: o governo ucraniano denunciou, em relatos acompanhados por confirmação dos serviços secretos norte-americanos, que em dezembro havia mais 100 mil soldados na fronteira, mas também tanques e outro equipamento militar.
Além disso, foram também enviados reforços para zonas como Klintsy, cuja localização é fulcral por ser próximo da fronteira com a Ucrânia e a Bielorrússia — o que significa que as forças estão mais bem posicionadas para atacar uma zona como a capital ucraniana de Kiev. Já em janeiro deste ano, a Rússia enviou mais tropas para a Bielorrússia, a fim de realizar exercícios militares, justificando a medida como “prevenção de uma agressão externa”.
Os norte-americanos voltaram a alertar que esta mobilização é “superior ao esperado para um exercício militar normal”. O alerta intensificou-se.
Como estão a responder a NATO e os Estados Unidos?
Com um reforço militar claro no leste da Europa.
Esta segunda-feira, os EUA colocaram 8.500 tropas em alerta, que podem ser deslocadas para a Europa se a situação escalar. Os media norte-americanos dão conta de que a administração de Joe Biden tem neste momento em cima da mesa um reforço de “botas no terreno” para responder a qualquer ação da Rússia que possa por em causa a integridade territorial da Ucrânia.
A NATO tem neste momento as suas tropas também em standby, sobretudo desde a mobilização de forças russas para a Bielorrússia, devido à proximidade com a fronteira de países-membros da NATO (Polónia, Lituânia e Letónia). A Aliança diz estar pronta a ativar a sua Força de Resposta Rápida, que consegue colocar no terreno cinco mil soldados em pouco tempo. Mas esse contingente pode escalar para 40 mil soldados em cerca de um mês.
A Aliança do Tratado do Atlântico Norte mobilizou ainda navios e aviões para o leste da Europa — a Holanda enviou F35s e Espanha mobilizou dois navios de guerra para o Mar Negro, por exemplo. E vários dos seus membros, incluindo os EUA, estão a reforçar o armamento enviado para a Ucrânia. É o caso do Reino Unido e dos países do Báltico. “Se a Rússia avançar com uma invasão, daremos mais”, garantiu a secretária de Estado-adjunta dos Estados Unidos, Karen Donfried.
O que motiva a Rússia?
A resposta verdadeira é: ninguém sabe. Oficialmente, a Rússia tem sublinhado que não pretende invadir a Ucrânia, mas ameaça com “consequências graves” se o Ocidente ignorar as suas “preocupações de segurança”.
Concretamente, o Kremlin tem vincado dois pontos. Em primeiro lugar, o afastamento da Ucrânia da órbita russa e a sua aproximação ao Ocidente, que leva muitos analistas a falarem numa necessidade russa de manter uma “esfera de influência” semelhante à do sistema internacional do século XIX.
Este ponto foi reforçado pelo próprio Presidente russo, Vladimir Putin, num artigo de opinião publicado em 2021, onde deixou claro que considera que os ucranianos e os russos são “um único povo” e que a Ucrânia deveria ser parte da Rússia, tendo em conta os laços históricos que partilham. “Os russos, ucranianos e bielorrussos são todos descendentes do povo Rus’, que correspondia ao maior estado da Europa. Os eslavos e outras tribos espalhadas por todo o território — de Ladoga a Novgorod, de Pskov a Kiev e Chernigov — estavam unidos por uma única língua, laços económicos, o governo dos príncipes da dinastia Rurik e — desde o batismo de Rus’ — pela fé ortodoxa“, escreveu o líder russo, invocando os laços históricos que remontam aos séculos IX e X.
A crise Rússia-Ucrânia também se joga nas igrejas. Pode a intervenção do Papa ajudar?
Foram estes mesmos “laços históricos” que a Rússia usou como argumento para anexar a Crimeia em 2014 e para apoiar militarmente a insurreição de separatistas no leste da Ucrânia.
Por outro lado, Moscovo tem referido repetidamente que está descontente com o alargamento da NATO a vários países do leste da Europa, aproximando-se das suas fronteiras, e diz-se ameaçada. Concretamente, a Rússia exigiu uma garantia de que a Ucrânia não se tornará um Estado-membro da NATO no futuro — algo que a organização recusa, dizendo que embora não haja planos para tal no curto prazo, mantém a sua política de “porta aberta” aos países que quiserem aderir. Em causa está o alargamento a antigas repúblicas soviéticas como os Bálticos, a Bulgária e a Roménia e a ex-membros do Pacto de Varsóvia como a República Checa, a Hungria e a Polónia, que ocorreram na década de 90 e nos anos 2000.
Moscovo afirma que a sua segurança está em causa pelo avançar da fronteira da NATO em direção à Rússia. Mas há também um elemento ideológico de restauração de poderio russo. Afinal, Putin invoca laços históricos de há séculos, mas já afirmou publicamente que considera que o fim da União Soviética foi “a maior catástrofe geopolítica do século XX”. Ou seja, como resumiam dois analistas num artigo do Carnegie Center, “a restauração da terra eslava como império — de alguma forma que pode não ser necessariamente uma URSS 2.0 — não é apenas geopolítica. É também geracional, estratégica e pessoal”.
Significa isto que Putin está disposto a avançar para uma guerra total a fim de conquistar a Ucrânia? Não necessariamente. A Rússia é uma potência imprevisível no plano externo e não há consenso entre os analistas sobre o que irá o Kremlin fazer. Como resumiram vários especialistas ao Observador no início de dezembro, Putin mantém para já todos os cenários em cima da mesa: retirada, manutenção das tropas na fronteira como forma de pressão ou ação militar. “A vantagem deste tipo de ameaça ambígua é que permite ao Kremlin manter esta opção sem ter de parecer que está a recuar”, resume o analista Mark Galeotti.
Putin e Biden voltam a falar sobre a Ucrânia. Mas os tanques russos continuam na fronteira
Mas a diplomacia não tem estado a funcionar?
Sim, mas não tem tido resultados concretos. Uma das consequências desta ação da Rússia foi ter conseguido fazer com que Washington se sentasse à mesa das negociações de igual para igual com Moscovo — levando o governo de Biden a fazer um desvio da sua estratégia geopolítica de concentrar todos os esforços no confronto com a China.
Desde dezembro que Putin e Biden já tiveram duas conversas para discutir a situação da Ucrânia e o secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, tem viajado para Moscovo e mantido o contacto com o Kremlin, bem como os aliados europeus. Na semana passada, as partes reuniram-se em Genebra, mas não saiu das reuniões nenhum avanço concreto.
Os EUA começaram por ameaçar Moscovo com “medidas económicas fortes” de retaliação caso haja uma invasão da Ucrânia — ou seja, sanções. Também a NATO e a União Europeia (UE) falaram em “consequências massivas” para a Rússia nesse mesmo cenário, mantendo a discussão no plano das sanções. Perante o reforço ainda maior das tropas russas, porém, Washington escala agora a retórica para a mobilização de soldados para o leste da Europa, talvez na tentativa de obter um recuo dos russos.
Entretanto, os parceiros europeus mantêm o foco na diplomacia. O governo francês promoveu um encontro entre russos e ucranianos em Paris, que se realizará esta quarta-feira. Os alemães também estarão presentes, numa tentativa de reavivar o chamado modelo de Normandia: em que França e Alemanha monitorizam a tentativa de aplicar os Acordos de Paz de Minsk, assinados em 2014 e 2015 por Rússia e Ucrânia.
Os princípios estipulados nestes acordos para Donbass — cessar-fogo, retirada de armamento pesado, controlo efetivo da fronteira pela Ucrânia e eleições locais para criar uma região com estatuto especial regional — continuam por aplicar. Resta saber se um avanço neste tema faria a Rússia recuar com o reforço de tropas na fronteira.
Como está a situação a ser vista dentro da Ucrânia?
Para já, com calma. Esta segunda-feira, o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano expressou desagrado com a decisão de norte-americanos e britânicos de retirarem o pessoal diplomática das suas embaixadas em Kiev, dizendo que foi uma medida “prematura e demasiado cautelosa”.
O governo ucraniano tem lembrado que esta não é uma situação nova e que tem alertado para o escalar de tropas na fronteira desde abril do ano passado. A sensação em Kiev é a de, que embora a Ucrânia esteja no centro da discussão, os ucranianos não têm feito parte das negociações diplomáticas. Esta segunda-feira, o Presidente, Volodymyr Zelenskyy, afirmou que a situação está “sob controlo” e que “não há motivo para entrar em pânico”.
Os cidadãos também não parecem alarmados. Uma sondagem de dezembro, citada pela Der Spiegel, dá conta de que uma escalada militar na fronteira aparece em quarto lugar nas preocupações dos ucranianos, muito atrás do aumento do preço do gás, da crise económica e da Covid-19.
Na verdade, o alarme soa mais noutros pontos da Europa do que em Kiev. Na semana passada, o ministério dos Negócios Estrangeiros britânico alertou mesmo para um possível plano russo que pretendia instalar um regime-fantoche na Ucrânia, liderado pelo ucraniano Yevhen Murayev, que na verdade se manteria fiel a Moscovo. O próprio Murayev, porém, afirmou que tal não faz sentido por estar “proibido de entrar na Rússia”. Analistas ucranianos, como Vasyl Filipchuk, consideraram a tese “ridícula”: “Nem mesmo uma eleição fraudulenta conseguiria fazer eleger atores pró-Rússia e impo-los à força significaria uma luta longa e sangrenta”, resumiu ao The Guardian. Talvez por isto, o alerta do Presidente Zelensky em dezembro para um plano semelhante não teve grande eco internacional.
As sondagens demonstram que a grande maioria dos cidadãos ucranianos mantém vivos sentimentos de independência e rejeita terminantemente uma aproximação à Rússia. Um estudo de um think tank de Kiev de dezembro passado estima que 61% dos ucranianos querem entrar na UE e que 53% gostariam de aderir à NATO. Outra sondagem dá conta de que 24% dos ucranianos dizem-se dispostos a resistir “de armas na mão” a uma possível invasão russa.
Apesar do sentimento coletivo anti-Rússia, isso não significa que, em caso de ação militar, a Ucrânia tenha capacidade para resistir a um ataque do Kremlin. Uma invasão de larga escala por parte dos russos parece improvável, com a maioria dos analistas militares a sugerir antes um ataque rápido e cirúrgico, semelhante ao que Moscovo levou a cabo na Geórgia em 2008. Mas, mesmo neste cenário, a Rússia continua a ter um Exército muito mais preparado e capaz do que a Ucrânia.
Quais as posições dos países europeus perante um possível cenário de conflito no continente?
As posições são variadas. Oficialmente, os membros da União Europeia dizem estar todos em alerta e garantem que irão defender a integridade territorial da Ucrânia. Esta terça-feira, o representante externo da UE, Josep Borrell, disse que este caso é um “exemplo” de que “a Europa está em perigo”.
A resposta que os países querem dar, porém, difere. Os membros mais a leste, como a Polónia e os Bálticos, têm alertado para a gravidade da situação, com Varsóvia a falar claramente em “risco de guerra”. Outros, como Itália, são mais conciliadores: “Putin quer fazer parte do processo de decisão”, garante o primeiro-ministro Mario Draghi, que vê as conversações diplomáticas com bons olhos.
No meio, França — que tem neste momento a presidência do Conselho da UE e enfrenta eleições presidenciais em abril — quer assumir-se como fiel da balança e liderar negociações a nível europeu. Emmanuel Macron propõe um caminho para “pôr fim à escalada” com o reavivar do formato de Normandia.
A Alemanha tem a posição mais complicada, com diferentes entendimentos dentro do seu próprio governo. Os Verdes, que têm a pasta dos Negócios Estrangeiros, defendem uma posição muito mais assertiva face à Rússia do que o SPD, partido do chanceler Olaf Scholz. O país continua a recusar fornecer armamento à Ucrânia, mantendo uma tradição da política alemã desde o fim da II Guerra Mundial.
Os laços económicos de Berlim com Moscovo também levantam dúvidas sobre o peso das sanções que a UE pode vir a aplicar à Rússia em caso de incursão militar na Ucrânia. Dois caminhos têm sido sugeridos: sanções ao sistema financeiro russo (como ao banco VTB e ao Sberbank) e às exportações de energia.
Uma das formas de aplicar as primeiras seria retirando os bancos russos do sistema internacional de transferências SWIFT, como aconteceu com o Irão em 2012. Porém, tendo em conta as ligações económicas de empresas alemãs com a Rússia, uma medida dessas teria forte impacto dentro da própria Alemanha. Quanto ao segundo ponto, a energia, é um problema grave. O gasoduto Nord Stream 2, que irá fornecer gás russo à Alemanha, está neste momento suspenso e os alemães garantiram aos norte-americanos que o suspenderão em caso de agressão à Ucrânia. Mas, oficialmente, o projeto não está cancelado.
Se forem aplicadas sanções ao setor energético russo, responsável pelo fornecimento de grande parte do gás consumido pela União Europeia, o mais certo é os preços do gás — que já estão em subida — aumentarem ainda mais em toda a Europa, refletindo-se na subida de preços em todo o setor energético. Basta lembrar que 40% do gás importado pela UE vem da Rússia. Na Alemanha, esse valor está acima dos 50%.
Fora da UE, o Reino Unido tem assumido uma posição contundente contra a Rússia na questão da Ucrânia. O governo de Boris Johnson tem acompanhado Washington em todas as decisões, incluindo na de retirar pessoal diplomático de Kiev. Londres já enviou mais armamento para a Ucrânia e o primeiro-ministro já afirmou claramente estar disponível para participar num contingente da NATO no país, em caso de guerra. E deixa ameaças a Moscovo: “As pessoas na Rússia têm de entender que isto pode ser uma nova Chechénia”, afirmou Johnson, falando na possibilidade de um “conflito sangrento”.